quarta-feira, 22 de novembro de 2023




 

 

RIO DOS OSSOS I – 12 NOV 2023

(Tom Felton / Draco Malfoy)

Existe um rio que liga a humanidade

com os séculos mais longínquos do passado,

cinquenta ou cem mil anos já é recuado,

percorrendo contundente toda a sociedade;

é a Natureza em sua real perenidade,

que quando um ser não pode mais ser duplicado,

logo a seguir decide que se deva descartado,

lugar deixando para a nova mocidade.

 

O fato é que, após a nossa morte,

a carne se dilui ou é depressa mastigada,

as bactérias dos devoradores as maiores,

sobram somente os esqueletos a tal sorte,

talvez em lápides sua lembrança conservada,

sua figura dá saudade ou traz temores.

 

RIO DOS OSSOS II

 

Sem dúvida, esqueletos são singelos,

não apresentam podridão, quase não cheiram

às narinas dos vivos que se abeiram,

à sua maneira, podem ser tidos como belos;

para os povos primitivos mostram selos

das vitórias sobre adversários a que mal queiram,

ficam os ossos pendurados onde apeiram,

encarados com orgulho ou mesmo zelos.

 

Mas quando vemos nossos pais e avós

reduzidos apenas à armadura

dos endoesqueletais que os sustentaram,

os sentimentos oscilam para os dós,

revestidos de conotação impura,

de iguais sermos aos que nos encararam.

 

RIO DOS OSSOS III

 

Não obstante, o que de fato une

os vivos a seus mortos, senão ossos?

Não os egípcios com mastabas e seus fossos,

em que múmias antigas se reúne;

na Europa e na Índia cada floresta mune:

 indoeuropeus reúnem troncos grossos

e ali cremam os despojos nossos,

na maior parte da Índia ainda é costume.

 

Depois as cinzas são lançadas em seu rio,

já os romanos guardam as suas em urnas,

outros povos conservavam-nas em furnas,

mais outros as lançavam dos ventos ao brio,

mesmo no Brasil, depois de Tuiuti,

milhares de corpos queimaram por ali.

 

RIO DOS OSSOS IV – 13 novembro 2023

 

Porém no Egito a madeira é sempre escassa

e ali o clima é muito seco e quente,

não permitindo que se queimasse a gente;

de fato, um corpo a que o deserto abraça,

com frequência em múmia natural retraça,

melhor que as dos faraós, frequentemente,

sem os longos rituais que finalmente

guardavam corpos mutilados nessa traça.

 

Sem o cérebro, órgão internos retirados,

os corpos que se pretendia ressurgidos

fragmentados em seus vasos canópicos,

enquanto os pobres eram apenas enfaixados

e em vastas cavernas amontoados,

nessas crenças de cunhos mais utópicos.

 

RIO DOS OSSOS V

 

Não é de admirar que seus escravos

hebreus, retidos por quatrocentos anos,

copiassem costumes de seus soberanos,

mesmo na Terra Prometida, em que favos

manariam mel e leite, mas onde arvoredos,

que de algum modo permitissem cremação,

eram escassos por toda essa região,

sepultassem seus mortos em degredos.

 

Por igual entre os árabes, a sepultura

se fazia necessária sob a terra,

ou em cavernas que seus restos encerra;

e finalmente, como parte da cultura,

a prática egípcia alcançou perpetuação

entre os cristãos, por religiosa ordenação.

 

RIO DOS OSSOS VI

 

Posto na Europa fosse somente a religião,

pois lá havia bosques e madeira suficiente,

embora se afirme que a pobre gente,

mesmo em Roma depositassem pelo chão,

mas não recordo existir confirmação

de alguma vala comum sobrevivente,

salvo as catacumbas dessa gente crente,

judeus e cristãos a esperar ressurreição,

 

embora o Apóstolo Paulo, com clareza,

tenha escrito: “Semeia-se o corpo material,

mas ressuscita um corpo espiritual”,

desnecessário guardar ossos, com certeza,

em ataúdes até virarem poeira e giz,

ou nas tétricas catacumbas de Paris.

 

RIO DOS OSSOS VII – l4 novembro 2023

 

Será de fato uma coisa milagrosa,

chegado o dia da ressurreição,

se esses despojos se reencontrarão,

amontoados como estão em desditosa

separação para a ocupação mais proveitosa

do espaço dessa tétrica mansão,

as caveiras empilhadas em montão,

os ossos longos encaixados como em grosa,

 

as vértebras e os ossos mais pequenos

misturados em macabra coleção,

como as rótulas saberiam qual sua mão

ou cada pé ou como fariam seus acenos

as falanges ou se reuniriam os artelhos,

os mais recentes misturados aos mais velhos?

 

RIO DOS OSSOS VIII

 

Não obstante, ao longo dos milênios,

ossos antigos vão ser desenterrados

pelos arqueólogos e por legistas estudados

e assim terminam promíscuos nos procênios

de museus e depósitos para comparação

da maneira como foram alimentados,

dos protocolos com que foram sepultados,

sem temor de cometer profanação.

 

Até mesmo cemitérios mais recentes,

quando as cidades se expandem sem parar,

vão sendo de seus ossos despojados

e o que fazer, quando há razões prementes

ou grandes terremotos os vêm mostrar,

dificilmente a ser outra vez identificados.

 

RIO DOS OSSOS IX

 

Irão para valas comuns ou então cremados,

suas sepulturas a dar espaço aos vivos...

Ainda os sujeitos de vários séculos aos crivos

de tal destino por que seriam poupados?

Durante as guerras há tantos despojados

de suas vidas, seus restos tão esquivos,

para sua identificação em nada passivos,

raramente por objetos seus nomeados.

 

Na China havia tantos cemitérios,

conservados com intensa devoção,

(por apitos de trens seriam perturbados!),

que Mao Tsetung pôs um fim aos despautérios,

mandou desmanchá-los sem qualquer veneração,

para que os vivos ser pudessem transportados.

 

 

RIO DOS OSSOS X – 15 novembro 23

 

Mas tudo isso não passa de um ritual,

guardam os mortos entre choros e suspiros

e na suspeita de que possam ser vampiros,

com pesadas lápides os recobrem no final.

É compreensível venerar cada mortal,

que cedo ou tarde seguiremos iguais giros,

completados nossos tempos de martírios,

nossos corpos descartados por igual.

 

Mas qualquer seja o destino dos despojos,

os ossos lá estão, quer ainda inteiriços,

quer transformados em cinzas, poeira e pó,

que a Terra guarda a todos nos seus bojos,

os mais recentes e os ossos mais castiços,

frutos de ausências que nos causam dó.

 

RIO DOS OSSOS XI

 

Mas ao longo das eras, como um rio,

descem os corpos por vales e montanhas,

desventrados de memórias e façanhas,

apenas ossos, sem carne e sem mais cio,

a fria lava do ultrapassado brio,

à qual nos juntaremos após sanhas

de doenças, de velhice, de outras manhas:

minha própria morte diariamente eu crio.

 

Mas longe de temer ou lamentar,

um dia morrermos é nossa razão de ser,

não são os mortos que vêm-nos procurar,

mas nossos ossos é que os irão buscar,

para a essa imensa turba pertencer,

grande serpente humana em seu marchar.

 

RIO DOS OSSOS XII

 

De nossas carnes libertos da agonia,

dos ancestrais a partilhar o deeneá,

o rio dos mortos é que prosserguirá

muito depois de quanto a gente cria,

como uma ponte que também nos guia

para o futuro, que cada um reforçará,

sem os seus ossos pouco ou nada restará

para o futuro do derradeiro dia.

 

portanto, irmã ou irmão, alegremente

posta-te à margem desse rio dos ossos,

que são memórias da vida e não destroços,

vida após vida sob um sol clemente,

sonho após sonho a manter a humanidade

nessa cadeia que nos conduz à eternidade!

 

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