BOTÕES COLHIDOS I – 31 outubro 2023
(Catherine Deneuve)
Dizem que amor é uma flor e desabrocha
bem fundo nos alvéolos do pulmão,
raiz estende até chegar ao coração,
onde floresce, vermelho como tocha;
toma a caixa torácica por choça,
contudo espia, curioso de emoção,
através de nosso olhar, tonta ilusão,
que raramente o mundo externo endossa;
que amor pode ser breve ou duradouro,
mas sempre é de nós mesmos a extensão,
que há certo egoísmo oculto em cada amor,
seu alvo queremos para ser nosso tesouro
e assim em ciúme se transforma sem razão,
quando o encaramos como posse de valor.
BOTÕES COLHIDOS II
Mesmo que alguém nos ame integralmente,
o seu amor engloba igual egoísmo,
nos deseja para si em exclusivismo
e o desaponto lhe chega facilmente;
que o amor mútuo precisa estar presente
de modo tal que não tema algum abismo,
nem se deixe corromper por saudosismo,
que amor real é a devoção mais permanente;
que o mais comum é a emoção se confundir
do amor por outrem com o amor por objeto,
pela pátria, por religião, pela riqueza,
amor de coisas, que não se pode permitir
que seja amor igual ao amor por ser dileto,
amor por carne a ser somente em tal vileza.
BOTÕES COLHIDOS III
Destarte amor, essa flor desabrochada
bem no fundo das artérias da paixão,
não se encarcera tão só no coração,
nem se permite por cansaço emurchecida;
bem ao contrário, quem alma encontra amada,
mais do que um corpo, ainda em plena comunhão,
quer seu reflexo ver no olhar de compleição,
enquanto seu olhar reflete a face ansiada.
Mas como é raro se encontrar o que se espera,
que durar possa assim por vida inteira!
Tão somente quando a pétala derradeira
possamos despencar e mergulhar na esfera
de um mútuo olhar compondo nova flor
que nunca murche, mas conserve seu frescor!
ESTERNUTARES PERDIDOS I – 1º
NOVEMBRO 2023
Minha pobre alma saiu
esternutada,
porém segundo espirro não
brotou,
sem sua presença o corpo assim
ficou,
depois que a alma projetou-se
descuidada;
jogou-se ao acaso, sem à âncora
enlaçada
e nas traves do teto se
agarrou;
em vão a traqueia de novo a
convocou,
permeio à poeira ficou
desorientada;
quase sempre esternuta-se um
segundo,
que para a alma funciona qual
farol
e então retorna num voo em
caracol,
até as narinas de que veio ao
mundo,
para acolher-se em seu pouso
necessário,
segura assim em seu antigo ovário.
ESTERNUTARES PERDIDOS II
Mas quando o alma segundo
espirro escuta,
no caso de ocorrer longa
demora,
talvez tenha até adormecido
nessa hora
e só desperte ao final de certa
luta,
emaranhada no forro como em
gruta;
a pobre alma de medo nem mais
chora,
crava no teto filamentos como
espora,
já desistindo para a final
permuta...
Mas se descer com pressa
demasiada,
entra na boca aberta, feito um
giz
e não encontra as entradas do
nariz;
ao invés de encontrar caminho
aberto,
tomba no esôfago em destino
incerto
e só no estômago descobre-se
instalada!
ESTERNUTARES PERDIDOS III
É bem verdade que a alma é um
ser permeável
e de algum modo encontra o seu
caminho,
até chegar, enfim, ao seu
cantinho
em qualquer ponto da mente
imponderável
e que a sabe recolher, afável,
mas no estômago não tem
qualquer carinho,
no suco gástrico encontra algo
daninho,
não se corrói, mas se vê
desconfortável!
De alguma forma, as membranas
atravessa
e vai subindo até seu ninho
cerebral,
por mais que o fígado mais
próximo a atraia!
Mas se acolher-se em demasiada
pressa,
ante as narinas perde-se, afinal,
e em novo espirro é expulsa,
como em vaia!
CONTRAFINADOS I – 2 NOVEMBRO 23
Nossa vida é como um continente,
constantemente assediado pelo mar,
contra os penhascos protetores a quebrar,
em maremoto às vezes bem frequente,
ou tsunami, qual agora fala a gente,
o seu idioma materno a desprezar,
abarca as praias, vai na vida penetrar,
o enfraquecer a nos causar frequente...
Em nosso orgulho de cunho narcisístico,
nós nos julgamos os seres superiores,
mas os insetos e as bactérias nos devoram;
sem recorrência a qualquer símbolo místico,
os continentes vão perdendo os seus
lavores,
a cada embate anos vêm que nos descoram.
CONTRAFINADOS II
Um certo dia, as praias são tomadas
e os rios se enchem com cem enxurradas,
é natural que as montanhas desfalecem
e se transformam em planícies areiadas;
o continente é forte em alvoradas,
por certas décadas, os montes até crescem,
os assaltos do mar então se desmerecem,
sobre as areias, as árvores florescem...
Mas dos milênios no eterno recorrer,
onde era mar, projetam-se as montanhas,
do que era terra, as águas se apoderam;
depois os vulcões, suas carnes a fender,
os montes passam, atônitos em tais manhas,
osteoporizados pelas lavas que perderam.
CONTRAFINADOS III
Mas bom seria que amor nos transformasse
de continentes em praias ou no mar,
de um oceano cordilheiras rebrotar
e que esse amor por milênios perdurasse;
mas bom seria que ao menos nos durasse
por esta curta vida que nos vem tocar,
sem que em cansaço se fosse transformar,
mas que esse tempo até nos ampliasse;
talvez amor nada mais seja que poesia,
no imaginar de tantos romancistas
ou dos aedos da inspiração nas pistas,
um tal amor dois continentes reuniria,
na longa vida de um eterno retornar,
tornados unos pelo amor do próprio mar.
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