segunda-feira, 22 de abril de 2019





DECADÊNCIA & MAIS – 25/8-03/9/2016
Novas Séries de William Lagos

DECADÊNCIA I – 9 OUT 07

Esvazio os pulmões, em forte rufo,
que pode ser sintoma de algo mais
ou talvez, nem diga nada. Pois jamais
sinto sintomas de tosse, fleuma ou bufo...

Não sinto, em absoluto, falta de ar:
é como se, ao contrário, ar demais
se acumulasse em mim, talvez fatais
prenúncios, que me possam dominar

no futuro, outras ânsias... Talvez fortes,
porque a idade acomete, sorrateira,
quando menos se espera... Não é lenta,

é progressiva e faz pequenos cortes:
retira um pouco aqui e ali, brejeira,
muito de leve e, aos poucos, se alimenta...

DECADÊNCIA II – 25 AGO 2016

É bem comum, no sexo masculino,
durante décadas mostrar-se quase igual,
tal qual se idade não nos trouxesse mal,
o rosto liso, igual quando menino.

Porém, subitamente, toca um sino
e chega o tempo, impondo o seu ritual,
sem mais protelação do natural
e se mostra algum sinal, ou pequenino

ou de repente, por efeito de doença,
ou qualquer lástima, incômodo ou tristeza
e os anos se revelam, de repente

e então se manifesta a decadência,
sobre o indivíduo mostrando sua proeza,
quando o transforma em velho, velozmente...

DECADÊNCIA III

Talvez, então, lhe cause um “peripaque”,
qualquer moléstia repentina e já mortal,
sua exigência sendo rápida e final,
o velho-moço sofrendo o seu ataque...

Era por dentro que se formava o baque,
sua mocidade tão somente artificial,
a decadência já instalada bem fatal,
sem dar margem ao rebate de um só saque.

Enquanto isso, a mulher logo decai,
confundida a juventude com beleza
e em duas décadas, tal aparência esvai,

buscando então os muitos artifícios,
para burlar a má-fé da Natureza,
tão depressa a lhe mostrar seus malefícios...

DECADÊNCIA IV

Surgem as rugas e lhes decaem os seios,
perdendo a antiga firmeza original,
a menopausa a impor seu grande mal,
do abandono a trazer-lhe seus receios.

É então que envida os mais potentes meios
para o recobro da juventude artificial,
entre os cosméticos e o hormônio natural,
a velhice disfarçando em tais arreios...

Porém percebe já estar perdendo a luta,
após perder pelo sexo o interesse,
enquanto ainda o conserva seu marido;

inventa então a andropausa, na mais bruta
defesa que contra alguma amante desce,
mesmo que o par já não seja mais querido.

DECADÊNCIA V

Na realidade, andropausa é coisa rara
na maioria dos homens inexistente,
mas provocada em alguns assaz frequente,
numa intenção que permanece clara,

que alguma amante lhe parece coisa cara:
nem é ciúme de seu corpo ainda presente,
mas do dinheiro que gastar pressente,
satisfazendo isso que chega a chamar “tara”.

Entre os chineses, na verdade, era costume
e em certa partes talvez hoje permaneça,
a aquisição de alguma jovem concubina,

que a função sexual da esposa assume,
sem que os direitos da esposa alguém esqueça,
que firmemente controla essa menina...

DECADÊNCIA VI

Mas entre nós, o costume é diferente,
apoiado pelas leis e a religião;
se alguma amante for tomada na ocasião,
para um divórcio dará motivo consequente.

E do marido os bens conserva, permanente,
bem garantida em tal retaliação,
tudo tomando e a cobrar mais a pensão,
pouco deixando para a rival presente...

Da decadência é tal ritual sobeja
causa fatal para esse moço-velho,
que uma repele e a outra já não beija...

Feliz de quem se consola com sua dita
e como velho contemplando-se no espelho,
para nenhuma outra aventura se concita!...

DOLO I – 9 out 2007

Quando a mulher percebe que o sorriso
muito mais belo a deixa e sedutora,
senhora desta arma, sem demora,
a emprega na conquista, sem aviso,

daquele alvo fácil...  Faz que pense
que é ele quem conquista e que domina...
A mulher, normalmente, em cada esquina
controla quem quiser e fácil vence,

porque é certo que a mais ignorante
das mulheres enrola em seu dedinho
o homem tido por mais inteligente,

conquistado no sorriso de um instante,
reconquistado por natural carinho
e escravizado por um amor potente...

DOLO II – 26 AGO 2016

Sincera ou não, a arma é verdadeira
e a mulher bem sabe o que deseja,
mesmo de longe, quando seus dedos beija
e nos assopra em vaga bem certeira!

Existe aquela em que a arma é corriqueira,
novas conquistas sempre a si enseja;
o parpadear dos cílios nos adeja,
lançando arpões como pregões de feira....

E existe aquela que se determinou
a alcançar o alvo único que almeja,
para essa arma empregar com perfeição,

enquanto o homem certamente se enganou,
pensando ser aquele que a corteja,
quando de fato é a presa dessa ação...

DOLO III

Com brancos dentes cada mulher sorri,
num cintilar de pura “refrescância”,
como aquele comercial, hoje à distância,
que o termo supra nos difundiu aqui...

Em tais sorrisos eu nem sempre cri,
nem sequer nos momentos pós-infância;
mas quem me soube sorrir com elegância,
trouxe lampejos dos quais nunca esqueci.

A própria Bíblia a comentar num verso:
“Terrível como um exército com bandeiras”,
é tal mulher que passa  e nos sorri,

na comissura dos lábios canto inverso
daquelas que nos olham altaneiras,
igual que a gente nem estivesse ali!...

DOLO IV

Há outro dolo nesta expressão contida:
pelo canto dos olhos se abre engate
na avaliação futura de um embate,
em captura tantas vezes repetida!...

Em piadas caricatas é inserida
uma figura troglodita, quando abate
com sua clava, a fêmea num combate,
pelos cabelos a arrastar essa escolhida...

Mas terá isso alguma vez acontecido?
Desenham pregos nas claves primitivas
e um golpe certo é bem capaz que a mate!

Acho difícil que algo assim tenha ocorrido,
decerto tapas, redes ou outro empate,
armas melhores para noivas mais esquivas!

DOLO V

Mas a mulher possui outros artifícios,
que mais não seja, feromônios em perfume,
quando um olhar opalescente logo assume,
na testa adornos como frontispícios...

Os seus cabelos no requinte desses vícios,
bem calculados, com que o rosto esfume
ou o alimento que prepara no seu lume,
mais a promessa de brejeiros benefícios...

Será então que ainda precisa do sorriso?
Pois causa susto entre povos mais selvagens,
tal qual se os dentes assim arreganhasse!

A face atenta a demonstrar um pleno siso,
sempre capaz de sugerir novas paragens,
sem que um sorriso nela se estampasse!...

DOLO VI

Por isso chamo “dolo” à covardia
desse sorriso, com que sabe dominar,
na indicação, quiçá, de seu beijar,
no lusco-fusco do desejo que sentia...

Talvez esteja aqui falando uma heresia,
mas há traição mesmo ali no meigo esgar,
uma vantagem que sabe bem aproveitar,
suas feições revestindo de harmonia...

Pois certamente não é simples inocente,
e raramente me podem desmentir:
para os tesouros do amor essa é a janela!

Arma gentil que sempre a torna mais potente,
timidamente ostentando o seu sorrir,
que sabe bem a torna ainda mais bela!...

AMOR DE CÂMARA XVII – 2007

A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,

por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...

E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...

E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...

AMOR DE CÂMARA XVIII – 9 out 2007

Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...

E eu! Que escravo sempre fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...

E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...

No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...

HUMILHAÇÃO I – 10 out 2007

Por enquanto não posso para mim o teu sorriso
guardar zelosamente, em sonho tão perfeito.
Embora lamentar não tenha algum direito,
apenas um lembrete fazer-te ainda preciso:

Que tenhas outro amor, que sejas generosa,
é bem direito teu, teu dom particular.
Concordo que outros homens desejes abraçar:
jamais eu negaria orvalho à pura rosa...

Porém me dói saber que tenha alguém agora
o que não pude ter, em gozo palpitante,
sabendo muito bem que em nosso amor, outrora,

prazer não recebi de ti, em meigo instante.
Tu não me deste igual, mulher: não tive a aurora
de em ti me derramar no orgasmo delirante...

HUMILHAÇÃO II – 27 AGO 2016

Será que dói de fato a humilhação
desse desprezo que para mim mostraste?
Será apenas saber que te entregaste
a alguém que tenha menos nobre formação?

Que teu sorriso, gardênias em botão,
seja colhido, depois que mo mostraste,
por algum mais que para mim afaste
esse tesouro que escapou-se de minha mão?

Será que dói, de fato, essa tristeza
de que fui eu que não te mereci,
que foi por própria culpa que perdi

a dupla jóia, azul como turquesa,
que contemplei, tão de perto, em teu olhar,
porém não fui capaz de conservar?

HUMILHAÇÃO III

Será que eu mesmo, por perversidade,
mescla de enleio e de autopunição,
para fugires de mim dei-te razão
ou te perdi por pura ingenuidade...?

Que tenha sido em covardia, na verdade,
que não soube competir pela emoção,
que um dia pensei, em vaga exaltação,
ser minha plena, em integralidade...?

Será, talvez, que me julguei como inferior
àquele que almejava o teu amor
e desta forma, te afastei de mim...?

Será que me entreguei a um falso orgulho,
sem me dispor a combater o esbulho,
e destarte te entreguei para o arlequim...?

HUMILHAÇÃO IV

Será que posso, realmente, discernir
quais os motivos por trás disso tudo...?
Será que de algum modo ainda me iludo
ter sido eu mesmo que te deixei fugir...?

Será que penso esteve em mim o permitir
lançar dos dados nesse amoroso ludo...?
Será que pude imaginar, contudo,
que outro desfecho pudesse definir...?

Será que, eventualmente, se eu lutasse,
o resultado terminaria igual
e de nada adiantaria o que fizesse...?

E se no fundo, por mais que batalhasse,
pertencerias mesmo a meu rival,
nessa roda do destino que acontece...?

HUMILHAÇÃO V

Será que então, nas vascas do temor
de ser, de qualquer modo, derrotado,
me recusei a ser por ti humilhado
e não mais me esforcei por teu amor...?

Será, talvez, que busquei ser sofredor,
para sentir-me assim martirizado
e as flébeis sensações aproveitado
para ampliar o meu poético pendor...?

Já muita vez pensei que fosse assim,
que tal amor derruído no passado,
que meu desejo nesse então decapitado,

fosse plantado dos sonetos no jardim
e reflorisse em cantos de verbenas
na multidão servil de meus poemas...

HUMILHAÇÃO VI

Pois te confesso que gozei outros amores,
mil sorrisos que agora se misturam,
essas mil faces que nos olhos não perduram,
que nem recordo após mil estertores...

Rasgo a memória, perdidos seus pendores,
esquecidos os mil lábios que então juram,
mal lembrados mil prazeres que me curam,
em sua nuvem majestosa de calores...

E que todos os mil beijos que gozei,
em uma só e única boca se confundam,
sem que eu esqueça aquela que não tive,

o terciopelo dessa carne que almejei,
humilhações que sobremodo abundam,
que matar eu busquei, mas não contive!...

ALFORRIA I – 11 out 2007

Tal como encantamento se quebrasse
[ou fosse sobre mim, então lançado],
despertei de meu sono, descansado,
e senti como se amor não mais cantasse,

no interior de meu peito; e levantasse
de sobre mim seu véu.  E o olhar magoado
mirasse em torno e um mundo renovado
dos céus à terra de novo contemplasse.

Teu amor dissipou-se, doce estrela...
A flor azul totalmente emurcheceu,
despetalou-se...  E a pétala singela

que sobre o caule ainda permanece,
perdeu o antigo brilho...  E reviveu
meu coração vazio, em muda prece...

ALFORRIA II – 28 AGO 16

Mas quem disse que tal foi libertação?
Em todo amor existe a servitude,
que seja algo de livre nunca ilude,
se houver amor, também existe servidão.

Não somos donos de nosso coração
e nem queremos ser, Deus nos ajude!
Fugir ao amor é vã tarefa rude,
escravos somos todos da emoção.

E se no amor ainda livres nos sentimos,
alternativas podendo procurar,
não é real de amor a parceria...

Mas pelo sexo tão só nos seduzimos,
sem fatores mais nobres demonstrar,
enquanto a busca ainda livre seguiria...

ALFORRIA III

O que sempre nos atrai é a sedução
de um novo amor, os olhos a piscar,
essa ânsia de invadir-lhe seu olhar,
para gozar das delícias que ali estão,

apenas entrevistas na ocasião,
no anseio oculto para a raça continuar,
que bem sabemos continua a dominar
os julgamentos, a colorir cada emoção.

De fato, somos falsamente racionais,
sempre guiados, até maugrado nosso,
pelas leis que nos impõem os cromossomos,

que não podemos dispensar jamais
(ou que querer dominar sequer não posso),
até esse dia em que algures formos. 

ALFORRIA IV

É bem verdade que as correntes desse amor
nos libertam das prisões de nosso egoísmo,
pois quem ama é infundido de altruísmo:
quanto se dá, mais se ganha de valor...

Na amorosa construção há mais calor
ou talvez conformidade a tal modismo;
mas certamente é o mais buscado abismo,
no qual saltamos com algum temor!...

Não da recusa – mas da aceitação,
ao abdicarmos da falsa liberdade
de nos podermos conservar em solidão;

e nessa aceitação da servitude,
caso a aceitemos com sinceridade,
nossa alma alcança enfim certa virtude.

ALFORRIA V

Criou Platão o mito das metades:
cortados fomos por aérea cimitarra,
que foi brandida por divina garra,
imperfeitos a nos fazer em arcanidades!

Mas longe de dar-nos liberdades,
esse corte em vasto anseio esbarra:
em vão lançamos ao redor a amarra,
sem alcançarmos jamais as saciedades.

É tão estranho que se chame de platônico
esse amor que não busca real abraço,
mas se contenta a contemplar o traço

dos passos ou perfume, algo de irônico!
Tal qual houvesse até sinceridade
em recusar encontrar-se com a metade!

ALFORRIA VI

Isso que amor é, de fato, encantamento,
quando pensamos, por artes de magia,
que essa outra metade se acharia
naquele par que nos doma o julgamento;

e se por meio de inesperado evento,
talvez – ou sonho – ou voz que a gente ouvia –
é perturbada tal feitiçaria
e dentro em nós esmorece o sentimento,

recuperamos essa triste liberdade
de sermos a metade de nós mesmos,
andando por aí como aleijados,

qual em encanto de pura crueldade,
os pensamentos perdidos pelos ermos,
sem que sejamos nós mesmos alforriados!

AMOR DE CÂMARA XIX – 2007

Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter ou ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta

do próprio ideal de si, por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.

São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...

São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor...  enquanto Wagner se escuta...

CRIMINALÍSTICA I – 29 AGO 16

Em vestígios de luz eu me transporto,
embriagado em soma inescrutável;
cavalgo a brisa desse imponderável
e acima do horizonte me comporto,

as nuvens constelares meu conforto
e a vastidão de elétrons num amável
confabular pelas tramas do incontável,
pelas camadas de ozônio meu desporto.

Assim deslizo pela atmosfera
e deslizar no vento é meu deslize,
imagem de mim mesmo em mil imagens,

estrato a se irradiar na estratosfera,
inconsútil demais que a Terra pise,
envolvido nesse fólio de folhagens...

CRIMINALÍSTICA II

Assim expando todos os limites,
perturbador da cósmica harmonia,
subversivo a quanto ao redor via,
opositor a quanto tu me dites,

Mãe Natureza – espero não te irrites
com estranhas frases feitas de ousadia,
pois tão só imaginação te perseguia
nesses páramos celestes em que habites.

Dentro do cérebro não há qualquer fronteira,
por mais que seja pelo crânio limitado,
a mente dança nas circunvoluções,

à dura-máter de braço dado, inteira,
da pia-máter todo o círculo esgarçado,
a aracnoide ludibriando há gerações...

CRIMINALÍSTICA III

Não se limita a mente aos parietais,
nem a quimera é cerceada pela pele:
cavalga Pégaso na ventania que procele,
Leviathan a montar nos abissais;

ela se expande à frente dos frontais
em que o terceiro olho atento vele,
supraquiasmático centro que revele (*)
o mecanismo dos sonhos fantasmais.
(*) Centro controlador do sono, atrás do meio da testa.

Mais que traidor, o vate é transgressor
em suas metáforas de flavor arcano:
sou criminoso em meu mister de aedo,

aos pés dos deuses irrequieto adorador,
minha lira a dedilhar salmo profano
e nem a suas advertências então cedo.

CRIMINALÍSTICA IV

Bem além dos estígios me projeto,
sem que me possa conter o velho Dante;
Caronte desafiei como hierofante,  (*)
a descrever dos humanos cada afeto,
(*) Supremo sacerdote dos Mistérios.

a alma inteira a se tornar meu objeto,
mesmo votado à humildade triunfante,
dentes cerrados trauteando meu descante,
quer seja ele sublime ou abjeto

e a cada muro ou parede desafio:
junto as muralhas a tombar de Jericó
toco o shofar e não me encontro só;

no terremoto previsto já confio,
as pedras tombam sem ferir-me o pé,
na mesma angústia com que venceu Josué!

CRIMINALÍSTICA V

E tu, gentil amiga, não esqueças:
pode tua alma transgredir igual espaço,
pode teu sonho conquistar cada pedaço,
sem que da divindade nunca desças;

os teus limites, de fato, jamais meças;
o próprio Cristo proclamou, em manso abraço:
“Lembrai-vos, sois deuses!” – nesse passo
de seu sermão, a convidar que cresças,

mais que teus pais disseram que podias
ou que teu coração teme em silêncio,
que o Universo é teu, caso acredites

que muito mais há a teu alcance do que crias,
revoluteando na fumaça desse incenso,
paredes falsas para o mundo que hoje habites.

CRIMINALÍSTICA VI

As circunstâncias são apenas ilusórias;
caso empurres as paredes, são pastosas,
sem solidez as vastidões gasosas,
podes transpor essas fendas peremptórias;

as grades que encontrares são espúrias,
não há valas de falésias perigosas,
são só ilusões, horrendas ou formosas,
somente um mundo de aparências desultórias;

toma, portanto, o vento por ginete
e emprega doces brisas como arreios,
de tua jornada somente os sonhos freios;

enfrenta a rocha, que se fará confete,
lança teus dedos como serpentinas
e vem comigo partilhar de estranhas sinas!

TIORBA I – 30 AGO 16

EM TRANSPARÊNCIA E INSUBSTANCIALIDADE
TE ENVIO MEU AMOR, ROSA DE ESPINHOS,
POR MENOS QUE RECEBA TEUS CARINHOS,
MINHALMA TE JUROU E TERÁ FIDELIDADE,

NA PULCRITUDE DA MAIS ESTRANHA QUALIDADE (*)
MEU ESPÍRITO SE ELEVA E OS SONS MESQUINHOS
QUE ME PUXAM À TERRA, AZEDOS VINHOS
EM MAIS NADA ME PERTURBAM A INTENSIDADE.
(*) BELEZA
.
ASSIM VOO PARA TI, SONORA LUZ,
EM BUSCA DE TEUS OLHOS, NUM RELANCE,
POUCO ME IMPORTA SE NÃO CORRESPONDES.

É MAIS O AMOR DE TI QUE ME SEDUZ
DO QUE TUA SIMPLES POSSE EM DOCE TRANSE
E NEM LASTIMO QUANDO AMOR ME ESCONDES.

TIORBA II

OLHA QUE AMOR É TAMBEM UMA ILUSÃO.
OUTRO ASPECTO INCONSÚTIL DESSA MAYA,
SEM FIM E SEM COMEÇO NA SUA RAIA,
NASCE NA MENTE E DESCE AO CORAÇÃO,

DO MESMO MODO QUE QUALQUER EMPOLGAÇÃO,
QUE SOBRE MIM JAMAIS TEU SANGUE CAIA,
TOMA O UNIVERSO DOS SONHOS EM TUA BAIA
NESSE CANTO INAUDÍVEL DE AUDIÇÃO..

E SENDO ASSIM TRANSPOSTO TEU LIMITE
EMPURRO A LONA PARA QUE SE AGITE
E ENTÃO INGRESSO NA TENDA DE TEU SER,

POR MAIS QUE SEJA NO FUNDO MAIS SECRETO
QUE O COSMOS TODO DE ESPLENDOR DILETO
QUE JÁ PUDE DESVENDAR EM MEU QUERER.

TIORBA III

MULHER GENTIL QUE NUNCA CONHECI,
NEM TE CONHEÇO POR IDADE OU COR,
APENAS SEI DA IMENSIDÃO DE TEU AMOR,
QUE DESDE O INÍCIO DESTE VERSO EU INVADI.

SÓ NAS VÁRZEAS DO SONHO JÁ TE VI
E NEM RECORDO DE TEUS OLHOS O TEOR
OU OS RECORTES DE TEU ROSTO SEDUTOR,
DESCONHECIDA, MAS QUE AMO DESDE AQUI.

ASSIM EU VOO PARA TI COM INSISTÊNCIA,
BUSCANDO PELO ASTRAL A DUPLA LUZ
QUE ME REVELAM OS BICOS DE TEUS SEIOS,

POR ENTRE MIL VOLUTAS DE INCONSCIÊNCIA,
ASSIM EU VOGO, MEUS BRAÇOS EM CRUZ,
PARA ABRAÇAR-TE, EMBALDE TEUS RECEIOS.

TIORBA IV

ERA A TIORBA UM TIPO DE ALAÚDE,
PORÉM MAIS LONGO, DE COMPRIDO BRAÇO,
A SER ACALENTADA NUM ABRAÇO,
DELA TIRANDO O MEIGO SOM QUE ILUDE.

FOI IGUALMENTE CHAMADA ARQUIALAÚDE,
COM DOZE CORDAS DE SEMELHANTE TRAÇO,
NUM EMARANHADO A ATRAPALHAR O PASSO,
DESAFIO PRONTO A UM INTERPRETE MAIS RUDE.

LEMBRAVA A TÁBUA DO ITALIANO PERFUMISTA,
COM O FORMATO EM QUE MOÍA CADA ESSÊNCIA:
ALGUÉM ALI NOTOU CERTAS VINHAS ESTIRADAS,

PENSANDO LOGO EM MUSICAL CONQUISTA,
QUE EXECUTOU A GOLPES DE PACIÊNCIA,
ATÉ EXPOR SUAS NOTAS ENCANTADAS.

TIORBA V

E ASSIM, NOS LAIVOS DA IMAGINAÇÃO,
PERCEBEREI COMO CORDAS TEUS CABELOS
E OS TANGEREI EM MÍSTICOS DESVELOS
COMO O INSTRUMENTO DA MAIS PURA PERFEIÇÃO

QUE VEJO EM TI QUAL ESTOJO DE PAIXÃO:
SÃO DOZE VEIAS COMO DOZE SELOS,
CORDAS VOCAIS EM DOZE CANTOS BELOS
QUE APENAS TOCA QUEM SOUBER TER DEVOÇÃO.

E NISSO TUDO NEM MOSTRO ATREVIMENTO,
POIS CERTAMENTE NUNCA A MIM VERÁS,
PELO MENOS NESTES PLANOS MATERIAIS

MAS POR ONÍRICO QUE SEJA O JULGAMENTO,
ENTRE TEUS BRAÇOS ME RECEBERÁS
PELOS VIRENTES PRADOS SIDERAIS.

TIORBA VI

OU, QUEM SABE, SERÁS TU QUE ME IMAGINES
E ME DESEJES, QUAL TIORBA, DEDILHAR
AS DOZE CORDAS DO ANTIGO MEU PENAR,
RETALHADAS NO ARCABOUÇO DE MEUS VIMES.

EM TEU SONHO SERÁS TU QUE ME FASCINES,
FEITO DE SOMBRA E LUZ PARA AMANHAR,
ENTRE FUMAÇA MINHA FIGURA A IMAGINAR,
QUE NOS TEUS BRAÇOS, QUAL INFANTE, NINES.

DONZELA-TIORBA, DAMA DE MISTICISMO,
TAL QUAL POSSA SER OUSADO MEU DESEJO,
PERFEITO POSSA IMAGINAR TEU BEIJO,

FEITO DE LUZ E SOM DE ROMANTISMO,
NAS BREVES LINHAS QUE TE ESCREVO AGORA
MEU PORVIR ESCRAVIZADO AO TEU OUTRORA!...

BRADICINESIA I – 31 AGO 16

NESSA PRIMEIRA VEZ QUE DEZ SONETOS
FIZ NUM SÓ DIA, EM DELÍRIO E DESVARIO,
PROVEI O ORGULHO DE UM ANIMAL NO CIO,
PEQUENO ORGASMO DERRAMADO EM TAIS AFETOS.

NÃO ENTENDI, NESSA OCASIÃO, QUE TAIS EFEITOS,
TRIUNFOS SIMPLES DE MANHÃ DE ESTIO,
SE FOSSEM REPETIR AO CABO E AO FIO
DESSES ANOS SEGUINTES E INDISCRETOS.

JULGUEI ENTÃO QUE MÉRITO MEU FOSSEM,
DESLUMBRADO POR TAL REALIZAÇÃO
E NÃO APENAS POR CAPTAR DA INSPIRAÇÃO

DE POETAS MORTOS QUE ENTÃO EM MIM REMOCEM
E QUE ME OLHARAM COM CONDESCENDÊNCIA,
QUANDO JULGUEI SER MINHA A SUA POTÊNCIA...

BRADICINESIA II

EM OUTROS VEJO A TRISTE LENTIDÃO,
CHAMADA ÀS VEZES DE BRADICINESIA,
NESSE VAGAR QUE ENVOLVE SUA POESIA
PELA FALTA DE CONSTANTE INSPIRAÇÃO.

E AINDA VEJO O QUANTO APLICARÃO
PARA REUNIR A MINÚSCULA VALIA,
TANTO QUANTO SEU ESTRO PERMITIA
E A VAIDADE COM QUE O PUBLICARÃO!...

E COMPARANDO O HODIERNO COM O ANTANHO,
INVERSA BRADICINESIA EU AVALIO,
QUE FOI SENDO DERROTADA PELA IDADE,

POIS CADA ANO MAIS ME AUMENTA O GANHO,
QUE O PROGRESSO DOS SINTOMAS CONTRARIO
NO INCREMENTO DE MINHA FACILIDADE...

BRADICINESIA III

NA VERDADE, É UM MALIGNO SINTOMA,
QUE DIFICULTA, POUCO A POUCO, A VIDA,
MAIS QUE O TREMOR A QUE PARKINSON CONVIDA,
CUJO CONTROLE, ÀS VEZES, SE RETOMA.

MAS A BRADICINESIA É INVERSA SOMA,
PARA TODA RADIDEZ A DESPEDIDA,
O MENOR MOVIMENTO TORNA EM LIDA,
ATÉ O SIMPLES VIRAR NO LEITO EMBROMA.

PARA BANHAR-SE, COMER OU SE VESTIR,
DA OPERAÇÃO MENTAL O ENCADEAMENTO,
NUMA PERDA DE POTÊNCIA PROGRESSIVA,

TAL QUAL DA VIDA ESTIVESSE UM A FUGIR,
PERDIDO NA INDOLÊNCIA MAIS SEDIÇA,
QUAL CAMINHANTE EM AREIA MOVEDIÇA.

BRADICINESIA Iv

POR ISSO EXISTE UMA CERTA CRUELDADE
NESSE TÍTULO QUE ACIMA EU ESCOLHI,
UMA CERTA EMPATIA QUE PERDI,
OU MESMO FALTA DE SENSIBILIDADE.

NO MEU ORGULHO, DESDÉM, QUIÇÁ VAIDADE,
COM QUE COMPARO A LENTIDÃO QUE VI
COM A RAPIDEZ QUE HOJE MOSTRO AQUI,
UM TANTO ACIMA DO NORMAL DA HUMANIDADE.

MAS NESSE INSTANTE MAIS PERCEBO A PROTEÇÃO
QUE ME CONFERE A ESPIRITUALIDADE,
PELO QUE HOJE AGRADEÇO, EM HUMILDADE.

MINHA LUTA É O OPOSTO DE TODA A LENTIDÃO,
QUANDO ME ESFORÇO PARA FECHAR A ECLUSA
DA INSPIRAÇÃO QUE ATÉ DE MIM ABUSA...

CANÇÃO PARA TI 1 – 1º Srt 2016

Como folha de espada na bainha,
Meu grito fica preso na garganta;
Sem que o escutem, a ninguém espanta:
Nenhum rancor nos outros abespinha.

Mas quem disse que o desejo, minha rainha?
Essas palavras que meu estro canta
Dínamo são que amor somente imanta
E que do mundo exterior nem se avizinha.

E pelas ruas só passam de raspão,
Sem quaisquer casas buscando penetrar,
Influenciando corações e mentes,

Nem vasto mundo invadindo de roldão,
Pois desconfio que só iria incomodar
Tal multidão de versos tão prementes.

CANÇÃO PARA TI 2

A ti somente é que desejo perturbar,
De tua alma o mais recôndito escaninho,
Toda a vaza agitar com meu carinho,
Teus pensamentos buscando avassalar.

Talvez arranque de ti um suspirar,
A despertar-te algum langor mesquinho,
Qualquer saudade a chamar, devagarinho,
Na qual possas meus versos ocultar.

E dessa forma, conferir-lhes vida
E revestir-lhes de carne o arcabouço,
Pelo breve tremular de teu pescoço,

No deglutir de um soluço a despedida,
Alguma veia suavemente ali a pulsar
Com esse amor que sei não me irás dar.

CANÇÃO PARA TI 3

Já tantas vezes te falei, minha doce amada,
Perdida nas planícies da inconstância,
Tão próxima de mim essa distância
Para tua alma igualmente atribulada!...

Que pela vida foi deveres desprezada,
Na busca atroz de certa substância,
Que para traz deixaste, desde a infância,
Nas páginas de lenda amarfanhada...

Assim escrevo para ti esta canção,
Para que a escutes em total segredo,
Pois foi composta para ti somente!...

Que então a possas gravar no coração,
Guardando em ti a digital deste meu dedo,
No mesmo ritmo a palpitar frequente!...

O VÍCIO DO VENTO I – 02 SET 16

Vou percorrer as linhas magnéticas
e libertar as almas penduradas,
inadvertidamente ali capturadas
em seu voo para plagas mais estéticas.

Talvez tais intenções não sejam éticas:
deveriam por si só ser libertadas
as almas em tais nodos conservadas
de morte bem diversa sendo céticas.

Pesadas foram demais para se alçar
a qualquer páramo cósmico mais terno,
mesmerizadas, talvez, pelo remorso,

comprometidas demais para flutuar,
merecedoras a se julgar do inferno,
ondas de choque a lhes curtir o dorso.

O VÍCIO DO VENTO II

Ali ficam incrustadas em penúria,
em convulsões de tremor impenitente,
periódica epilepsia inconsistente,
atravessadas de inesperada injúria,

já acostumadas aos ventos dessa incúria,
cada vulto em sua torção subitamente,
cada choque novo ordálio persistente,
que então aguardam, em singular luxúria.

Incapazes, no geral, de se mover,
como pássaros em visgo confiscados,
lábios não tendo, nem braços esticados,

apenas sombras em constante padecer,
alheias contrações achando cômicas,
sob o viés das ondas eletrônicas.

O VÍCIO DO VENTO III

Há nessas linhas fulcros de atração,
que capturam, na maior firmeza,
aquelas almas desprovidas de leveza,
que longamente para o céu não flutuarão.

E nesses nódulos e portais há perdição:
têm cintilar de singular beleza,
teus olhares a captar com estranheza,
cantos dos olhos a tremer em confusão.

Algumas mentes nesses nós capturadas
necessitam de ficar em um só lugar,
as mais tolas chegam mesmo a se arraigar,

porém algumas, por ilações aladas,
aprendem por tais fios a navegar,
as mil vielas do planeta observadas.

O VÍCIO DO VENTO IV

Naturalmente, é uma vida vicarial,
tudo percebem por procuração,
linhas de força a lhes cortar o coração,
sempre presas a este plano terrenal,

sem que a sansara, em seu impulso sideral
para esgotar a cada humana sensação
seja por elas percorrida em viração,
não mais que sopros de vento no final.

Inertes fazem-se em observadores,
sem o direito de sair ao fim das cenas,
mas para outras volvendo sem remanso,

apresentando alguma vez falsos fulgores,
como santos ou avatares nessas penas,
girando a teu redor sem ter descanso.

O VÍCIO DO VENTO V

Nunca se tornam verdadeiras brisas,
incapazes de teu rosto refrescar,
quase eterno o seu vício singular,
sem afetar sequer o chão que pisas.

Houve lugares demarcados por balizas,
em que os crédulos vieram adorar
aparições que ali se veem manifestar,
templos erguendo intrépidos às visas!

E justamente sobre o fulcro erguem altar,
em que entronizam a falsa divindade,
talvez mostrando tão só viciosidade

e ali se prostram e pretendem adorar
essas pobres criaturas imperfeitas,
às próprias mágoas presas e sujeitas!

O VÍCIO DO VENTO VI

    Certamente de Éolo não são crias,
                 mas simplesmente por ele desprezadas,
tristes brisas ali mumificadas,
mentes e almas sem quaisquer valias,

que se condensam nas aparições que vias
ou que por outrem foram mencionadas,
tomadas por deidades encantadas,
inconsistentes vultos nessas vias.

Ventos viciados em perpétuas calmarias,
seu Hades a nutrir, particular,
algumas vezes habitando em esculturas,

veneradas por fiéis em romarias,
sem que de tantos se possam afastar,
sem conferir sequer graças impuras!

MORCEGOS DE CRISTAL I – 3 SET 16

Não existe razão para questões
Quando olhos se fundem noutros olhos,
Na multiplicação desses refolhos,
Cacos de vida saltando aos corações.

Nos olhos brilham muitas gerações,
Das circunvoluções em mil escolhos,
De nova vida buscando alguns espólios
A perpetuar em novas multidões.

Vivem vampiros em nós, benevolentes,
Que se nutrem de nossos pensamentos
E nos inspiram novos sentimentos.

Nestas medíocres rimas inconscientes
Flutuando em nós, na plena simbiose,
Cada ancestral a nos doar pequena dose.

MORCEGOS DE CRISTAL II

De fato, mais que tudo, amor nos dão,
Essa doce e irresistível armadilha,
Que de outro olhar o bote então nos pilha,
Feito em total e desejada escravidão.

E mesmo os beijos que são nosso quinhão,
Se tornam grades de saliva que ali brilha
E nos fazem percorrer milha após milha,
Na mesma trilha da arcana aquisição.

Ah, doce amor, que nos prendes no passado,
Mas que julgamos ao futuro conduzir,
Quão facilmente nossa adesão nos ganhas!

Assim pensamos outro olhar ter conquistado
E o outro pensa que nos pôde seduzir,
Ambas as vistas nas mesmas artimanhas!

MORCEGOS DE CRISTAL III

Contra nós é que explodem esse amor,
Qual uma lança, azagaia ou javelina,
A projetar-se dos olhos da menina
Ou do rapaz soltando raios de calor,

Formado um fluxo do maior vigor,
Que a mente totalmente nos fascina,
A orientar-nos a total futura sina,
Dita gentil a moldar nosso pendor!

Trazendo ao menos qualquer felicidade
E temporária vastidão de benefícios
Para nossa servidão tão voluntária;

Não é um domínio isento de bondade,
Mesmo que o olhar apenas cumpra ofícios
De convocar-nos a tal missão gregária.

MORCEGOS DE CRISTAL IV

Igual morcegos adejam os desejos,
Igual morcegos... totalmente cegos,
Prazer buscando, sem saber que empregos
Fazem de nós, arcanos seus almejos,

Que a teia tecem no cristal dos beijos,
Na escuridão da noite seus afagos,
Ação precípua de alquimistas magos,
Afastando de nós o tom dos pejos.

E nesse desnudar nos escravizam
Nas armadilhas ancestrais do sexo,
Para que em nós se perpetue a raça,

Nesses complexos pendores que repisam,
De nosso egoísmo a descartar o nexo,
Numa incumbência da mais perpétua graça.

MORCEGOS DE CRISTAL V

Por isso, cuida bem de teu olhar,
Antes que venha no de outrem penetrar,
Todo o porvir de tua vida a transmutar
Em benefício de uma nova geração.

Veneno existe, de doçura singular
No contemplar gentil de cada par
Que vasto espaço consegue atravessar,
Para prender-se em completa comunhão.

Na exaltação de total magnetismo
Que referimos como sendo amor
E que, de fato, buscam encontrar:

“Abre-te, Sésamo!” do portal do egoísmo,
Que se abre para nós com estridor,
Mágico instante de mescla singular.

MORCEGOS DE CRISTAL VI

Contudo, após cumprida a sua missão,
Lançado o filho em seu cordão umbilical,
Vão afinal os morcegos de cristal
Estilhaçar-se, quando tombam pelo chão.

Também assim pode partir-se esse cordão
Que nos prendeu em tal instante divinal,
Partilhando desse coro universal
Que se renova a cada geração.

E de algum modo, mesmo que ainda vivos,
Nos reunimos à incansável multidão,
Parte de nós então se esconde nesse olhar,

Que há de surgir em momentos mais ativos,
Sempre que novo encantamento forjarão
Olhos perdidos nos olhos de outro par!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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DECADÊNCIA & MAIS – 25/8-03/9/2016
Novas Séries de William Lagos

DECADÊNCIA I – 9 OUT 07

Esvazio os pulmões, em forte rufo,
que pode ser sintoma de algo mais
ou talvez, nem diga nada. Pois jamais
sinto sintomas de tosse, fleuma ou bufo...

Não sinto, em absoluto, falta de ar:
é como se, ao contrário, ar demais
se acumulasse em mim, talvez fatais
prenúncios, que me possam dominar

no futuro, outras ânsias... Talvez fortes,
porque a idade acomete, sorrateira,
quando menos se espera... Não é lenta,

é progressiva e faz pequenos cortes:
retira um pouco aqui e ali, brejeira,
muito de leve e, aos poucos, se alimenta...

DECADÊNCIA II – 25 AGO 2016

É bem comum, no sexo masculino,
durante décadas mostrar-se quase igual,
tal qual se idade não nos trouxesse mal,
o rosto liso, igual quando menino.

Porém, subitamente, toca um sino
e chega o tempo, impondo o seu ritual,
sem mais protelação do natural
e se mostra algum sinal, ou pequenino

ou de repente, por efeito de doença,
ou qualquer lástima, incômodo ou tristeza
e os anos se revelam, de repente

e então se manifesta a decadência,
sobre o indivíduo mostrando sua proeza,
quando o transforma em velho, velozmente...

DECADÊNCIA III

Talvez, então, lhe cause um “peripaque”,
qualquer moléstia repentina e já mortal,
sua exigência sendo rápida e final,
o velho-moço sofrendo o seu ataque...

Era por dentro que se formava o baque,
sua mocidade tão somente artificial,
a decadência já instalada bem fatal,
sem dar margem ao rebate de um só saque.

Enquanto isso, a mulher logo decai,
confundida a juventude com beleza
e em duas décadas, tal aparência esvai,

buscando então os muitos artifícios,
para burlar a má-fé da Natureza,
tão depressa a lhe mostrar seus malefícios...

DECADÊNCIA IV

Surgem as rugas e lhes decaem os seios,
perdendo a antiga firmeza original,
a menopausa a impor seu grande mal,
do abandono a trazer-lhe seus receios.

É então que envida os mais potentes meios
para o recobro da juventude artificial,
entre os cosméticos e o hormônio natural,
a velhice disfarçando em tais arreios...

Porém percebe já estar perdendo a luta,
após perder pelo sexo o interesse,
enquanto ainda o conserva seu marido;

inventa então a andropausa, na mais bruta
defesa que contra alguma amante desce,
mesmo que o par já não seja mais querido.

DECADÊNCIA V

Na realidade, andropausa é coisa rara
na maioria dos homens inexistente,
mas provocada em alguns assaz frequente,
numa intenção que permanece clara,

que alguma amante lhe parece coisa cara:
nem é ciúme de seu corpo ainda presente,
mas do dinheiro que gastar pressente,
satisfazendo isso que chega a chamar “tara”.

Entre os chineses, na verdade, era costume
e em certa partes talvez hoje permaneça,
a aquisição de alguma jovem concubina,

que a função sexual da esposa assume,
sem que os direitos da esposa alguém esqueça,
que firmemente controla essa menina...

DECADÊNCIA VI

Mas entre nós, o costume é diferente,
apoiado pelas leis e a religião;
se alguma amante for tomada na ocasião,
para um divórcio dará motivo consequente.

E do marido os bens conserva, permanente,
bem garantida em tal retaliação,
tudo tomando e a cobrar mais a pensão,
pouco deixando para a rival presente...

Da decadência é tal ritual sobeja
causa fatal para esse moço-velho,
que uma repele e a outra já não beija...

Feliz de quem se consola com sua dita
e como velho contemplando-se no espelho,
para nenhuma outra aventura se concita!...

DOLO I – 9 out 2007

Quando a mulher percebe que o sorriso
muito mais belo a deixa e sedutora,
senhora desta arma, sem demora,
a emprega na conquista, sem aviso,

daquele alvo fácil...  Faz que pense
que é ele quem conquista e que domina...
A mulher, normalmente, em cada esquina
controla quem quiser e fácil vence,

porque é certo que a mais ignorante
das mulheres enrola em seu dedinho
o homem tido por mais inteligente,

conquistado no sorriso de um instante,
reconquistado por natural carinho
e escravizado por um amor potente...

DOLO II – 26 AGO 2016

Sincera ou não, a arma é verdadeira
e a mulher bem sabe o que deseja,
mesmo de longe, quando seus dedos beija
e nos assopra em vaga bem certeira!

Existe aquela em que a arma é corriqueira,
novas conquistas sempre a si enseja;
o parpadear dos cílios nos adeja,
lançando arpões como pregões de feira....

E existe aquela que se determinou
a alcançar o alvo único que almeja,
para essa arma empregar com perfeição,

enquanto o homem certamente se enganou,
pensando ser aquele que a corteja,
quando de fato é a presa dessa ação...

DOLO III

Com brancos dentes cada mulher sorri,
num cintilar de pura “refrescância”,
como aquele comercial, hoje à distância,
que o termo supra nos difundiu aqui...

Em tais sorrisos eu nem sempre cri,
nem sequer nos momentos pós-infância;
mas quem me soube sorrir com elegância,
trouxe lampejos dos quais nunca esqueci.

A própria Bíblia a comentar num verso:
“Terrível como um exército com bandeiras”,
é tal mulher que passa  e nos sorri,

na comissura dos lábios canto inverso
daquelas que nos olham altaneiras,
igual que a gente nem estivesse ali!...

DOLO IV

Há outro dolo nesta expressão contida:
pelo canto dos olhos se abre engate
na avaliação futura de um embate,
em captura tantas vezes repetida!...

Em piadas caricatas é inserida
uma figura troglodita, quando abate
com sua clava, a fêmea num combate,
pelos cabelos a arrastar essa escolhida...

Mas terá isso alguma vez acontecido?
Desenham pregos nas claves primitivas
e um golpe certo é bem capaz que a mate!

Acho difícil que algo assim tenha ocorrido,
decerto tapas, redes ou outro empate,
armas melhores para noivas mais esquivas!

DOLO V

Mas a mulher possui outros artifícios,
que mais não seja, feromônios em perfume,
quando um olhar opalescente logo assume,
na testa adornos como frontispícios...

Os seus cabelos no requinte desses vícios,
bem calculados, com que o rosto esfume
ou o alimento que prepara no seu lume,
mais a promessa de brejeiros benefícios...

Será então que ainda precisa do sorriso?
Pois causa susto entre povos mais selvagens,
tal qual se os dentes assim arreganhasse!

A face atenta a demonstrar um pleno siso,
sempre capaz de sugerir novas paragens,
sem que um sorriso nela se estampasse!...

DOLO VI

Por isso chamo “dolo” à covardia
desse sorriso, com que sabe dominar,
na indicação, quiçá, de seu beijar,
no lusco-fusco do desejo que sentia...

Talvez esteja aqui falando uma heresia,
mas há traição mesmo ali no meigo esgar,
uma vantagem que sabe bem aproveitar,
suas feições revestindo de harmonia...

Pois certamente não é simples inocente,
e raramente me podem desmentir:
para os tesouros do amor essa é a janela!

Arma gentil que sempre a torna mais potente,
timidamente ostentando o seu sorrir,
que sabe bem a torna ainda mais bela!...

AMOR DE CÂMARA XVII – 2007

A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,

por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...

E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...

E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...

AMOR DE CÂMARA XVIII – 9 out 2007

Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...

E eu! Que escravo sempre fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...

E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...

No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...

HUMILHAÇÃO I – 10 out 2007

Por enquanto não posso para mim o teu sorriso
guardar zelosamente, em sonho tão perfeito.
Embora lamentar não tenha algum direito,
apenas um lembrete fazer-te ainda preciso:

Que tenhas outro amor, que sejas generosa,
é bem direito teu, teu dom particular.
Concordo que outros homens desejes abraçar:
jamais eu negaria orvalho à pura rosa...

Porém me dói saber que tenha alguém agora
o que não pude ter, em gozo palpitante,
sabendo muito bem que em nosso amor, outrora,

prazer não recebi de ti, em meigo instante.
Tu não me deste igual, mulher: não tive a aurora
de em ti me derramar no orgasmo delirante...

HUMILHAÇÃO II – 27 AGO 2016

Será que dói de fato a humilhação
desse desprezo que para mim mostraste?
Será apenas saber que te entregaste
a alguém que tenha menos nobre formação?

Que teu sorriso, gardênias em botão,
seja colhido, depois que mo mostraste,
por algum mais que para mim afaste
esse tesouro que escapou-se de minha mão?

Será que dói, de fato, essa tristeza
de que fui eu que não te mereci,
que foi por própria culpa que perdi

a dupla jóia, azul como turquesa,
que contemplei, tão de perto, em teu olhar,
porém não fui capaz de conservar?

HUMILHAÇÃO III

Será que eu mesmo, por perversidade,
mescla de enleio e de autopunição,
para fugires de mim dei-te razão
ou te perdi por pura ingenuidade...?

Que tenha sido em covardia, na verdade,
que não soube competir pela emoção,
que um dia pensei, em vaga exaltação,
ser minha plena, em integralidade...?

Será, talvez, que me julguei como inferior
àquele que almejava o teu amor
e desta forma, te afastei de mim...?

Será que me entreguei a um falso orgulho,
sem me dispor a combater o esbulho,
e destarte te entreguei para o arlequim...?

HUMILHAÇÃO IV

Será que posso, realmente, discernir
quais os motivos por trás disso tudo...?
Será que de algum modo ainda me iludo
ter sido eu mesmo que te deixei fugir...?

Será que penso esteve em mim o permitir
lançar dos dados nesse amoroso ludo...?
Será que pude imaginar, contudo,
que outro desfecho pudesse definir...?

Será que, eventualmente, se eu lutasse,
o resultado terminaria igual
e de nada adiantaria o que fizesse...?

E se no fundo, por mais que batalhasse,
pertencerias mesmo a meu rival,
nessa roda do destino que acontece...?

HUMILHAÇÃO V

Será que então, nas vascas do temor
de ser, de qualquer modo, derrotado,
me recusei a ser por ti humilhado
e não mais me esforcei por teu amor...?

Será, talvez, que busquei ser sofredor,
para sentir-me assim martirizado
e as flébeis sensações aproveitado
para ampliar o meu poético pendor...?

Já muita vez pensei que fosse assim,
que tal amor derruído no passado,
que meu desejo nesse então decapitado,

fosse plantado dos sonetos no jardim
e reflorisse em cantos de verbenas
na multidão servil de meus poemas...

HUMILHAÇÃO VI

Pois te confesso que gozei outros amores,
mil sorrisos que agora se misturam,
essas mil faces que nos olhos não perduram,
que nem recordo após mil estertores...

Rasgo a memória, perdidos seus pendores,
esquecidos os mil lábios que então juram,
mal lembrados mil prazeres que me curam,
em sua nuvem majestosa de calores...

E que todos os mil beijos que gozei,
em uma só e única boca se confundam,
sem que eu esqueça aquela que não tive,

o terciopelo dessa carne que almejei,
humilhações que sobremodo abundam,
que matar eu busquei, mas não contive!...

ALFORRIA I – 11 out 2007

Tal como encantamento se quebrasse
[ou fosse sobre mim, então lançado],
despertei de meu sono, descansado,
e senti como se amor não mais cantasse,

no interior de meu peito; e levantasse
de sobre mim seu véu.  E o olhar magoado
mirasse em torno e um mundo renovado
dos céus à terra de novo contemplasse.

Teu amor dissipou-se, doce estrela...
A flor azul totalmente emurcheceu,
despetalou-se...  E a pétala singela

que sobre o caule ainda permanece,
perdeu o antigo brilho...  E reviveu
meu coração vazio, em muda prece...

ALFORRIA II – 28 AGO 16

Mas quem disse que tal foi libertação?
Em todo amor existe a servitude,
que seja algo de livre nunca ilude,
se houver amor, também existe servidão.

Não somos donos de nosso coração
e nem queremos ser, Deus nos ajude!
Fugir ao amor é vã tarefa rude,
escravos somos todos da emoção.

E se no amor ainda livres nos sentimos,
alternativas podendo procurar,
não é real de amor a parceria...

Mas pelo sexo tão só nos seduzimos,
sem fatores mais nobres demonstrar,
enquanto a busca ainda livre seguiria...

ALFORRIA III

O que sempre nos atrai é a sedução
de um novo amor, os olhos a piscar,
essa ânsia de invadir-lhe seu olhar,
para gozar das delícias que ali estão,

apenas entrevistas na ocasião,
no anseio oculto para a raça continuar,
que bem sabemos continua a dominar
os julgamentos, a colorir cada emoção.

De fato, somos falsamente racionais,
sempre guiados, até maugrado nosso,
pelas leis que nos impõem os cromossomos,

que não podemos dispensar jamais
(ou que querer dominar sequer não posso),
até esse dia em que algures formos. 

ALFORRIA IV

É bem verdade que as correntes desse amor
nos libertam das prisões de nosso egoísmo,
pois quem ama é infundido de altruísmo:
quanto se dá, mais se ganha de valor...

Na amorosa construção há mais calor
ou talvez conformidade a tal modismo;
mas certamente é o mais buscado abismo,
no qual saltamos com algum temor!...

Não da recusa – mas da aceitação,
ao abdicarmos da falsa liberdade
de nos podermos conservar em solidão;

e nessa aceitação da servitude,
caso a aceitemos com sinceridade,
nossa alma alcança enfim certa virtude.

ALFORRIA V

Criou Platão o mito das metades:
cortados fomos por aérea cimitarra,
que foi brandida por divina garra,
imperfeitos a nos fazer em arcanidades!

Mas longe de dar-nos liberdades,
esse corte em vasto anseio esbarra:
em vão lançamos ao redor a amarra,
sem alcançarmos jamais as saciedades.

É tão estranho que se chame de platônico
esse amor que não busca real abraço,
mas se contenta a contemplar o traço

dos passos ou perfume, algo de irônico!
Tal qual houvesse até sinceridade
em recusar encontrar-se com a metade!

ALFORRIA VI

Isso que amor é, de fato, encantamento,
quando pensamos, por artes de magia,
que essa outra metade se acharia
naquele par que nos doma o julgamento;

e se por meio de inesperado evento,
talvez – ou sonho – ou voz que a gente ouvia –
é perturbada tal feitiçaria
e dentro em nós esmorece o sentimento,

recuperamos essa triste liberdade
de sermos a metade de nós mesmos,
andando por aí como aleijados,

qual em encanto de pura crueldade,
os pensamentos perdidos pelos ermos,
sem que sejamos nós mesmos alforriados!

AMOR DE CÂMARA XIX – 2007

Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter ou ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta

do próprio ideal de si, por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.

São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...

São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor...  enquanto Wagner se escuta...

CRIMINALÍSTICA I – 29 AGO 16

Em vestígios de luz eu me transporto,
embriagado em soma inescrutável;
cavalgo a brisa desse imponderável
e acima do horizonte me comporto,

as nuvens constelares meu conforto
e a vastidão de elétrons num amável
confabular pelas tramas do incontável,
pelas camadas de ozônio meu desporto.

Assim deslizo pela atmosfera
e deslizar no vento é meu deslize,
imagem de mim mesmo em mil imagens,

estrato a se irradiar na estratosfera,
inconsútil demais que a Terra pise,
envolvido nesse fólio de folhagens...

CRIMINALÍSTICA II

Assim expando todos os limites,
perturbador da cósmica harmonia,
subversivo a quanto ao redor via,
opositor a quanto tu me dites,

Mãe Natureza – espero não te irrites
com estranhas frases feitas de ousadia,
pois tão só imaginação te perseguia
nesses páramos celestes em que habites.

Dentro do cérebro não há qualquer fronteira,
por mais que seja pelo crânio limitado,
a mente dança nas circunvoluções,

à dura-máter de braço dado, inteira,
da pia-máter todo o círculo esgarçado,
a aracnoide ludibriando há gerações...

CRIMINALÍSTICA III

Não se limita a mente aos parietais,
nem a quimera é cerceada pela pele:
cavalga Pégaso na ventania que procele,
Leviathan a montar nos abissais;

ela se expande à frente dos frontais
em que o terceiro olho atento vele,
supraquiasmático centro que revele (*)
o mecanismo dos sonhos fantasmais.
(*) Centro controlador do sono, atrás do meio da testa.

Mais que traidor, o vate é transgressor
em suas metáforas de flavor arcano:
sou criminoso em meu mister de aedo,

aos pés dos deuses irrequieto adorador,
minha lira a dedilhar salmo profano
e nem a suas advertências então cedo.

CRIMINALÍSTICA IV

Bem além dos estígios me projeto,
sem que me possa conter o velho Dante;
Caronte desafiei como hierofante,  (*)
a descrever dos humanos cada afeto,
(*) Supremo sacerdote dos Mistérios.

a alma inteira a se tornar meu objeto,
mesmo votado à humildade triunfante,
dentes cerrados trauteando meu descante,
quer seja ele sublime ou abjeto

e a cada muro ou parede desafio:
junto as muralhas a tombar de Jericó
toco o shofar e não me encontro só;

no terremoto previsto já confio,
as pedras tombam sem ferir-me o pé,
na mesma angústia com que venceu Josué!

CRIMINALÍSTICA V

E tu, gentil amiga, não esqueças:
pode tua alma transgredir igual espaço,
pode teu sonho conquistar cada pedaço,
sem que da divindade nunca desças;

os teus limites, de fato, jamais meças;
o próprio Cristo proclamou, em manso abraço:
“Lembrai-vos, sois deuses!” – nesse passo
de seu sermão, a convidar que cresças,

mais que teus pais disseram que podias
ou que teu coração teme em silêncio,
que o Universo é teu, caso acredites

que muito mais há a teu alcance do que crias,
revoluteando na fumaça desse incenso,
paredes falsas para o mundo que hoje habites.

CRIMINALÍSTICA VI

As circunstâncias são apenas ilusórias;
caso empurres as paredes, são pastosas,
sem solidez as vastidões gasosas,
podes transpor essas fendas peremptórias;

as grades que encontrares são espúrias,
não há valas de falésias perigosas,
são só ilusões, horrendas ou formosas,
somente um mundo de aparências desultórias;

toma, portanto, o vento por ginete
e emprega doces brisas como arreios,
de tua jornada somente os sonhos freios;

enfrenta a rocha, que se fará confete,
lança teus dedos como serpentinas
e vem comigo partilhar de estranhas sinas!

TIORBA I – 30 AGO 16

EM TRANSPARÊNCIA E INSUBSTANCIALIDADE
TE ENVIO MEU AMOR, ROSA DE ESPINHOS,
POR MENOS QUE RECEBA TEUS CARINHOS,
MINHALMA TE JUROU E TERÁ FIDELIDADE,

NA PULCRITUDE DA MAIS ESTRANHA QUALIDADE (*)
MEU ESPÍRITO SE ELEVA E OS SONS MESQUINHOS
QUE ME PUXAM À TERRA, AZEDOS VINHOS
EM MAIS NADA ME PERTURBAM A INTENSIDADE.
(*) BELEZA
.
ASSIM VOO PARA TI, SONORA LUZ,
EM BUSCA DE TEUS OLHOS, NUM RELANCE,
POUCO ME IMPORTA SE NÃO CORRESPONDES.

É MAIS O AMOR DE TI QUE ME SEDUZ
DO QUE TUA SIMPLES POSSE EM DOCE TRANSE
E NEM LASTIMO QUANDO AMOR ME ESCONDES.

TIORBA II

OLHA QUE AMOR É TAMBEM UMA ILUSÃO.
OUTRO ASPECTO INCONSÚTIL DESSA MAYA,
SEM FIM E SEM COMEÇO NA SUA RAIA,
NASCE NA MENTE E DESCE AO CORAÇÃO,

DO MESMO MODO QUE QUALQUER EMPOLGAÇÃO,
QUE SOBRE MIM JAMAIS TEU SANGUE CAIA,
TOMA O UNIVERSO DOS SONHOS EM TUA BAIA
NESSE CANTO INAUDÍVEL DE AUDIÇÃO..

E SENDO ASSIM TRANSPOSTO TEU LIMITE
EMPURRO A LONA PARA QUE SE AGITE
E ENTÃO INGRESSO NA TENDA DE TEU SER,

POR MAIS QUE SEJA NO FUNDO MAIS SECRETO
QUE O COSMOS TODO DE ESPLENDOR DILETO
QUE JÁ PUDE DESVENDAR EM MEU QUERER.

TIORBA III

MULHER GENTIL QUE NUNCA CONHECI,
NEM TE CONHEÇO POR IDADE OU COR,
APENAS SEI DA IMENSIDÃO DE TEU AMOR,
QUE DESDE O INÍCIO DESTE VERSO EU INVADI.

SÓ NAS VÁRZEAS DO SONHO JÁ TE VI
E NEM RECORDO DE TEUS OLHOS O TEOR
OU OS RECORTES DE TEU ROSTO SEDUTOR,
DESCONHECIDA, MAS QUE AMO DESDE AQUI.

ASSIM EU VOO PARA TI COM INSISTÊNCIA,
BUSCANDO PELO ASTRAL A DUPLA LUZ
QUE ME REVELAM OS BICOS DE TEUS SEIOS,

POR ENTRE MIL VOLUTAS DE INCONSCIÊNCIA,
ASSIM EU VOGO, MEUS BRAÇOS EM CRUZ,
PARA ABRAÇAR-TE, EMBALDE TEUS RECEIOS.

TIORBA IV

ERA A TIORBA UM TIPO DE ALAÚDE,
PORÉM MAIS LONGO, DE COMPRIDO BRAÇO,
A SER ACALENTADA NUM ABRAÇO,
DELA TIRANDO O MEIGO SOM QUE ILUDE.

FOI IGUALMENTE CHAMADA ARQUIALAÚDE,
COM DOZE CORDAS DE SEMELHANTE TRAÇO,
NUM EMARANHADO A ATRAPALHAR O PASSO,
DESAFIO PRONTO A UM INTERPRETE MAIS RUDE.

LEMBRAVA A TÁBUA DO ITALIANO PERFUMISTA,
COM O FORMATO EM QUE MOÍA CADA ESSÊNCIA:
ALGUÉM ALI NOTOU CERTAS VINHAS ESTIRADAS,

PENSANDO LOGO EM MUSICAL CONQUISTA,
QUE EXECUTOU A GOLPES DE PACIÊNCIA,
ATÉ EXPOR SUAS NOTAS ENCANTADAS.

TIORBA V

E ASSIM, NOS LAIVOS DA IMAGINAÇÃO,
PERCEBEREI COMO CORDAS TEUS CABELOS
E OS TANGEREI EM MÍSTICOS DESVELOS
COMO O INSTRUMENTO DA MAIS PURA PERFEIÇÃO

QUE VEJO EM TI QUAL ESTOJO DE PAIXÃO:
SÃO DOZE VEIAS COMO DOZE SELOS,
CORDAS VOCAIS EM DOZE CANTOS BELOS
QUE APENAS TOCA QUEM SOUBER TER DEVOÇÃO.

E NISSO TUDO NEM MOSTRO ATREVIMENTO,
POIS CERTAMENTE NUNCA A MIM VERÁS,
PELO MENOS NESTES PLANOS MATERIAIS

MAS POR ONÍRICO QUE SEJA O JULGAMENTO,
ENTRE TEUS BRAÇOS ME RECEBERÁS
PELOS VIRENTES PRADOS SIDERAIS.

TIORBA VI

OU, QUEM SABE, SERÁS TU QUE ME IMAGINES
E ME DESEJES, QUAL TIORBA, DEDILHAR
AS DOZE CORDAS DO ANTIGO MEU PENAR,
RETALHADAS NO ARCABOUÇO DE MEUS VIMES.

EM TEU SONHO SERÁS TU QUE ME FASCINES,
FEITO DE SOMBRA E LUZ PARA AMANHAR,
ENTRE FUMAÇA MINHA FIGURA A IMAGINAR,
QUE NOS TEUS BRAÇOS, QUAL INFANTE, NINES.

DONZELA-TIORBA, DAMA DE MISTICISMO,
TAL QUAL POSSA SER OUSADO MEU DESEJO,
PERFEITO POSSA IMAGINAR TEU BEIJO,

FEITO DE LUZ E SOM DE ROMANTISMO,
NAS BREVES LINHAS QUE TE ESCREVO AGORA
MEU PORVIR ESCRAVIZADO AO TEU OUTRORA!...

BRADICINESIA I – 31 AGO 16

NESSA PRIMEIRA VEZ QUE DEZ SONETOS
FIZ NUM SÓ DIA, EM DELÍRIO E DESVARIO,
PROVEI O ORGULHO DE UM ANIMAL NO CIO,
PEQUENO ORGASMO DERRAMADO EM TAIS AFETOS.

NÃO ENTENDI, NESSA OCASIÃO, QUE TAIS EFEITOS,
TRIUNFOS SIMPLES DE MANHÃ DE ESTIO,
SE FOSSEM REPETIR AO CABO E AO FIO
DESSES ANOS SEGUINTES E INDISCRETOS.

JULGUEI ENTÃO QUE MÉRITO MEU FOSSEM,
DESLUMBRADO POR TAL REALIZAÇÃO
E NÃO APENAS POR CAPTAR DA INSPIRAÇÃO

DE POETAS MORTOS QUE ENTÃO EM MIM REMOCEM
E QUE ME OLHARAM COM CONDESCENDÊNCIA,
QUANDO JULGUEI SER MINHA A SUA POTÊNCIA...

BRADICINESIA II

EM OUTROS VEJO A TRISTE LENTIDÃO,
CHAMADA ÀS VEZES DE BRADICINESIA,
NESSE VAGAR QUE ENVOLVE SUA POESIA
PELA FALTA DE CONSTANTE INSPIRAÇÃO.

E AINDA VEJO O QUANTO APLICARÃO
PARA REUNIR A MINÚSCULA VALIA,
TANTO QUANTO SEU ESTRO PERMITIA
E A VAIDADE COM QUE O PUBLICARÃO!...

E COMPARANDO O HODIERNO COM O ANTANHO,
INVERSA BRADICINESIA EU AVALIO,
QUE FOI SENDO DERROTADA PELA IDADE,

POIS CADA ANO MAIS ME AUMENTA O GANHO,
QUE O PROGRESSO DOS SINTOMAS CONTRARIO
NO INCREMENTO DE MINHA FACILIDADE...

BRADICINESIA III

NA VERDADE, É UM MALIGNO SINTOMA,
QUE DIFICULTA, POUCO A POUCO, A VIDA,
MAIS QUE O TREMOR A QUE PARKINSON CONVIDA,
CUJO CONTROLE, ÀS VEZES, SE RETOMA.

MAS A BRADICINESIA É INVERSA SOMA,
PARA TODA RADIDEZ A DESPEDIDA,
O MENOR MOVIMENTO TORNA EM LIDA,
ATÉ O SIMPLES VIRAR NO LEITO EMBROMA.

PARA BANHAR-SE, COMER OU SE VESTIR,
DA OPERAÇÃO MENTAL O ENCADEAMENTO,
NUMA PERDA DE POTÊNCIA PROGRESSIVA,

TAL QUAL DA VIDA ESTIVESSE UM A FUGIR,
PERDIDO NA INDOLÊNCIA MAIS SEDIÇA,
QUAL CAMINHANTE EM AREIA MOVEDIÇA.

BRADICINESIA Iv

POR ISSO EXISTE UMA CERTA CRUELDADE
NESSE TÍTULO QUE ACIMA EU ESCOLHI,
UMA CERTA EMPATIA QUE PERDI,
OU MESMO FALTA DE SENSIBILIDADE.

NO MEU ORGULHO, DESDÉM, QUIÇÁ VAIDADE,
COM QUE COMPARO A LENTIDÃO QUE VI
COM A RAPIDEZ QUE HOJE MOSTRO AQUI,
UM TANTO ACIMA DO NORMAL DA HUMANIDADE.

MAS NESSE INSTANTE MAIS PERCEBO A PROTEÇÃO
QUE ME CONFERE A ESPIRITUALIDADE,
PELO QUE HOJE AGRADEÇO, EM HUMILDADE.

MINHA LUTA É O OPOSTO DE TODA A LENTIDÃO,
QUANDO ME ESFORÇO PARA FECHAR A ECLUSA
DA INSPIRAÇÃO QUE ATÉ DE MIM ABUSA...

CANÇÃO PARA TI 1 – 1º Srt 2016

Como folha de espada na bainha,
Meu grito fica preso na garganta;
Sem que o escutem, a ninguém espanta:
Nenhum rancor nos outros abespinha.

Mas quem disse que o desejo, minha rainha?
Essas palavras que meu estro canta
Dínamo são que amor somente imanta
E que do mundo exterior nem se avizinha.

E pelas ruas só passam de raspão,
Sem quaisquer casas buscando penetrar,
Influenciando corações e mentes,

Nem vasto mundo invadindo de roldão,
Pois desconfio que só iria incomodar
Tal multidão de versos tão prementes.

CANÇÃO PARA TI 2

A ti somente é que desejo perturbar,
De tua alma o mais recôndito escaninho,
Toda a vaza agitar com meu carinho,
Teus pensamentos buscando avassalar.

Talvez arranque de ti um suspirar,
A despertar-te algum langor mesquinho,
Qualquer saudade a chamar, devagarinho,
Na qual possas meus versos ocultar.

E dessa forma, conferir-lhes vida
E revestir-lhes de carne o arcabouço,
Pelo breve tremular de teu pescoço,

No deglutir de um soluço a despedida,
Alguma veia suavemente ali a pulsar
Com esse amor que sei não me irás dar.

CANÇÃO PARA TI 3

Já tantas vezes te falei, minha doce amada,
Perdida nas planícies da inconstância,
Tão próxima de mim essa distância
Para tua alma igualmente atribulada!...

Que pela vida foi deveres desprezada,
Na busca atroz de certa substância,
Que para traz deixaste, desde a infância,
Nas páginas de lenda amarfanhada...

Assim escrevo para ti esta canção,
Para que a escutes em total segredo,
Pois foi composta para ti somente!...

Que então a possas gravar no coração,
Guardando em ti a digital deste meu dedo,
No mesmo ritmo a palpitar frequente!...

O VÍCIO DO VENTO I – 02 SET 16

Vou percorrer as linhas magnéticas
e libertar as almas penduradas,
inadvertidamente ali capturadas
em seu voo para plagas mais estéticas.

Talvez tais intenções não sejam éticas:
deveriam por si só ser libertadas
as almas em tais nodos conservadas
de morte bem diversa sendo céticas.

Pesadas foram demais para se alçar
a qualquer páramo cósmico mais terno,
mesmerizadas, talvez, pelo remorso,

comprometidas demais para flutuar,
merecedoras a se julgar do inferno,
ondas de choque a lhes curtir o dorso.

O VÍCIO DO VENTO II

Ali ficam incrustadas em penúria,
em convulsões de tremor impenitente,
periódica epilepsia inconsistente,
atravessadas de inesperada injúria,

já acostumadas aos ventos dessa incúria,
cada vulto em sua torção subitamente,
cada choque novo ordálio persistente,
que então aguardam, em singular luxúria.

Incapazes, no geral, de se mover,
como pássaros em visgo confiscados,
lábios não tendo, nem braços esticados,

apenas sombras em constante padecer,
alheias contrações achando cômicas,
sob o viés das ondas eletrônicas.

O VÍCIO DO VENTO III

Há nessas linhas fulcros de atração,
que capturam, na maior firmeza,
aquelas almas desprovidas de leveza,
que longamente para o céu não flutuarão.

E nesses nódulos e portais há perdição:
têm cintilar de singular beleza,
teus olhares a captar com estranheza,
cantos dos olhos a tremer em confusão.

Algumas mentes nesses nós capturadas
necessitam de ficar em um só lugar,
as mais tolas chegam mesmo a se arraigar,

porém algumas, por ilações aladas,
aprendem por tais fios a navegar,
as mil vielas do planeta observadas.

O VÍCIO DO VENTO IV

Naturalmente, é uma vida vicarial,
tudo percebem por procuração,
linhas de força a lhes cortar o coração,
sempre presas a este plano terrenal,

sem que a sansara, em seu impulso sideral
para esgotar a cada humana sensação
seja por elas percorrida em viração,
não mais que sopros de vento no final.

Inertes fazem-se em observadores,
sem o direito de sair ao fim das cenas,
mas para outras volvendo sem remanso,

apresentando alguma vez falsos fulgores,
como santos ou avatares nessas penas,
girando a teu redor sem ter descanso.

O VÍCIO DO VENTO V

Nunca se tornam verdadeiras brisas,
incapazes de teu rosto refrescar,
quase eterno o seu vício singular,
sem afetar sequer o chão que pisas.

Houve lugares demarcados por balizas,
em que os crédulos vieram adorar
aparições que ali se veem manifestar,
templos erguendo intrépidos às visas!

E justamente sobre o fulcro erguem altar,
em que entronizam a falsa divindade,
talvez mostrando tão só viciosidade

e ali se prostram e pretendem adorar
essas pobres criaturas imperfeitas,
às próprias mágoas presas e sujeitas!

O VÍCIO DO VENTO VI

    Certamente de Éolo não são crias,
                 mas simplesmente por ele desprezadas,
tristes brisas ali mumificadas,
mentes e almas sem quaisquer valias,

que se condensam nas aparições que vias
ou que por outrem foram mencionadas,
tomadas por deidades encantadas,
inconsistentes vultos nessas vias.

Ventos viciados em perpétuas calmarias,
seu Hades a nutrir, particular,
algumas vezes habitando em esculturas,

veneradas por fiéis em romarias,
sem que de tantos se possam afastar,
sem conferir sequer graças impuras!

MORCEGOS DE CRISTAL I – 3 SET 16

Não existe razão para questões
Quando olhos se fundem noutros olhos,
Na multiplicação desses refolhos,
Cacos de vida saltando aos corações.

Nos olhos brilham muitas gerações,
Das circunvoluções em mil escolhos,
De nova vida buscando alguns espólios
A perpetuar em novas multidões.

Vivem vampiros em nós, benevolentes,
Que se nutrem de nossos pensamentos
E nos inspiram novos sentimentos.

Nestas medíocres rimas inconscientes
Flutuando em nós, na plena simbiose,
Cada ancestral a nos doar pequena dose.

MORCEGOS DE CRISTAL II

De fato, mais que tudo, amor nos dão,
Essa doce e irresistível armadilha,
Que de outro olhar o bote então nos pilha,
Feito em total e desejada escravidão.

E mesmo os beijos que são nosso quinhão,
Se tornam grades de saliva que ali brilha
E nos fazem percorrer milha após milha,
Na mesma trilha da arcana aquisição.

Ah, doce amor, que nos prendes no passado,
Mas que julgamos ao futuro conduzir,
Quão facilmente nossa adesão nos ganhas!

Assim pensamos outro olhar ter conquistado
E o outro pensa que nos pôde seduzir,
Ambas as vistas nas mesmas artimanhas!

MORCEGOS DE CRISTAL III

Contra nós é que explodem esse amor,
Qual uma lança, azagaia ou javelina,
A projetar-se dos olhos da menina
Ou do rapaz soltando raios de calor,

Formado um fluxo do maior vigor,
Que a mente totalmente nos fascina,
A orientar-nos a total futura sina,
Dita gentil a moldar nosso pendor!

Trazendo ao menos qualquer felicidade
E temporária vastidão de benefícios
Para nossa servidão tão voluntária;

Não é um domínio isento de bondade,
Mesmo que o olhar apenas cumpra ofícios
De convocar-nos a tal missão gregária.

MORCEGOS DE CRISTAL IV

Igual morcegos adejam os desejos,
Igual morcegos... totalmente cegos,
Prazer buscando, sem saber que empregos
Fazem de nós, arcanos seus almejos,

Que a teia tecem no cristal dos beijos,
Na escuridão da noite seus afagos,
Ação precípua de alquimistas magos,
Afastando de nós o tom dos pejos.

E nesse desnudar nos escravizam
Nas armadilhas ancestrais do sexo,
Para que em nós se perpetue a raça,

Nesses complexos pendores que repisam,
De nosso egoísmo a descartar o nexo,
Numa incumbência da mais perpétua graça.

MORCEGOS DE CRISTAL V

Por isso, cuida bem de teu olhar,
Antes que venha no de outrem penetrar,
Todo o porvir de tua vida a transmutar
Em benefício de uma nova geração.

Veneno existe, de doçura singular
No contemplar gentil de cada par
Que vasto espaço consegue atravessar,
Para prender-se em completa comunhão.

Na exaltação de total magnetismo
Que referimos como sendo amor
E que, de fato, buscam encontrar:

“Abre-te, Sésamo!” do portal do egoísmo,
Que se abre para nós com estridor,
Mágico instante de mescla singular.

MORCEGOS DE CRISTAL VI

Contudo, após cumprida a sua missão,
Lançado o filho em seu cordão umbilical,
Vão afinal os morcegos de cristal
Estilhaçar-se, quando tombam pelo chão.

Também assim pode partir-se esse cordão
Que nos prendeu em tal instante divinal,
Partilhando desse coro universal
Que se renova a cada geração.

E de algum modo, mesmo que ainda vivos,
Nos reunimos à incansável multidão,
Parte de nós então se esconde nesse olhar,

Que há de surgir em momentos mais ativos,
Sempre que novo encantamento forjarão
Olhos perdidos nos olhos de outro par!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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DECADÊNCIA & MAIS – 25/8-03/9/2016
Novas Séries de William Lagos

DECADÊNCIA I – 9 OUT 07

Esvazio os pulmões, em forte rufo,
que pode ser sintoma de algo mais
ou talvez, nem diga nada. Pois jamais
sinto sintomas de tosse, fleuma ou bufo...

Não sinto, em absoluto, falta de ar:
é como se, ao contrário, ar demais
se acumulasse em mim, talvez fatais
prenúncios, que me possam dominar

no futuro, outras ânsias... Talvez fortes,
porque a idade acomete, sorrateira,
quando menos se espera... Não é lenta,

é progressiva e faz pequenos cortes:
retira um pouco aqui e ali, brejeira,
muito de leve e, aos poucos, se alimenta...

DECADÊNCIA II – 25 AGO 2016

É bem comum, no sexo masculino,
durante décadas mostrar-se quase igual,
tal qual se idade não nos trouxesse mal,
o rosto liso, igual quando menino.

Porém, subitamente, toca um sino
e chega o tempo, impondo o seu ritual,
sem mais protelação do natural
e se mostra algum sinal, ou pequenino

ou de repente, por efeito de doença,
ou qualquer lástima, incômodo ou tristeza
e os anos se revelam, de repente

e então se manifesta a decadência,
sobre o indivíduo mostrando sua proeza,
quando o transforma em velho, velozmente...

DECADÊNCIA III

Talvez, então, lhe cause um “peripaque”,
qualquer moléstia repentina e já mortal,
sua exigência sendo rápida e final,
o velho-moço sofrendo o seu ataque...

Era por dentro que se formava o baque,
sua mocidade tão somente artificial,
a decadência já instalada bem fatal,
sem dar margem ao rebate de um só saque.

Enquanto isso, a mulher logo decai,
confundida a juventude com beleza
e em duas décadas, tal aparência esvai,

buscando então os muitos artifícios,
para burlar a má-fé da Natureza,
tão depressa a lhe mostrar seus malefícios...

DECADÊNCIA IV

Surgem as rugas e lhes decaem os seios,
perdendo a antiga firmeza original,
a menopausa a impor seu grande mal,
do abandono a trazer-lhe seus receios.

É então que envida os mais potentes meios
para o recobro da juventude artificial,
entre os cosméticos e o hormônio natural,
a velhice disfarçando em tais arreios...

Porém percebe já estar perdendo a luta,
após perder pelo sexo o interesse,
enquanto ainda o conserva seu marido;

inventa então a andropausa, na mais bruta
defesa que contra alguma amante desce,
mesmo que o par já não seja mais querido.

DECADÊNCIA V

Na realidade, andropausa é coisa rara
na maioria dos homens inexistente,
mas provocada em alguns assaz frequente,
numa intenção que permanece clara,

que alguma amante lhe parece coisa cara:
nem é ciúme de seu corpo ainda presente,
mas do dinheiro que gastar pressente,
satisfazendo isso que chega a chamar “tara”.

Entre os chineses, na verdade, era costume
e em certa partes talvez hoje permaneça,
a aquisição de alguma jovem concubina,

que a função sexual da esposa assume,
sem que os direitos da esposa alguém esqueça,
que firmemente controla essa menina...

DECADÊNCIA VI

Mas entre nós, o costume é diferente,
apoiado pelas leis e a religião;
se alguma amante for tomada na ocasião,
para um divórcio dará motivo consequente.

E do marido os bens conserva, permanente,
bem garantida em tal retaliação,
tudo tomando e a cobrar mais a pensão,
pouco deixando para a rival presente...

Da decadência é tal ritual sobeja
causa fatal para esse moço-velho,
que uma repele e a outra já não beija...

Feliz de quem se consola com sua dita
e como velho contemplando-se no espelho,
para nenhuma outra aventura se concita!...

DOLO I – 9 out 2007

Quando a mulher percebe que o sorriso
muito mais belo a deixa e sedutora,
senhora desta arma, sem demora,
a emprega na conquista, sem aviso,

daquele alvo fácil...  Faz que pense
que é ele quem conquista e que domina...
A mulher, normalmente, em cada esquina
controla quem quiser e fácil vence,

porque é certo que a mais ignorante
das mulheres enrola em seu dedinho
o homem tido por mais inteligente,

conquistado no sorriso de um instante,
reconquistado por natural carinho
e escravizado por um amor potente...

DOLO II – 26 AGO 2016

Sincera ou não, a arma é verdadeira
e a mulher bem sabe o que deseja,
mesmo de longe, quando seus dedos beija
e nos assopra em vaga bem certeira!

Existe aquela em que a arma é corriqueira,
novas conquistas sempre a si enseja;
o parpadear dos cílios nos adeja,
lançando arpões como pregões de feira....

E existe aquela que se determinou
a alcançar o alvo único que almeja,
para essa arma empregar com perfeição,

enquanto o homem certamente se enganou,
pensando ser aquele que a corteja,
quando de fato é a presa dessa ação...

DOLO III

Com brancos dentes cada mulher sorri,
num cintilar de pura “refrescância”,
como aquele comercial, hoje à distância,
que o termo supra nos difundiu aqui...

Em tais sorrisos eu nem sempre cri,
nem sequer nos momentos pós-infância;
mas quem me soube sorrir com elegância,
trouxe lampejos dos quais nunca esqueci.

A própria Bíblia a comentar num verso:
“Terrível como um exército com bandeiras”,
é tal mulher que passa  e nos sorri,

na comissura dos lábios canto inverso
daquelas que nos olham altaneiras,
igual que a gente nem estivesse ali!...

DOLO IV

Há outro dolo nesta expressão contida:
pelo canto dos olhos se abre engate
na avaliação futura de um embate,
em captura tantas vezes repetida!...

Em piadas caricatas é inserida
uma figura troglodita, quando abate
com sua clava, a fêmea num combate,
pelos cabelos a arrastar essa escolhida...

Mas terá isso alguma vez acontecido?
Desenham pregos nas claves primitivas
e um golpe certo é bem capaz que a mate!

Acho difícil que algo assim tenha ocorrido,
decerto tapas, redes ou outro empate,
armas melhores para noivas mais esquivas!

DOLO V

Mas a mulher possui outros artifícios,
que mais não seja, feromônios em perfume,
quando um olhar opalescente logo assume,
na testa adornos como frontispícios...

Os seus cabelos no requinte desses vícios,
bem calculados, com que o rosto esfume
ou o alimento que prepara no seu lume,
mais a promessa de brejeiros benefícios...

Será então que ainda precisa do sorriso?
Pois causa susto entre povos mais selvagens,
tal qual se os dentes assim arreganhasse!

A face atenta a demonstrar um pleno siso,
sempre capaz de sugerir novas paragens,
sem que um sorriso nela se estampasse!...

DOLO VI

Por isso chamo “dolo” à covardia
desse sorriso, com que sabe dominar,
na indicação, quiçá, de seu beijar,
no lusco-fusco do desejo que sentia...

Talvez esteja aqui falando uma heresia,
mas há traição mesmo ali no meigo esgar,
uma vantagem que sabe bem aproveitar,
suas feições revestindo de harmonia...

Pois certamente não é simples inocente,
e raramente me podem desmentir:
para os tesouros do amor essa é a janela!

Arma gentil que sempre a torna mais potente,
timidamente ostentando o seu sorrir,
que sabe bem a torna ainda mais bela!...

AMOR DE CÂMARA XVII – 2007

A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,

por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...

E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...

E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...

AMOR DE CÂMARA XVIII – 9 out 2007

Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...

E eu! Que escravo sempre fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...

E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...

No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...

HUMILHAÇÃO I – 10 out 2007

Por enquanto não posso para mim o teu sorriso
guardar zelosamente, em sonho tão perfeito.
Embora lamentar não tenha algum direito,
apenas um lembrete fazer-te ainda preciso:

Que tenhas outro amor, que sejas generosa,
é bem direito teu, teu dom particular.
Concordo que outros homens desejes abraçar:
jamais eu negaria orvalho à pura rosa...

Porém me dói saber que tenha alguém agora
o que não pude ter, em gozo palpitante,
sabendo muito bem que em nosso amor, outrora,

prazer não recebi de ti, em meigo instante.
Tu não me deste igual, mulher: não tive a aurora
de em ti me derramar no orgasmo delirante...

HUMILHAÇÃO II – 27 AGO 2016

Será que dói de fato a humilhação
desse desprezo que para mim mostraste?
Será apenas saber que te entregaste
a alguém que tenha menos nobre formação?

Que teu sorriso, gardênias em botão,
seja colhido, depois que mo mostraste,
por algum mais que para mim afaste
esse tesouro que escapou-se de minha mão?

Será que dói, de fato, essa tristeza
de que fui eu que não te mereci,
que foi por própria culpa que perdi

a dupla jóia, azul como turquesa,
que contemplei, tão de perto, em teu olhar,
porém não fui capaz de conservar?

HUMILHAÇÃO III

Será que eu mesmo, por perversidade,
mescla de enleio e de autopunição,
para fugires de mim dei-te razão
ou te perdi por pura ingenuidade...?

Que tenha sido em covardia, na verdade,
que não soube competir pela emoção,
que um dia pensei, em vaga exaltação,
ser minha plena, em integralidade...?

Será, talvez, que me julguei como inferior
àquele que almejava o teu amor
e desta forma, te afastei de mim...?

Será que me entreguei a um falso orgulho,
sem me dispor a combater o esbulho,
e destarte te entreguei para o arlequim...?

HUMILHAÇÃO IV

Será que posso, realmente, discernir
quais os motivos por trás disso tudo...?
Será que de algum modo ainda me iludo
ter sido eu mesmo que te deixei fugir...?

Será que penso esteve em mim o permitir
lançar dos dados nesse amoroso ludo...?
Será que pude imaginar, contudo,
que outro desfecho pudesse definir...?

Será que, eventualmente, se eu lutasse,
o resultado terminaria igual
e de nada adiantaria o que fizesse...?

E se no fundo, por mais que batalhasse,
pertencerias mesmo a meu rival,
nessa roda do destino que acontece...?

HUMILHAÇÃO V

Será que então, nas vascas do temor
de ser, de qualquer modo, derrotado,
me recusei a ser por ti humilhado
e não mais me esforcei por teu amor...?

Será, talvez, que busquei ser sofredor,
para sentir-me assim martirizado
e as flébeis sensações aproveitado
para ampliar o meu poético pendor...?

Já muita vez pensei que fosse assim,
que tal amor derruído no passado,
que meu desejo nesse então decapitado,

fosse plantado dos sonetos no jardim
e reflorisse em cantos de verbenas
na multidão servil de meus poemas...

HUMILHAÇÃO VI

Pois te confesso que gozei outros amores,
mil sorrisos que agora se misturam,
essas mil faces que nos olhos não perduram,
que nem recordo após mil estertores...

Rasgo a memória, perdidos seus pendores,
esquecidos os mil lábios que então juram,
mal lembrados mil prazeres que me curam,
em sua nuvem majestosa de calores...

E que todos os mil beijos que gozei,
em uma só e única boca se confundam,
sem que eu esqueça aquela que não tive,

o terciopelo dessa carne que almejei,
humilhações que sobremodo abundam,
que matar eu busquei, mas não contive!...

ALFORRIA I – 11 out 2007

Tal como encantamento se quebrasse
[ou fosse sobre mim, então lançado],
despertei de meu sono, descansado,
e senti como se amor não mais cantasse,

no interior de meu peito; e levantasse
de sobre mim seu véu.  E o olhar magoado
mirasse em torno e um mundo renovado
dos céus à terra de novo contemplasse.

Teu amor dissipou-se, doce estrela...
A flor azul totalmente emurcheceu,
despetalou-se...  E a pétala singela

que sobre o caule ainda permanece,
perdeu o antigo brilho...  E reviveu
meu coração vazio, em muda prece...

ALFORRIA II – 28 AGO 16

Mas quem disse que tal foi libertação?
Em todo amor existe a servitude,
que seja algo de livre nunca ilude,
se houver amor, também existe servidão.

Não somos donos de nosso coração
e nem queremos ser, Deus nos ajude!
Fugir ao amor é vã tarefa rude,
escravos somos todos da emoção.

E se no amor ainda livres nos sentimos,
alternativas podendo procurar,
não é real de amor a parceria...

Mas pelo sexo tão só nos seduzimos,
sem fatores mais nobres demonstrar,
enquanto a busca ainda livre seguiria...

ALFORRIA III

O que sempre nos atrai é a sedução
de um novo amor, os olhos a piscar,
essa ânsia de invadir-lhe seu olhar,
para gozar das delícias que ali estão,

apenas entrevistas na ocasião,
no anseio oculto para a raça continuar,
que bem sabemos continua a dominar
os julgamentos, a colorir cada emoção.

De fato, somos falsamente racionais,
sempre guiados, até maugrado nosso,
pelas leis que nos impõem os cromossomos,

que não podemos dispensar jamais
(ou que querer dominar sequer não posso),
até esse dia em que algures formos. 

ALFORRIA IV

É bem verdade que as correntes desse amor
nos libertam das prisões de nosso egoísmo,
pois quem ama é infundido de altruísmo:
quanto se dá, mais se ganha de valor...

Na amorosa construção há mais calor
ou talvez conformidade a tal modismo;
mas certamente é o mais buscado abismo,
no qual saltamos com algum temor!...

Não da recusa – mas da aceitação,
ao abdicarmos da falsa liberdade
de nos podermos conservar em solidão;

e nessa aceitação da servitude,
caso a aceitemos com sinceridade,
nossa alma alcança enfim certa virtude.

ALFORRIA V

Criou Platão o mito das metades:
cortados fomos por aérea cimitarra,
que foi brandida por divina garra,
imperfeitos a nos fazer em arcanidades!

Mas longe de dar-nos liberdades,
esse corte em vasto anseio esbarra:
em vão lançamos ao redor a amarra,
sem alcançarmos jamais as saciedades.

É tão estranho que se chame de platônico
esse amor que não busca real abraço,
mas se contenta a contemplar o traço

dos passos ou perfume, algo de irônico!
Tal qual houvesse até sinceridade
em recusar encontrar-se com a metade!

ALFORRIA VI

Isso que amor é, de fato, encantamento,
quando pensamos, por artes de magia,
que essa outra metade se acharia
naquele par que nos doma o julgamento;

e se por meio de inesperado evento,
talvez – ou sonho – ou voz que a gente ouvia –
é perturbada tal feitiçaria
e dentro em nós esmorece o sentimento,

recuperamos essa triste liberdade
de sermos a metade de nós mesmos,
andando por aí como aleijados,

qual em encanto de pura crueldade,
os pensamentos perdidos pelos ermos,
sem que sejamos nós mesmos alforriados!

AMOR DE CÂMARA XIX – 2007

Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter ou ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta

do próprio ideal de si, por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.

São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...

São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor...  enquanto Wagner se escuta...

CRIMINALÍSTICA I – 29 AGO 16

Em vestígios de luz eu me transporto,
embriagado em soma inescrutável;
cavalgo a brisa desse imponderável
e acima do horizonte me comporto,

as nuvens constelares meu conforto
e a vastidão de elétrons num amável
confabular pelas tramas do incontável,
pelas camadas de ozônio meu desporto.

Assim deslizo pela atmosfera
e deslizar no vento é meu deslize,
imagem de mim mesmo em mil imagens,

estrato a se irradiar na estratosfera,
inconsútil demais que a Terra pise,
envolvido nesse fólio de folhagens...

CRIMINALÍSTICA II

Assim expando todos os limites,
perturbador da cósmica harmonia,
subversivo a quanto ao redor via,
opositor a quanto tu me dites,

Mãe Natureza – espero não te irrites
com estranhas frases feitas de ousadia,
pois tão só imaginação te perseguia
nesses páramos celestes em que habites.

Dentro do cérebro não há qualquer fronteira,
por mais que seja pelo crânio limitado,
a mente dança nas circunvoluções,

à dura-máter de braço dado, inteira,
da pia-máter todo o círculo esgarçado,
a aracnoide ludibriando há gerações...

CRIMINALÍSTICA III

Não se limita a mente aos parietais,
nem a quimera é cerceada pela pele:
cavalga Pégaso na ventania que procele,
Leviathan a montar nos abissais;

ela se expande à frente dos frontais
em que o terceiro olho atento vele,
supraquiasmático centro que revele (*)
o mecanismo dos sonhos fantasmais.
(*) Centro controlador do sono, atrás do meio da testa.

Mais que traidor, o vate é transgressor
em suas metáforas de flavor arcano:
sou criminoso em meu mister de aedo,

aos pés dos deuses irrequieto adorador,
minha lira a dedilhar salmo profano
e nem a suas advertências então cedo.

CRIMINALÍSTICA IV

Bem além dos estígios me projeto,
sem que me possa conter o velho Dante;
Caronte desafiei como hierofante,  (*)
a descrever dos humanos cada afeto,
(*) Supremo sacerdote dos Mistérios.

a alma inteira a se tornar meu objeto,
mesmo votado à humildade triunfante,
dentes cerrados trauteando meu descante,
quer seja ele sublime ou abjeto

e a cada muro ou parede desafio:
junto as muralhas a tombar de Jericó
toco o shofar e não me encontro só;

no terremoto previsto já confio,
as pedras tombam sem ferir-me o pé,
na mesma angústia com que venceu Josué!

CRIMINALÍSTICA V

E tu, gentil amiga, não esqueças:
pode tua alma transgredir igual espaço,
pode teu sonho conquistar cada pedaço,
sem que da divindade nunca desças;

os teus limites, de fato, jamais meças;
o próprio Cristo proclamou, em manso abraço:
“Lembrai-vos, sois deuses!” – nesse passo
de seu sermão, a convidar que cresças,

mais que teus pais disseram que podias
ou que teu coração teme em silêncio,
que o Universo é teu, caso acredites

que muito mais há a teu alcance do que crias,
revoluteando na fumaça desse incenso,
paredes falsas para o mundo que hoje habites.

CRIMINALÍSTICA VI

As circunstâncias são apenas ilusórias;
caso empurres as paredes, são pastosas,
sem solidez as vastidões gasosas,
podes transpor essas fendas peremptórias;

as grades que encontrares são espúrias,
não há valas de falésias perigosas,
são só ilusões, horrendas ou formosas,
somente um mundo de aparências desultórias;

toma, portanto, o vento por ginete
e emprega doces brisas como arreios,
de tua jornada somente os sonhos freios;

enfrenta a rocha, que se fará confete,
lança teus dedos como serpentinas
e vem comigo partilhar de estranhas sinas!

TIORBA I – 30 AGO 16

EM TRANSPARÊNCIA E INSUBSTANCIALIDADE
TE ENVIO MEU AMOR, ROSA DE ESPINHOS,
POR MENOS QUE RECEBA TEUS CARINHOS,
MINHALMA TE JUROU E TERÁ FIDELIDADE,

NA PULCRITUDE DA MAIS ESTRANHA QUALIDADE (*)
MEU ESPÍRITO SE ELEVA E OS SONS MESQUINHOS
QUE ME PUXAM À TERRA, AZEDOS VINHOS
EM MAIS NADA ME PERTURBAM A INTENSIDADE.
(*) BELEZA
.
ASSIM VOO PARA TI, SONORA LUZ,
EM BUSCA DE TEUS OLHOS, NUM RELANCE,
POUCO ME IMPORTA SE NÃO CORRESPONDES.

É MAIS O AMOR DE TI QUE ME SEDUZ
DO QUE TUA SIMPLES POSSE EM DOCE TRANSE
E NEM LASTIMO QUANDO AMOR ME ESCONDES.

TIORBA II

OLHA QUE AMOR É TAMBEM UMA ILUSÃO.
OUTRO ASPECTO INCONSÚTIL DESSA MAYA,
SEM FIM E SEM COMEÇO NA SUA RAIA,
NASCE NA MENTE E DESCE AO CORAÇÃO,

DO MESMO MODO QUE QUALQUER EMPOLGAÇÃO,
QUE SOBRE MIM JAMAIS TEU SANGUE CAIA,
TOMA O UNIVERSO DOS SONHOS EM TUA BAIA
NESSE CANTO INAUDÍVEL DE AUDIÇÃO..

E SENDO ASSIM TRANSPOSTO TEU LIMITE
EMPURRO A LONA PARA QUE SE AGITE
E ENTÃO INGRESSO NA TENDA DE TEU SER,

POR MAIS QUE SEJA NO FUNDO MAIS SECRETO
QUE O COSMOS TODO DE ESPLENDOR DILETO
QUE JÁ PUDE DESVENDAR EM MEU QUERER.

TIORBA III

MULHER GENTIL QUE NUNCA CONHECI,
NEM TE CONHEÇO POR IDADE OU COR,
APENAS SEI DA IMENSIDÃO DE TEU AMOR,
QUE DESDE O INÍCIO DESTE VERSO EU INVADI.

SÓ NAS VÁRZEAS DO SONHO JÁ TE VI
E NEM RECORDO DE TEUS OLHOS O TEOR
OU OS RECORTES DE TEU ROSTO SEDUTOR,
DESCONHECIDA, MAS QUE AMO DESDE AQUI.

ASSIM EU VOO PARA TI COM INSISTÊNCIA,
BUSCANDO PELO ASTRAL A DUPLA LUZ
QUE ME REVELAM OS BICOS DE TEUS SEIOS,

POR ENTRE MIL VOLUTAS DE INCONSCIÊNCIA,
ASSIM EU VOGO, MEUS BRAÇOS EM CRUZ,
PARA ABRAÇAR-TE, EMBALDE TEUS RECEIOS.

TIORBA IV

ERA A TIORBA UM TIPO DE ALAÚDE,
PORÉM MAIS LONGO, DE COMPRIDO BRAÇO,
A SER ACALENTADA NUM ABRAÇO,
DELA TIRANDO O MEIGO SOM QUE ILUDE.

FOI IGUALMENTE CHAMADA ARQUIALAÚDE,
COM DOZE CORDAS DE SEMELHANTE TRAÇO,
NUM EMARANHADO A ATRAPALHAR O PASSO,
DESAFIO PRONTO A UM INTERPRETE MAIS RUDE.

LEMBRAVA A TÁBUA DO ITALIANO PERFUMISTA,
COM O FORMATO EM QUE MOÍA CADA ESSÊNCIA:
ALGUÉM ALI NOTOU CERTAS VINHAS ESTIRADAS,

PENSANDO LOGO EM MUSICAL CONQUISTA,
QUE EXECUTOU A GOLPES DE PACIÊNCIA,
ATÉ EXPOR SUAS NOTAS ENCANTADAS.

TIORBA V

E ASSIM, NOS LAIVOS DA IMAGINAÇÃO,
PERCEBEREI COMO CORDAS TEUS CABELOS
E OS TANGEREI EM MÍSTICOS DESVELOS
COMO O INSTRUMENTO DA MAIS PURA PERFEIÇÃO

QUE VEJO EM TI QUAL ESTOJO DE PAIXÃO:
SÃO DOZE VEIAS COMO DOZE SELOS,
CORDAS VOCAIS EM DOZE CANTOS BELOS
QUE APENAS TOCA QUEM SOUBER TER DEVOÇÃO.

E NISSO TUDO NEM MOSTRO ATREVIMENTO,
POIS CERTAMENTE NUNCA A MIM VERÁS,
PELO MENOS NESTES PLANOS MATERIAIS

MAS POR ONÍRICO QUE SEJA O JULGAMENTO,
ENTRE TEUS BRAÇOS ME RECEBERÁS
PELOS VIRENTES PRADOS SIDERAIS.

TIORBA VI

OU, QUEM SABE, SERÁS TU QUE ME IMAGINES
E ME DESEJES, QUAL TIORBA, DEDILHAR
AS DOZE CORDAS DO ANTIGO MEU PENAR,
RETALHADAS NO ARCABOUÇO DE MEUS VIMES.

EM TEU SONHO SERÁS TU QUE ME FASCINES,
FEITO DE SOMBRA E LUZ PARA AMANHAR,
ENTRE FUMAÇA MINHA FIGURA A IMAGINAR,
QUE NOS TEUS BRAÇOS, QUAL INFANTE, NINES.

DONZELA-TIORBA, DAMA DE MISTICISMO,
TAL QUAL POSSA SER OUSADO MEU DESEJO,
PERFEITO POSSA IMAGINAR TEU BEIJO,

FEITO DE LUZ E SOM DE ROMANTISMO,
NAS BREVES LINHAS QUE TE ESCREVO AGORA
MEU PORVIR ESCRAVIZADO AO TEU OUTRORA!...

BRADICINESIA I – 31 AGO 16

NESSA PRIMEIRA VEZ QUE DEZ SONETOS
FIZ NUM SÓ DIA, EM DELÍRIO E DESVARIO,
PROVEI O ORGULHO DE UM ANIMAL NO CIO,
PEQUENO ORGASMO DERRAMADO EM TAIS AFETOS.

NÃO ENTENDI, NESSA OCASIÃO, QUE TAIS EFEITOS,
TRIUNFOS SIMPLES DE MANHÃ DE ESTIO,
SE FOSSEM REPETIR AO CABO E AO FIO
DESSES ANOS SEGUINTES E INDISCRETOS.

JULGUEI ENTÃO QUE MÉRITO MEU FOSSEM,
DESLUMBRADO POR TAL REALIZAÇÃO
E NÃO APENAS POR CAPTAR DA INSPIRAÇÃO

DE POETAS MORTOS QUE ENTÃO EM MIM REMOCEM
E QUE ME OLHARAM COM CONDESCENDÊNCIA,
QUANDO JULGUEI SER MINHA A SUA POTÊNCIA...

BRADICINESIA II

EM OUTROS VEJO A TRISTE LENTIDÃO,
CHAMADA ÀS VEZES DE BRADICINESIA,
NESSE VAGAR QUE ENVOLVE SUA POESIA
PELA FALTA DE CONSTANTE INSPIRAÇÃO.

E AINDA VEJO O QUANTO APLICARÃO
PARA REUNIR A MINÚSCULA VALIA,
TANTO QUANTO SEU ESTRO PERMITIA
E A VAIDADE COM QUE O PUBLICARÃO!...

E COMPARANDO O HODIERNO COM O ANTANHO,
INVERSA BRADICINESIA EU AVALIO,
QUE FOI SENDO DERROTADA PELA IDADE,

POIS CADA ANO MAIS ME AUMENTA O GANHO,
QUE O PROGRESSO DOS SINTOMAS CONTRARIO
NO INCREMENTO DE MINHA FACILIDADE...

BRADICINESIA III

NA VERDADE, É UM MALIGNO SINTOMA,
QUE DIFICULTA, POUCO A POUCO, A VIDA,
MAIS QUE O TREMOR A QUE PARKINSON CONVIDA,
CUJO CONTROLE, ÀS VEZES, SE RETOMA.

MAS A BRADICINESIA É INVERSA SOMA,
PARA TODA RADIDEZ A DESPEDIDA,
O MENOR MOVIMENTO TORNA EM LIDA,
ATÉ O SIMPLES VIRAR NO LEITO EMBROMA.

PARA BANHAR-SE, COMER OU SE VESTIR,
DA OPERAÇÃO MENTAL O ENCADEAMENTO,
NUMA PERDA DE POTÊNCIA PROGRESSIVA,

TAL QUAL DA VIDA ESTIVESSE UM A FUGIR,
PERDIDO NA INDOLÊNCIA MAIS SEDIÇA,
QUAL CAMINHANTE EM AREIA MOVEDIÇA.

BRADICINESIA Iv

POR ISSO EXISTE UMA CERTA CRUELDADE
NESSE TÍTULO QUE ACIMA EU ESCOLHI,
UMA CERTA EMPATIA QUE PERDI,
OU MESMO FALTA DE SENSIBILIDADE.

NO MEU ORGULHO, DESDÉM, QUIÇÁ VAIDADE,
COM QUE COMPARO A LENTIDÃO QUE VI
COM A RAPIDEZ QUE HOJE MOSTRO AQUI,
UM TANTO ACIMA DO NORMAL DA HUMANIDADE.

MAS NESSE INSTANTE MAIS PERCEBO A PROTEÇÃO
QUE ME CONFERE A ESPIRITUALIDADE,
PELO QUE HOJE AGRADEÇO, EM HUMILDADE.

MINHA LUTA É O OPOSTO DE TODA A LENTIDÃO,
QUANDO ME ESFORÇO PARA FECHAR A ECLUSA
DA INSPIRAÇÃO QUE ATÉ DE MIM ABUSA...

CANÇÃO PARA TI 1 – 1º Srt 2016

Como folha de espada na bainha,
Meu grito fica preso na garganta;
Sem que o escutem, a ninguém espanta:
Nenhum rancor nos outros abespinha.

Mas quem disse que o desejo, minha rainha?
Essas palavras que meu estro canta
Dínamo são que amor somente imanta
E que do mundo exterior nem se avizinha.

E pelas ruas só passam de raspão,
Sem quaisquer casas buscando penetrar,
Influenciando corações e mentes,

Nem vasto mundo invadindo de roldão,
Pois desconfio que só iria incomodar
Tal multidão de versos tão prementes.

CANÇÃO PARA TI 2

A ti somente é que desejo perturbar,
De tua alma o mais recôndito escaninho,
Toda a vaza agitar com meu carinho,
Teus pensamentos buscando avassalar.

Talvez arranque de ti um suspirar,
A despertar-te algum langor mesquinho,
Qualquer saudade a chamar, devagarinho,
Na qual possas meus versos ocultar.

E dessa forma, conferir-lhes vida
E revestir-lhes de carne o arcabouço,
Pelo breve tremular de teu pescoço,

No deglutir de um soluço a despedida,
Alguma veia suavemente ali a pulsar
Com esse amor que sei não me irás dar.

CANÇÃO PARA TI 3

Já tantas vezes te falei, minha doce amada,
Perdida nas planícies da inconstância,
Tão próxima de mim essa distância
Para tua alma igualmente atribulada!...

Que pela vida foi deveres desprezada,
Na busca atroz de certa substância,
Que para traz deixaste, desde a infância,
Nas páginas de lenda amarfanhada...

Assim escrevo para ti esta canção,
Para que a escutes em total segredo,
Pois foi composta para ti somente!...

Que então a possas gravar no coração,
Guardando em ti a digital deste meu dedo,
No mesmo ritmo a palpitar frequente!...

O VÍCIO DO VENTO I – 02 SET 16

Vou percorrer as linhas magnéticas
e libertar as almas penduradas,
inadvertidamente ali capturadas
em seu voo para plagas mais estéticas.

Talvez tais intenções não sejam éticas:
deveriam por si só ser libertadas
as almas em tais nodos conservadas
de morte bem diversa sendo céticas.

Pesadas foram demais para se alçar
a qualquer páramo cósmico mais terno,
mesmerizadas, talvez, pelo remorso,

comprometidas demais para flutuar,
merecedoras a se julgar do inferno,
ondas de choque a lhes curtir o dorso.

O VÍCIO DO VENTO II

Ali ficam incrustadas em penúria,
em convulsões de tremor impenitente,
periódica epilepsia inconsistente,
atravessadas de inesperada injúria,

já acostumadas aos ventos dessa incúria,
cada vulto em sua torção subitamente,
cada choque novo ordálio persistente,
que então aguardam, em singular luxúria.

Incapazes, no geral, de se mover,
como pássaros em visgo confiscados,
lábios não tendo, nem braços esticados,

apenas sombras em constante padecer,
alheias contrações achando cômicas,
sob o viés das ondas eletrônicas.

O VÍCIO DO VENTO III

Há nessas linhas fulcros de atração,
que capturam, na maior firmeza,
aquelas almas desprovidas de leveza,
que longamente para o céu não flutuarão.

E nesses nódulos e portais há perdição:
têm cintilar de singular beleza,
teus olhares a captar com estranheza,
cantos dos olhos a tremer em confusão.

Algumas mentes nesses nós capturadas
necessitam de ficar em um só lugar,
as mais tolas chegam mesmo a se arraigar,

porém algumas, por ilações aladas,
aprendem por tais fios a navegar,
as mil vielas do planeta observadas.

O VÍCIO DO VENTO IV

Naturalmente, é uma vida vicarial,
tudo percebem por procuração,
linhas de força a lhes cortar o coração,
sempre presas a este plano terrenal,

sem que a sansara, em seu impulso sideral
para esgotar a cada humana sensação
seja por elas percorrida em viração,
não mais que sopros de vento no final.

Inertes fazem-se em observadores,
sem o direito de sair ao fim das cenas,
mas para outras volvendo sem remanso,

apresentando alguma vez falsos fulgores,
como santos ou avatares nessas penas,
girando a teu redor sem ter descanso.

O VÍCIO DO VENTO V

Nunca se tornam verdadeiras brisas,
incapazes de teu rosto refrescar,
quase eterno o seu vício singular,
sem afetar sequer o chão que pisas.

Houve lugares demarcados por balizas,
em que os crédulos vieram adorar
aparições que ali se veem manifestar,
templos erguendo intrépidos às visas!

E justamente sobre o fulcro erguem altar,
em que entronizam a falsa divindade,
talvez mostrando tão só viciosidade

e ali se prostram e pretendem adorar
essas pobres criaturas imperfeitas,
às próprias mágoas presas e sujeitas!

O VÍCIO DO VENTO VI

    Certamente de Éolo não são crias,
                 mas simplesmente por ele desprezadas,
tristes brisas ali mumificadas,
mentes e almas sem quaisquer valias,

que se condensam nas aparições que vias
ou que por outrem foram mencionadas,
tomadas por deidades encantadas,
inconsistentes vultos nessas vias.

Ventos viciados em perpétuas calmarias,
seu Hades a nutrir, particular,
algumas vezes habitando em esculturas,

veneradas por fiéis em romarias,
sem que de tantos se possam afastar,
sem conferir sequer graças impuras!

MORCEGOS DE CRISTAL I – 3 SET 16

Não existe razão para questões
Quando olhos se fundem noutros olhos,
Na multiplicação desses refolhos,
Cacos de vida saltando aos corações.

Nos olhos brilham muitas gerações,
Das circunvoluções em mil escolhos,
De nova vida buscando alguns espólios
A perpetuar em novas multidões.

Vivem vampiros em nós, benevolentes,
Que se nutrem de nossos pensamentos
E nos inspiram novos sentimentos.

Nestas medíocres rimas inconscientes
Flutuando em nós, na plena simbiose,
Cada ancestral a nos doar pequena dose.

MORCEGOS DE CRISTAL II

De fato, mais que tudo, amor nos dão,
Essa doce e irresistível armadilha,
Que de outro olhar o bote então nos pilha,
Feito em total e desejada escravidão.

E mesmo os beijos que são nosso quinhão,
Se tornam grades de saliva que ali brilha
E nos fazem percorrer milha após milha,
Na mesma trilha da arcana aquisição.

Ah, doce amor, que nos prendes no passado,
Mas que julgamos ao futuro conduzir,
Quão facilmente nossa adesão nos ganhas!

Assim pensamos outro olhar ter conquistado
E o outro pensa que nos pôde seduzir,
Ambas as vistas nas mesmas artimanhas!

MORCEGOS DE CRISTAL III

Contra nós é que explodem esse amor,
Qual uma lança, azagaia ou javelina,
A projetar-se dos olhos da menina
Ou do rapaz soltando raios de calor,

Formado um fluxo do maior vigor,
Que a mente totalmente nos fascina,
A orientar-nos a total futura sina,
Dita gentil a moldar nosso pendor!

Trazendo ao menos qualquer felicidade
E temporária vastidão de benefícios
Para nossa servidão tão voluntária;

Não é um domínio isento de bondade,
Mesmo que o olhar apenas cumpra ofícios
De convocar-nos a tal missão gregária.

MORCEGOS DE CRISTAL IV

Igual morcegos adejam os desejos,
Igual morcegos... totalmente cegos,
Prazer buscando, sem saber que empregos
Fazem de nós, arcanos seus almejos,

Que a teia tecem no cristal dos beijos,
Na escuridão da noite seus afagos,
Ação precípua de alquimistas magos,
Afastando de nós o tom dos pejos.

E nesse desnudar nos escravizam
Nas armadilhas ancestrais do sexo,
Para que em nós se perpetue a raça,

Nesses complexos pendores que repisam,
De nosso egoísmo a descartar o nexo,
Numa incumbência da mais perpétua graça.

MORCEGOS DE CRISTAL V

Por isso, cuida bem de teu olhar,
Antes que venha no de outrem penetrar,
Todo o porvir de tua vida a transmutar
Em benefício de uma nova geração.

Veneno existe, de doçura singular
No contemplar gentil de cada par
Que vasto espaço consegue atravessar,
Para prender-se em completa comunhão.

Na exaltação de total magnetismo
Que referimos como sendo amor
E que, de fato, buscam encontrar:

“Abre-te, Sésamo!” do portal do egoísmo,
Que se abre para nós com estridor,
Mágico instante de mescla singular.

MORCEGOS DE CRISTAL VI

Contudo, após cumprida a sua missão,
Lançado o filho em seu cordão umbilical,
Vão afinal os morcegos de cristal
Estilhaçar-se, quando tombam pelo chão.

Também assim pode partir-se esse cordão
Que nos prendeu em tal instante divinal,
Partilhando desse coro universal
Que se renova a cada geração.

E de algum modo, mesmo que ainda vivos,
Nos reunimos à incansável multidão,
Parte de nós então se esconde nesse olhar,

Que há de surgir em momentos mais ativos,
Sempre que novo encantamento forjarão
Olhos perdidos nos olhos de outro par!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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