terça-feira, 28 de novembro de 2023


 

CADEADO I  (30/11/2009)

(Mistanguett, cantora e atriz do cinema francês)

 

Como posso ser feliz, se não estás comigo?

Se não vejo teus olhos, arqueados de ameixa,

se a impressão de teus beijos minha boca não deixa,

se teu ventre não tenho, em favor de perigo?

 

E posso ser feliz, no mesmo ideal antigo,

sem teus lábios macios, sem teus lábios de gueixa,

se teu punho crispado minha carne não enfeixa,

nessa ânsia voraz, nessa ausência de abrigo?

 

E posso ser feliz, sem nem estar contigo?

Se tuas passas maduras não tenho entre meus dedos,

se teus pelos de névoa não beijo em segredos,

 

se teu ventre colmeia adentrar não consigo,

nem ouço teu grito de ardores tão ledos,

que a carne nos templos do orgasmo persigo?

 

CADEADO II

 

Sentimento é uma lagarta no meu peito,

que me rói lentamente o meu pulmão

e que me faz prender respiração

a cada vez que te encontro no meu leito.

 

E se lá não estás, em meu despeito,

fico a buscar qualquer compensação

na música ou poesia, meu rincão,

em que essa ausência, sem querer, aceito.

 

O sentimento me devora, lentamente,

e meu próprio interesse assim anulo:

meu coração goteja e não se veda,

 

porém nutre essa lagarta permanente

e lhe retira os fios de seu casulo,

com que redijo meus mil versos de seda.

 

CADEADO III

 

Estou a repetir-me.  Já te disse

que meu desejo é que acordes a meu lado.

Há anos durmo só, neste isolado

mister de quem persegue quanto visse

 

de trabalho a seu alcance e que descansa

o mínimo que pode... Mas lugar

sempre busca nos teus braços, sem deixar

de te querer, em sua revolta mansa.

 

Por não achar em ti a compreensão

que tanto desejava, um ombro amigo

e não bengala de caule carcomido,

 

que em meu labor, não vejo mutação:

não é outra que quero, somente estar contigo,

buscando em ti meu único perigo...

 

CADEADO IV – 25 NOVEMBRO 2023

 

Depois de te amar tanto, o tempo foi-se

em que tanto te amei.  Só resta agora

o rancor desbotado em longa hora,

com que cortaste amor em aguda foice.

 

Se amor não se demonstra, o amor rói-se,

como traça vicejando em nosso outrora.

Pois te demonstro ainda, muito embora

suspeite estar-me expondo a novo coice.

 

Mas sou assim: um tolo sem remédio,

que tendo amor por dar, o distribui,

mesmo que nada receba em recompensa.

 

E lanço minha alegria sobre o tédio

que na tua alma existe e me compensa

notar que amor assim não se dilui.

 

CADEADO V

 

Amor é fruto de plena galhardia,

que ante o sol se apresenta, exuberante;

amor é um pêssego dourado e fumegante,

perante o sol que assim o evaporaria.

 

Amor é o seio para mim aconchegante,

que por capricho então me abraçaria;

amor é o colo que às vezes me pedia,

noutro capricho apenas instigante.

 

Amor não é somente a flor do instante,

em que se perde o ser em serodia

curva mortal, que se move tão depressa,

 

mas a acolhida paciente do inconstante,

como triste e calada melodia,

que nos chega do passado, sem ter pressa...

 

CADEADO VI

 

Amor, às vezes, é como formigueiro,

que nos excita por dentro, com ardor,

cada célula respigando em tal calor,

cada grão que balança no terreiro.

 

Amor assim comicha por inteiro

o coração e comove o seu pendor,

na alheia busca por dedos de amor,

alívio único quando deles me abeiro.

 

Amor se torna em perfeita embalagem

para meu coração tão vulnerável,

a recebê-la igual que uma garagem

 

em outro coração menos friável,

que o recolhe no meio da paisagem,

em que a geada o feriria de passagem.

 

 

 

CADEADO VII – 26 novembro 2023

 

Ter amor é avistar desfiladeiro

que se erga algures na distância

e se procura alcançar em plena ânsia,

rastros de sangue deixando no sendeiro.

 

Ter amor é esforçar-se por inteiro

nessa busca composta de cansância

e prosseguir apesar de cada instância

tornar mais longo o alcance derradeiro.

 

Ter amor é encarar com um binóculo,

visto às avessas, o espaço a percorrer,

que só está perto por meio da ilusão.

 

Ter amor é ver o mundo com monóculo,

um olho míope e o outro a perceber

o amargo fruto que nos traz desilusão.

 

CADEADO VIII

 

Amar é se jogar sem garantia

que esteja firme nessa corda elástica,

num salto de bungee, em ânsia espástica,

sem cogitar se afinal rebentaria!

 

Mas lançar-se assim mesmo, numa orgia

de espera e desconsolo, nessa drástica

inversão de um abrasivo, em piroplástica

nuvem escura que nos talvez destruiria.

 

E mesmo assim, sem pejo, buscaria

o amor achar após a escuridão

e ter o salto sustido na ocasião

 

em que mais se rebentar pareceria

e surpreender-se, no meio da fumaça

na acolhida desse amor que nos abraça!

 

CADEADO IX

 

Amar é entregar-se à exposição

de cada sentimento arboriforme,

mostrar-se ao mundo como ser disforme,

bufão ridículo em ridícula ocasião!

 

Mas esse bobo é inspirado por razão

de se fazer de tolo pluriforme

e se mostrar ao rei sempre conforme

a seus desejos, na mais cruel condenação!

 

Amor é ser um tolo aos olhos do objeto

dessa paixão, que nos aceitará,

muito embora o mundo inteiro faça troça,

 

na esperança de granjear todo esse afeto,

sem temor de que o peito quebrará,

mesmo guardando um coração de louça!

 

CADEADO X – 27 NOV 23

 

Pois quem ama só se acha em inquietação

e não se satisfaz em liberdade,

mas tão somente encontra saciedade

quando for preso na gaiola da paixão.

 

Tem grande sorte quem encontra aceitação,

mesmo que seja um gesto de piedade

e é encerrado por liberalidade

dentro das grades de outro coração...

 

Mas quem frequente entra sozinho na gaiola

e mesmo fecha por dentro o seu cadeado,

sem ter as chaves para o abrir de novo,

 

em vão depois as duas mãos esfola,

tampouco tem a chave o ser amado

e nem alpiste lhe dá para o renovo!

 

CADEADO XI

 

Amor é um passarinho que se avança

contra a luz da clarabóia, apavorado:

penetrou num coração despreparado

para a ele receber e assim se cansa,

 

projetando-se nos vidros como lança

mas sem ter força nem o peso desejado

para tal vidro ver enfim quebrado

e se projeta malferido em desperança!

 

Já percorreu o inteiro coração,

sem encontrar de amor acolhimento,

sem receber sequer sua simpatia, apenas

 

e quando alcança afinal libertação,

só o consegue após largo sofrimento,

abandonando nos cacos sangue e penas!

 

CADEADO XII

 

Também eu invadi o seu castelo,

igual penetra que não foi convidado,

para ver-me em tais quartos encerrado,

sem encontrar a luz de meu desvelo...

 

Piei em vão, trinando o meu apelo,

sem ter sequer em seu ombro me apoiado,

mas não queria sair, por mais magoado,

buscando o seu amor, porém sem vê-lo!

 

E não queria atravessar outra janela,

dando passagem para ir-me embora

desses confins de seu vasto coração,

 

não querendo ter vida longe dela,

em cada instante de minha final hora,

sem perceber que meu cadeado era a ilusão!

 

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