RIO DOS OSSOS I – 12 NOV 2023
(Tom Felton / Draco Malfoy)
Existe um rio que liga a humanidade
com os séculos mais longínquos do passado,
cinquenta ou cem mil anos já é
recuado,
percorrendo contundente toda a
sociedade;
é a Natureza em sua real perenidade,
que quando um ser não pode mais ser
duplicado,
logo a seguir decide que se deva
descartado,
lugar deixando para a nova mocidade.
O fato é que, após a nossa morte,
a carne se dilui ou é depressa
mastigada,
as bactérias dos devoradores as
maiores,
sobram somente os esqueletos a tal
sorte,
talvez em lápides sua lembrança
conservada,
sua figura dá saudade ou traz
temores.
RIO DOS OSSOS II
Sem dúvida, esqueletos são singelos,
não apresentam podridão, quase não cheiram
às narinas dos vivos que se abeiram,
à sua maneira, podem ser tidos como belos;
para os povos primitivos mostram selos
das vitórias sobre adversários a que mal queiram,
ficam os ossos pendurados onde apeiram,
encarados com orgulho ou mesmo zelos.
Mas quando vemos nossos pais e avós
reduzidos apenas à armadura
dos endoesqueletais que os sustentaram,
os sentimentos oscilam para os dós,
revestidos de conotação impura,
de iguais sermos aos que nos encararam.
RIO DOS OSSOS III
Não obstante, o que de fato une
os vivos a seus mortos, senão ossos?
Não os egípcios com mastabas e seus fossos,
em que múmias antigas se reúne;
na Europa e na Índia cada floresta mune:
indoeuropeus reúnem
troncos grossos
e ali cremam os despojos nossos,
na maior parte da Índia ainda é costume.
Depois as cinzas são lançadas em seu rio,
já os romanos guardam as suas em urnas,
outros povos conservavam-nas em furnas,
mais outros as lançavam dos ventos ao brio,
mesmo no Brasil, depois de Tuiuti,
milhares de corpos queimaram por ali.
RIO DOS OSSOS IV – 13 novembro 2023
Porém no Egito a madeira é sempre
escassa
e ali o clima é muito seco e quente,
não permitindo que se queimasse a
gente;
de fato, um corpo a que o deserto
abraça,
com frequência em múmia natural
retraça,
melhor que as dos faraós,
frequentemente,
sem os longos rituais que finalmente
guardavam corpos mutilados nessa
traça.
Sem o cérebro, órgão internos
retirados,
os corpos que se pretendia ressurgidos
fragmentados em seus vasos canópicos,
enquanto os pobres eram apenas
enfaixados
e em vastas cavernas amontoados,
nessas crenças de cunhos mais
utópicos.
RIO DOS OSSOS V
Não é de admirar que seus escravos
hebreus, retidos por quatrocentos anos,
copiassem costumes de seus soberanos,
mesmo na Terra Prometida, em que favos
manariam mel e leite, mas onde arvoredos,
que de algum modo permitissem cremação,
eram escassos por toda essa região,
sepultassem seus mortos em degredos.
Por igual entre os árabes, a sepultura
se fazia necessária sob a terra,
ou em cavernas que seus restos encerra;
e finalmente, como parte da cultura,
a prática egípcia alcançou perpetuação
entre os cristãos, por religiosa ordenação.
RIO DOS OSSOS VI
Posto na Europa fosse somente a religião,
pois lá havia bosques e madeira suficiente,
embora se afirme que a pobre gente,
mesmo em Roma depositassem pelo chão,
mas não recordo existir confirmação
de alguma vala comum sobrevivente,
salvo as catacumbas dessa gente crente,
judeus e cristãos a esperar ressurreição,
embora o Apóstolo Paulo, com clareza,
tenha escrito: “Semeia-se o corpo material,
mas ressuscita um corpo espiritual”,
desnecessário guardar ossos, com certeza,
em ataúdes até virarem poeira e giz,
ou nas tétricas catacumbas de Paris.
RIO DOS OSSOS VII – l4 novembro 2023
Será de fato uma coisa milagrosa,
chegado o dia da ressurreição,
se esses despojos se reencontrarão,
amontoados como estão em desditosa
separação para a ocupação mais
proveitosa
do espaço dessa tétrica mansão,
as caveiras empilhadas em montão,
os ossos longos encaixados como em
grosa,
as vértebras e os ossos mais pequenos
misturados em macabra coleção,
como as rótulas saberiam qual sua mão
ou cada pé ou como fariam seus acenos
as falanges ou se reuniriam os
artelhos,
os mais recentes misturados aos mais
velhos?
RIO DOS OSSOS VIII
Não obstante, ao longo dos milênios,
ossos antigos vão ser desenterrados
pelos arqueólogos e por legistas estudados
e assim terminam promíscuos nos procênios
de museus e depósitos para comparação
da maneira como foram alimentados,
dos protocolos com que foram sepultados,
sem temor de cometer profanação.
Até mesmo cemitérios mais recentes,
quando as cidades se expandem sem parar,
vão sendo de seus ossos despojados
e o que fazer, quando há razões prementes
ou grandes terremotos os vêm mostrar,
dificilmente a ser outra vez identificados.
RIO DOS OSSOS IX
Irão para valas comuns ou então cremados,
suas sepulturas a dar espaço aos vivos...
Ainda os sujeitos de vários séculos aos crivos
de tal destino por que seriam poupados?
Durante as guerras há tantos despojados
de suas vidas, seus restos tão esquivos,
para sua identificação em nada passivos,
raramente por objetos seus nomeados.
Na China havia tantos cemitérios,
conservados com intensa devoção,
(por apitos de trens seriam perturbados!),
que Mao Tsetung pôs um fim aos despautérios,
mandou desmanchá-los sem qualquer veneração,
para que os vivos ser pudessem transportados.
RIO DOS OSSOS X – 15 novembro 23
Mas tudo isso não passa de um ritual,
guardam os mortos entre choros e
suspiros
e na suspeita de que possam ser
vampiros,
com pesadas lápides os recobrem no
final.
É compreensível venerar cada mortal,
que cedo ou tarde seguiremos iguais
giros,
completados nossos tempos de martírios,
nossos corpos descartados por igual.
Mas qualquer seja o destino dos
despojos,
os ossos lá estão, quer ainda
inteiriços,
quer transformados em cinzas, poeira
e pó,
que a Terra guarda a todos nos seus
bojos,
os mais recentes e os ossos mais
castiços,
frutos de ausências que nos causam
dó.
RIO DOS OSSOS XI
Mas ao longo das eras, como um rio,
descem os corpos por vales e montanhas,
desventrados de memórias e façanhas,
apenas ossos, sem carne e sem mais cio,
a fria lava do ultrapassado brio,
à qual nos juntaremos após sanhas
de doenças, de velhice, de outras manhas:
minha própria morte diariamente eu crio.
Mas longe de temer ou lamentar,
um dia morrermos é nossa razão de ser,
não são os mortos que vêm-nos procurar,
mas nossos ossos é que os irão buscar,
para a essa imensa turba pertencer,
grande serpente humana em seu marchar.
RIO DOS OSSOS XII
De nossas carnes libertos da agonia,
dos ancestrais a partilhar o deeneá,
o rio dos mortos é que prosserguirá
muito depois de quanto a gente cria,
como uma ponte que também nos guia
para o futuro, que cada um reforçará,
sem os seus ossos pouco ou nada restará
para o futuro do derradeiro dia.
portanto, irmã ou irmão, alegremente
posta-te à margem desse rio dos ossos,
que são memórias da vida e não destroços,
vida após vida sob um sol clemente,
sonho após sonho a manter a humanidade
nessa cadeia que nos conduz à eternidade!
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