segunda-feira, 22 de abril de 2019


       A CARRUAGEM DA VIDA & MAIS
  WILLIAM Lagos, 11-20 mar 2018




A CARRUAGEM DA VIDA I – 11 MAR 2018

A carruagem da vida nos balança
Em movimento constante, lentamente,
Nunca apressada, nem tampouco assente,
Jamais se sabe onde o caminho alcança.

O certo é que a carruagem sempre avança,
Mais fácil a vereda ou mais ingente;
Aqui é plana, junto a água transparente,
Macia a areia, de embalar não cansa.

Mas de repente, nos surge um solavanco:
Geme a carruagem, geme o passageiro,
Até o invisível condutor solta um gemido,

Rangem as rodas, range o nosso banco,
Mas num puxão das rédeas, bem ligeiro,
O contrôle pelo auriga é reassumido.

                            A CARRUAGEM DA VIDA II

                            Mas de outras vezes, até se quebra o eixo
                            E o passageiro sofre o maior baque,
                            As táboas tamborilam em atabaque,
Perde-se a roda pela força desse seixo.

É necessário se obter ramo de freixo;
Às vezes galhos se consegue só de araque,
O passageiro sofre um peripaque,
Inesperada consequência do desleixo.

Deve a carruagem, então, ser rebocada
Para a oficina de um bom carpinteiro,
Capaz de consertá-la, bem ou mal;

Deve o cocheiro resolver essa empreitada
E enquanto isso, o triste passageiro
Deve passar alguns dias no hospital!

A CARRUAGEM DA VIDA III

Não que deseje apressar a sua chegada
A esse passo no alto da montanha,
Em que a carruagem, de maneira estranha,
Ascende aos ares ou tomba, despencada.

Minha viagem não é ainda terminada,
Nem a extensão da senda hoje me acanha;
Nos meus verões, o suor ainda me banha,
Nos meus invernos, fica a carne mais gelada.

Pouco me importa que termine esse caminho,
Mas bem queria evitar sérias doenças
Que os solavancos possam-me causar...

Balança pouco, então, gentil carrinho (*)
E me permite completar minhas crenças
Sem que o futuro possa ainda me assombrar
(*) Inspirado no Negro Spiritual, “Swing low, sweet chariot”.

AMOR SINGELO I –12 MAR 18

Certa feita, o poeta Anacreonte
afiançou, em um de seus poemas,
ter escutado à porta, fina apenas,
a flébil voz de levíssimo reponte.

Abriu a porta, encarou o horizonte,
baixando os olhos viu, estranhas cenas,
o Filho de Afrodite, Eros, suas penas
enxarcadas, a tremer nesse desponte.

Anacreonte o abraçou e o pôs no colo,
alimentou-o, junto ao fogo o aqueceu,
mas o deusinho mostrou-se bem ingrato:

tão logo seus pezinhos pôs no solo,
lançou-lhe seta que imenso amor lhe deu,
mulher alguma por perto, triste fato!

AMOR SINGELO II

Tornou-se a mãe do leviano Deus do Amor,
a lindíssima Afrodite, a sua paixão;
qualquer mortal veria partido o coração
ao esperar da altiva Vênus seu calor.

Compôs-lhe odes, no mais perfeito ardor,
mas Afrodite fez a Ares confissão
de como desprezava essa ilusão:
humano algum mereceria o seu valor!...

(Salvo apenas nos mais breves dos instantes).
Mas embora mil mulheres lhe mostrasse,
um tal amor jamais se dissipasse...

eram por ela seus sonhos mais vibrantes...
Zeus escutou e demonstrou-lhe compaixão,
do alto Olimpo a lhe estender a mão...

AMOR SINGELO III

Anacreonte, a interpretar as suas canções,
para deleite de tantas divindades,
jamais deixou-se levar por falsidades:
eram por Vênus inteiras as suas paixões!

Mas a Deusa do Amor os corações
dos humanos só tocava sem bondades;
logo os amantes trocados por vaidades,
sem receber quaisquer satisfações!...

Não lhe importava que o amor fosse por ela;
até beijou Anacreonte uma e outra vez,
porém na dádiva e delícia do desdém...

Mas consolou-se com a proximidade dela
e até hoje permanece, se assim crês,
no Paraíso, a lhe implorar também...

AMOR SINGELO IV

Alguma vez a deusa lança o olhar,
numa mistura de pena e de desprezo,
sobre o pobre poeta, o amor ileso
a refletir-se sempre em seu cantar...

E só de vê-la vai-se o pobre consolar,
na eternidade do amor a ver-se preso;
e só de vê-la, é de amor rico como Creso
e só de vê-la ainda maior seu suspirar...

Mas ao anjinho Eros por sua travessura
não sabe se agradece ou amaldiçoa;
ele sorri-lhe, às vezes, sorrateiro,

oculta nesse amor maldade pura,
nunca a esperança de fato sendo boa
de junto dela acolher-se por inteiro...

AMOR SINGELO V

Há tanto amante de idêntica atitude:
que só de ver a amada se consola!
Ou mesmo sem a ver, na mente evola;
que em breve a reverá então se ilude.

E por mais que a bem-amada seja rude,
seu coração sofre o stent de tal mola,
vive no abraço de uma imensa argola,
nessa aliança de amor que nunca mude...

Por isso tantos explicaram tais paixões
por uma seta lançada em travessura
desse deusinho erótico e brejeiro,
alvejando alternados corações,
nesse círculo incompleto que perdura
e raras vezes se completa por inteiro!

AMOR SINGELO VI

Anacreonte foi um homem bem real,
mas a visita desse anjinho foi poesia;
alma singela talvez nela creria,
talvez mordida por amor no Carnaval.

Foi desprezada por quem não lhe quer mal,
mas cuja alma igual amor não sentiria,
porque o deusinho brincalhão provocaria
que seu amor fosse lançado a outra mortal.

Já não afirmo que pisou no Monte Olimpo,
nem em qualquer semelhante paraíso.
Salvo nos sonhos jungidos do poeta

A inspiração é o seu amor de peito limpo,
bem lá no fundo a esconder seu riso,
que amor negado maior paixão completa!

NA CASA DAS CHUVAS 1 –13 MAR 18

Quando era jovem e frequentava a igreja,
A cada vez que o calor nos apertava
“Chuvas de Bênçãos” o povo ali cantava,
A Deus rogando, aonde quer que esteja.

Coincidência talvez apenas seja,
Mas noventa por cento das vezes nos molhava
Em breve a chuva que do céu manava,
Que o ar refresca e o solo inteiro beija...

É bem verdade que houve longa seca
Há uns trinta anos; fez-se escassa a água,
Resultado de grave imprevidência,


Em que o governo local de fato peca,
Muito mais que o hino causa mágoa,
Granjeando só a abstenção da Providência!

NA CASA DAS CHUVAS 2

Passam os anos e se fala na barragem
Que até hoje jamais foi completada,
Mesmo a verba tendo já sido enviada
Mais de uma vez e dispendida por bobagem

Em outros fins, mil desculpas com coragem:
É que a terra deverá ser inundada
E para isso, deve ser desapropriada,
Com resistência dos proprietarios da paisagem.

Dizem que tudo está trancado na justiça,
Cujos processos são muito demorados
E o enfrentamento da feroz burocracia,

Outras agências entrando nessa liça.
Passam-se os anos, depressa ou demorados,
Da tal barragem nunca chegando o dia!

NA CASA DAS CHUVAS 3

Alguns abriram poços artesianos,
Outros os poços de fluência natural,
Igual que antigos, antes da vital
Distribuição de água pelos canos...

Verdade é, que em todos esses anos,
A seca não voltou, dura e fatal;
Não veem governos razão para, afinal,
Dispender esses gastos soberanos!

Naturalmente, nos tem chovido bem
E em certos anos, chove até demais,
Do problema a afastar certa premência.
“Chuvas de Bênçãos” se cantará também
Quando secarem as fontes naturais
E a sede levar muitos à demência!... (*)
(*) Inspirado pelo Negro Spiritual, Showers of Blessings.

NA CASA DAS TELHAS I – 14 MAR 2018

PARA OS HUMANOS É O TELHADO PROTEÇÃO;
QUE NÃO CAIAM SOBRE NÓS AS TEMPESTADES,
NEM A POEIRA NOS SUFOQUE EM SUAS MALDADES;
PARA OS GATOS, PORÉM, SE TORNA O CHÃO!

ELES ANDAM POR ALI EM DIVERSÃO,
QUATRO PATINHAS, SEDOSAS EQUIDADES,
PORÉM BOQUINHAS SEM QUAISQUER PIEDADES:
PARDAIS E POMBAS EM PERIGO ESTÃO!

NEM É POR FOME, ANTES POR INSTINTO;
VÊM, ONDULANTES, ATÉ O DESCUIDADO,
SÃO CAÇADORES NATOS, SIMPLES FATO!

E SEU BOTE SANGRENTO ENTÃO EU PINTO,
NUNCA MAIS VOA O PARDALZINHO ASSIM CAÇADO
(E ATÉ DIZEM QUE INIMIGOS SÃO DO RATO!)

NA CASA DAS TELHAS II

CONTUDO OCORRE QUE OS PÁSSAROS SE EXPÕEM,
SÃO CRIATURAS DA LUZ, DO SOM, DO CÉU!
ENQUANTO OS RATOS MAIS SE OCULTAM SOB O VÉU
DOS PORÕES E DOS SÓTÃOS EM QUE ROEM.

BASTANTE RARO QUE GUINCHOS AGUDOS SOEM
DE ALGUM FILHOTE QUE SE PERDEU AO LÉU,
DENTES DE GATO AGUDOS COMO ARPÉU
(AS CICATRIZES DE MINHA MÃO DEPÕEM

DESSE  GATO GATUNO QUE INVADIU
CERTO DIA, A COZINHA DE MINHA CASA,
A PASSAR JÁ NÃO SEI QUAL FOI A FRESTA.

FECHADA A PORTA, O BICHO ME ILUDIU,
TENTAVA ABRIR, MAS NÃO ME DAVA VAZA
E SUA MORDIDA MINHA SORTE ENTÃO EMPESTA!

NA CASA DAS TELHAS III

MAS NOS TELHADOS DOMINAM OS FELINOS,
OS PORTÕES ULTRAPASSAM, SORRATEIROS,
FRANQUEIAM MUROS, NO PULAR LIGEIROS
E NOS CONTEMPLAM COM OLHARES ASSASSINOS!

SÃO BONITINHOS ENQUANTO PEQUENINOS,
NOS SEUS BRINQUEDOS ÁGEIS  E LAMPEIROS,
CARINHAS DE NENÊS MOSTRAM BREJEIROS,
MATERNO INSTINTO A DESPERTAR, MIADOS FINOS...

MAS QUANDO ALI SE ENCONTRAM DOIS GATINHOS,
PÕEM-SE A MIAR EM FEROZES DESAFIOS
OU ENTÃO ESGUICHAM SUA URINA MALCHEIROSA,

PARA ATRACAR-SE COM AS UNHAS E DENTINHOS,
MORRENDO ALGUM A DEFENDER SEUS BRIOS,
DESAFIADOR, VAI-SE O OUTRO, MUITO PROSA!

NA CASA DAS TELHAS IV

ALI SE PÕEM, IGUALMENTE, A NAMORAR,
UMA ALGEROSA SEU LEITO NUPCIAL;
SE ALGUM CHIADO OS IMPELE PARA O MAL,
CAEM DE PÉ APÓS AGIL MANOBRAR.

DE FATO, OS GATOS PODEM TRABALHAR
COM TRÊS VÉRTEBRAS A MAIS DO QUE O NORMAL
ENTRE OS HUMANOS – E DÃO SALTO MORTAL
ANTES QUE A QUEDA OS VENHA A MALTRATAR.

E SOBRE AS TELHAS CANTAM AS SUAS ÁRIAS,
EM DESAFIO OU PARA ACASALAR,
FORA DO ALCANCE DOS INCOMODADOS,

AMEAÇADOS COM IMPRECAÇÕES MAIS VÁRIAS,
A NÓS HUMANOS SEMPRE A DESAFIAR,
NA CONDIÇÃO DE REIS DESSES TELHADOS!

NA CASA DOS PIOS I – 15 MAR 18

Alguns relógios ormolu têm as casinhas
de onde saltam os passarinhos Cuco;
na natureza existe o Melharuco,
que canta mais quando dele te avizinhas;

contudo, o que mais temem abelhinhas
é o longo bico certeiro de um Abelharuco;
cá no Brasil nós temos o Macuco,
que solitários levam suas vidinhas...

Há o Macuquinho, também, nestas florestas;
não o confundas, porém, com um macaquinho,
que ave não é, ainda embora faça o ninho

no alto das árvores e em suas festas
inclua folhas, bichinhos, qualquer fruta,
mas suas feições de aparência bem mais bruta.


NA CASA DOS PIOS II

Também existe o Cuco de verdade,
um belo e rabilongo passarinho,
espertalhão, voando de mansinho,
explorando aos demais com falsidade;

na ausência de outra ave, sem maldade,
a fêmea põe seus ovos noutro ninho,
que outros choquem com morno carinho
(sobrevivência nessa engenhosidade).

Algumas vezes, o ovinho se mistura
aos das aves que o aquecem e alimentam,
mas de outras feitas, é bem menos gentil

e joga fora, com malícia pura,
os ovos verdadeiros, que rebentam
no solo duro, ato malvado e vil!

NA CASA DOS PIOS III

Nunca entendi que o Cuco leve a fama
de ser macho enganado nesta treta;
em várias línguas a acusação discreta
de outro macho dormindo na sua cama;

pois é o macho da outra espécie que sua dama,
junto com a fêmea de atenção dileta,
fará alimentar, qual sua cria predileta,
essa boquinha vermelha que lhe clama.

Konrad Lorenz já provou, na Etologia,
que uma ave normalmente só alimenta
a boca aberta na moldura de seu ninho

e se o filhote cair, em sua agonia,
ignorado será, enquanto tenta,
piando agudo, obter algum carinho!...

OBSTETRA I – 16 MAR 2018

Parto da mente, outra vez, venho induzir:
sangue de tinta terão os meus nenês;
sua carne é de papel, se bem me crês,
para depois ao digital os transferir.

Sou um parteiro, o sonho a traduzir,
nessas cesáreas em que não me vês,
diariamente rascunhando ao menos três
dos filhotinhos que venho a produzir.

Algumas vezes, o parto é natural,
se Dionyso assopra-me ao ouvido,
mas a outras obras, Apolo é quem me chama

e dessas feitas, o esforço é mais real:
talvez com fórceps só o verso é assim trazido
para essa luz com esplendor de flama.

OBSTETRA II

A mulher fértil e bem acompanhada
não precisa de recorrer aos artifícios;
em sua prenhez só encara benefícios:
não necessita dar à luz mais nada!

Mas ao homem tal vereda é denegada,
da dor do parto não sente os malefícios,
mesmo que queira ser Mãe, por quaisquer vícios,
em si não traz matriz tão abençoada.

Talvez ocorra na ficção científica
algum tipo de gestação parenteral,
mas ao que eu saiba, não há tecnologia

e sem presença da bênção pontifícia
não cabe ao homem o parto intestinal:
após o esforço, o fruto da alegria.

OBSTETRA III

Já a mulher que nunca deu à luz,
por ser estéril ou por má circunstância,
não participa dessa comum constância
de transmitir da humanidade a cruz.

Na ausência dessa bênção que produz,
da arte ou ciência acolhe-se na instância
ou então transfere sua materna ânsia
a um adotado, no amor que este lhe induz.

Homens, contudo, são sempre insatisfeitos,
por isso a fome de uma outra produção,
na poesia, no drama ou na escultura,

ânsia paterna à qual se acham sujeitos,
na falsa obstetrícia dessa ação,
sob o impulso constante dessa agrura!

NA CASA DA AREIA I – 17 MAR 18

A areia se despenca na ampulheta
e cada grão é outro ser humano;
contra o vidro se apoiam com afano,
mas a sucção com voragem os afeta.

Cedo ou tarde, a descida se completa;
já foi descrito como impulso desumano
esse empurrão dos outros, sem engano,
na morte alheia sua garantia abjeta.

Já vi desenhos em que, no alto do aparelho
vão sendo, aos poucos, nenês depositados,
adolescentes os braços tendo alçados,
pisando em cada adulto e em cada velho,
ao sorvedouro todos empurrados,
já como ossos refletidos nesse espelho.

NA CASA DA AREIA II

A ampulheta é um artefato muito antigo,
a clepsidra de outra parte a competir
ou o gnômon, a luz do sol a traduzir,
as lentas horas a registrar consigo.

Uma ampulheta requer constante abrigo,
sobre a bitácula a atenção a conferir
dos grumetes, nos veleiros a assistir,
mas de partir-se sempre existe algum perigo.

Já a clepsidra é muito mais segura,
quando sua hidráulica foi bem planejada
e nunca falta de água o suprimento.

Só o gnômon que depende da luz pura,
que céu nublado o faz descontrolado,
as estações a atrapalhar seu movimento.

NA CASA DA AREIA III

Porém, a ampulheta em que habitamos
não se quebra e nem precisa ser virada;
a nossa vida já está nela demarcada:
areia somos e assim nos derramamos.

Qual clepsidra também nos comparamos,
pela hidráulica do sangue manejada;
se não houver uma sangria inesperada,
por ele o movimento conservamos.

De certo modo, também é a luz do sol
que aciona o gnômon dos mortais;
sem luz solar, as plantas estiolam,

toda a vida a depender desse farol,
mesmo os grãozinhos de areia siderais
que com horóscopos e estrelas se consolam...

NA CASA DO GOLEM 1 – 18 MAR 18

Quando o Golem acorda, tem noção
Apenas de que existe, pois nem sabe
Se é ou quem ser fosse; apenas cabe
Seu fluxo neurológico e sem razão.

Não pensa ainda, é pura sensação
Que se difunde, aos poucos, pelo barro.
É recipiente, pouco mais que um jarro,
O fruto inutil de estéril emoção.

Quando recorda, é só dos mandamentos,
Não de ser fruto de alheia criação:
Só o motivo a obedecer por que foi feito.

Tampouco me recordo dos portentos
Que me criaram, mal conheço minha função,
Por mais que sinta seu ardor dentro do peito.

NA CASA DO GOLEM 2

Já nos mencionam as Santas Escrituras
Que o ser humano criado foi do barro;
Poeira e umidade de um divino escarro:
Seria moldado em suas fomes duras.

Porém não tinha o homem como esparro
Senão os animais, em suas agruras,
Companheiras precisando ter mais puras,
De sua semente um mais formoso jarro.

Destarte o adormece a Divindade,
Para dele retirar uma costela,
Formando sua mulher à semelhança,
Nesta imagem de poética humildade,
Seu DNA vai transmitir-se a ela,
Na alegoria que a mente antiga alcança.

NA CASA DO GOLEM 3

O Golem é de barro e o somos nós.
Traz sobre a testa uma palavra hebraica;
Sua vida lhe confere a letra arcaica,
Brilham seus olhos em bordado de retrós.

Basta uma letra apagar e ao ser atroz
A morte traz outra expressão judaica;
Basta a coragem de pessoa laica
Para o extermínio desse imenso algoz.

O Golem foi criado a combater
Os inimigos da povoação semita
E tem assim sua vida artificial.

Não está vivo e não pode morrer,
Para matar somente ele se agita,
Sem qualquer intenção de fazer mal.

NA CASA DO GOLEM 4

Todos nós somos de barro bem igual,
Mas podemos escolher o mal ou o bem,
Embora feitos para morrer também,
Cedo ou mais tarde neste mundo natural.

Quem sabe em nossa testa este sinal
Desde o berçário sobre nós se atém;
Não duraremos nem um dia além
Do que apagarem só uma letra no final.

Os frutos tristes do divino escarro,
Sua existência de antemão delimitada,
Não há magia no desmanchar do barro

E só deixamos de nós alguma argila...
Pensando bem, é tudo e quase nada,
Marco miliário de longa e extensa fila...

NA CASA DO LUAR i – 19 MAR 2018

A LUZ DA LUA ESCORRE DA JANELA
E POUSA NOS MEUS PÉS, DURA E PESADA,
COMO COBERTA FRIA REENCARNADA,
A LUZ DA LUA ME SOBE ATÉ A COSTELA;

VEM OPRIMIR-ME O PEITO, SENTINELA
DO SONHO QUE MINHA VIDA OTIMIZADA
SATISFARIA A MINHA FOME DESPREZADA
NA IMAGEM ESPECULAR DE VIDA BELA.

A LUZ DA LUA QUE TANTO ME INSPIROU
TORNOU-SE PEDRA GÉLIDA EM MEU PEITO:
BATE EM CRISTAIS MEU VELHO CORAÇÃO,

DE MODO TAL QUE A MAGIA RETIROU
DE TUDO QUANTO CRIA SEM DEFEITO
NESSA LUZ MATERIAL DE OBUMBRAÇÃO.

NA CASA DO LUAR II

NÃO SINTO A LUZ DO LUAR EM LEVE CHAMA,
ELA ME QUEIMA A ALMA E A DEIXA INQUIETA,
LUAR SELENE QUE O SONHO ME INCOMPLETA,
LUA ASTARTEIA, CARNE PÉTREA MAIS LEVIANA.

JÁ QUANTAS VEZ O HOMEM A RECLAMA,
COMO SENDO MULHER E DE INTENÇÃO SECRETA,
ÀS VEZES VÍVIDA, NA PRATA MAIS DILETA,
ÀS VEZES A TROCISTA QUE SE IRMANA

AO CORO DAS ESTRELAS DO DESTINO
QUE NO ZODÍACO QUISERAM INCLUIR,
COMO SENDO O TRAJETO PARA O SOL,

MAS QUE APENAS TÊM UM BRILHO PEQUENINO
E SÓ DE NOITE SEU FULGOR A RELUZIR,
TODAS OCULTAS DESDE O ARREBOL.

NA CASA DO LUAR III

A LUA EU SINTO ENTÃO COMO PESADA,
ESSE MERCÚRIO QUE PARA MIM SE ARRASTA,
MAS QUANDO O BUSCO, INTEIRO JÁ SE AFASTA,
PURA E FULGENTE, NÃO ME CONCEDE NADA,

IGUAL MULHER, QUE AO SABER-SE REQUESTADA,
AO CORTEJAR ENAMORADO DÁ UM BASTA,
MAS QUE DEPOIS DE SE MOSTRAR TÃO CASTA
PODE ENTREGAR-SE, TOTAL E APAIXONADA.

COMO CONFIAR NESTA LUA QUE ME ESPIA
E QUE A SEGUIR SE FAZ TODA MINGUANTE,
ATÉ OCULTA FICAR NA LUA NOVA?

SERÁ QUE DESSE ESCURO ME VIGIA,
ENQUANTO A BUSCO COM MEU OLHAR VIBRANTE,
DA ESCURIDÃO DE MINHA PROFUNDA COVA?

NA CASA DO LUAR iv

ASHTORETH, LILITH, LUNA VELHA,
TÃO CHEIA DE BURACOS A TUA FACE,
COMO TUA LUZ DESSE DESTROÇO FAZ-SE
TÃO IMPONENTE NA CHEIA QUE SE ESPELHA?

NÃO É A MÃE DO AMOR. A SOBRANCELHA
DE VÊNUS É QUE FEZ COM QUE TE AMASSE,
EMBORA SEU ACÚMEN SE MOSTRASSE
EM PONTIAGUDO FULGOR, CONSTANTE A TELHA

DE SEU BRILHO FUGAZ EM MINHA CABEÇA,
FORTE O BASTANTE PARA ENFRENTAR O SOL,
EMBORA A LUA TAMBÉM ASSIM O FAÇA.
REFLETE APENAS NESSE LANGOR SUA JAÇA
A LUZ DO SOL E QUE JAMAIS SE ESQUEÇA
QUE A MÃE DO AMOR TEM SEU PRÓPRIO FAROL.

A GRANDE MUTAÇÃO I – 20 MAR 2018

Desse Adão feito de barro uma costela
tirou Moisés, para explicar ao povo
de que forma a geração teve renovo,
sendo do homem formada uma donzela.

Também Platão inventou sua lenda bela
das Duas Metades, para os deuses um estorvo
o ser humano, de seu orgulho o sorvo
esgotando nesse sangue que o congela.

Alguns dizem que foram só os dentes
que sobre a terra Deucalião semeou,
dos quais brotaram os demais seres humanos

e noutras lendas, que possuem seus crentes
do fogo em cinzas nosso pai brotou,
dali tirando a mulher em mil afanos...

A GRANDE MUTAÇÃO II

Ou que nascemos de pétalas de flores,
de crisântemos ou, quiçá, de cerejeiras
ou entao de brisas que Éolo soprou certeiras
até o seio de Afrodite em seus fervores.

Ela nasceu do sangue e sem amores,
entre ondas de espuma forrageiras,
porém tais vagas se formaram, tão arteiras,
do sangue da Serpente, em estertores!...

Filhos do Amor e também filhos do Mal,
não é de surpreender as variedades
que apresentamos de bons e maus humores,

nessa mescla de Quaresma e Carnaval,
entre a Arte e as Ciências e as veleidades,
entre as delícias da Vida e seus temores.

A GRANDE MUTAÇÃO III

Também se mencionou que algum cristal,
bafejado de arcana luz espiritual,
quebrou-se e trouxe à luz o vegetal,
algas e líquens a beber a água de sal.

Cresceram árvores, em orgulho triunfal,
e a casca de uma certo dia, por raio divinal,
fendeu-se inteira, dando à luz o animal
que as plantas come, em ingratidão real.

Outros que foi de tartaruga, em seu final,
cujo casco se fendeu, artificial,
que se expandiu dos humanos seu fanal

e em mutação um ventre surge, natural,
divina e nua, a Mulher, que luz total
trouxe ao Homem, em seu seio maternal.

A GRANDE MUTAÇÃO IV

Todas as lendas e as mil alegorias
se destinam aos humildes explicar
a formação da Raça e a confirmar
nossa origem comum nessas poesias.

E se Hesíodo na Teogonia crerias,
dos próprios deuses a origem a informar,
Urano a Chronos conseguiu gerar
e este a Zeus com Gaia, em alquimias...

já não se atrevem as Santas Escrituras
a indicar de Deus a criação,
que no princípio só mostrou-se em Luz,

o Céu e a Terra a surgir das fontes puras
de uma semana de extensa duração,
que ao Fundamentalismo nos conduz.

A GRANDE MUTAÇÃO V

Mas como um dia de vinte e quatro horas,
se o Sol e a Lua só criou no quarto dia?
Seria bem diversa a sua valia,
Manhã e tarde criadas em desoras...

Houve três dias contidos nas esporas
da Divindade, em sua Arqueogonia.
Confuso o tempo que inicialmente cria
ou aos primitivos necessárias tais escoras?

Para mim, não há qualquer contradição
entre a Ciência e a Santa Teologia,
idêntica a ordem aplicada à criação,

vastos períodos foram assim na Teurgia
dos seis dias dessa antiga evocação,
até hoje a perdurar o Sétimo Dia...

A GRANDE MUTAÇÃO VI

Do mesmo modo, nosso primeiro Adão
foi gerado por mulher Neanderthal
ou Heidelberg e pelo sopro divinal,
silenciosa, chegou a Grande Mutação,

nele surgindo o cérebro cortical,
seu esqueleto a sofrer transformação;
à Mãe de Barro a causar perturbação,
sem permitir que lhe fizessem qualquer mal.

Sua inteligência bem maior que a dos demais
a permitir-lhe fecundar múltiplas Evas
e em sendo dominante a mutação,

logo espalhou-se entre esses animais,
carne de barro das gerações coevas,
até sua final e permanente difusão.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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