quarta-feira, 10 de abril de 2019




A MORTE DO TEMPO &+
Novas Séries de William Lagos – 17-26/6/2018




A MORTE DO TEMPO  1 – 17/6/2018

Quando nasceu o tempo, realmente?
E quem pode ter sido o criador?
Atemporal é nosso grão-senhor,
Que o universo abrange integralmente.

Sendo infinito, Ele é onipresente,
De cada instante do tempo é o provedor?
Se divisível seria injusto o seu favor,
Caso contrário não seria onipotente.

Já Parmênides ao Onthos descreveu (*)
Como sendo perfeito e, em conseguinte,
Não poderia se prender ao temporal,
(*) O Ser

Mas desde sempre já permaneceu
E para sempre, com igual requinte,
Tal como é neste momento atual.

A MORTE DO TEMPO 2

Metáfora igual já existiu no paganismo:
Zeus matou Chronos, que se manifestou
Ao dominar Ouranos, que o gerou
E assim o Céu ao filho Tempo, sem sofismo,

Precedeu, sendo só por cataclismo
Que o mundo material se apresentou
E foi então que o Tempo começou,
Seus filhos deuses engolindo em seu abismo.

Mas quando Zeus a seu pai Tempo castrou,
Deu nascimento para a Eternidade,
Para os Olímpicos, em sua divindade,

Mas sobre nós o Tempo continuou,
A nos cobrir com sua mortalidade,
Dando término a cada qual que se iniciou.

A MORTE DO TEMPO 3

Assim o Tempo novamente se suscita
Quando brotaram os dentes do dragão,
Origem dando à humana geração,
Que tão somente no transitório habita.

Mas esse tempo, de fato, ressuscita?
Não será antes tão só concepção
Desses que nascem e têm percepção
De que sua vida em contingência agita?

Que cedo ou tarde, cada um que nasce
Deve voltar à terra que o gerou,
Como a semente nutrida no passado,

Quando o archote da vida então repasse
A qualquer um que após ele chegou,
Até ter seu próprio tempo consumado.

A MORTE DO TEMPO 4

O tempo é nosso, um dom individual;
Se fôssemos eternos ou inconscientes
De que fomos de outrem provenientes,
Talvez o Espaço parecesse ser fatal,

Não o período do leito maternal,
Mas os limites a percorrer, contentes,
De nós mesmos a ser circunjacentes,
Nos círculos concêntricos do Afinal.

As árvores dormem uma vez por estação
E então renascem na gestação seguinte,
Terão consciência de seu tempo de dormência?

E os animais, em sua hibernação,
Perceberão dessas semanas longo acinte
Ou os dias ligam sem reminiscência?

A MORTE DO TEMPO 5

Contigo mesma, após um longo sono,
Sem contemplares o perpassar do sol
Ou de um relógio não consultares o farol,
A quantas horas passadas dás abono?

Será que o tempo de ti mesma é o dono
Ou só um escravo arredio desse arrebol
Que raramente vês?  Só o girassol
O dia inteiro se retorce contra o trono.

É bem verdade que percebes estações,
Efeito claro do solar em translação,
Mas como os meses consegues avaliar?

Nas semanas vês mais claras divisões,
Porém de vinte e quatro horas qual razão
Se justifica na rotação do dealbar?

A MORTE DO TEMPO 6

E muito menos os minutos e os segundos,
Que se criaram por pura convenção,
Nesse impulso por organização
Que se opõe ao caótico dos mundos.

Quem os percebe, sem os sons rotundos
Dos tiquetaques da cronometração?
E que dizer da mais fina divisão
De suas frações em retalhos furibundos?

Quando morreres, teu tempo morrerá,
Pois não o levarás à eternidade
E muito menos se for sono completo.

Se a humanidade, enfim, se acabará
Dará hecatompe à temporalidade,
Da mente humana apenas o objeto.

A MORTE DO TEMPO 7

De qualquer modo, para onde vai o minuto
Depois de ter passado?  A outro plano,
Em que se forme um outro mundo insano
De fragmentos de tempo absoluto,

Sem um Espaço ali obter salvo-conduto
E sem presença de qualquer humano;
Talvez famílias haverá de modo arcano,
Segundos partilhando desse luto

Quais familiares do minuto falecido
E ali haverá pelo Espaço carpideiras?
Por que se fala de existir tempo perdido,

Se esse tempo em multidões inteiras
Já pereceu sem mais investiduras,
Afogado em suas memórias mais impuras?

A MORTE DO TEMPO 8

Mas pode acaso o Tempo falecer?
Somente morre quem certo dia nasceu...
Será o Infinito que o tempo concebeu
Em contraste com o que nunca vai morrer,

Por não ter tido qualquer berço em que nascer,
Sendo ele o berço em que se concebeu
E o concebido que ao berço origem deu
Qual fragmento infinitésimo a escorrer?

Se nunca houve um começo ou qualquer fim,
Poderá haver no bastião da eternidade
O espaçotempo numa só perenidade?

E de que forma pode o tempo decorrer,
Sem ter de fato seu antanho qualquer fim,
Nem seu porvir que não surgiu findar assim?

A MORTE DO OLHAR I  -- l8 jun 18 (*)
(*) Não é um erro, aqui empreguei gradação de cor.

Quando se espirra, a gente fecha os olhos,
Nem sequer de propósito.  É instintivo,
Que esternutar é um exercício tão ativo
Que para fora pode os olhos projetar!

O que acontece então com teu olhar?
Para onde vai?  Há algo de instrutivo
Nesse fechar das vistas incisivo,
As órbitas a fechar em seus refolhos?

E quantas vezes, para descanso da visão,
Teus olhos não fechaste para o mundo,
Somente a divisar esse encarnado

Dos capilares das pálpebras ou a agitação
De vagalumes da memória em iracundo
Percorrê-las, só da mente imaginado...

A MORTE DO OLHAR II

Para onde vai o olhar, quando se encerra
Pela grade das pestanas seu luzir,
Doces verdugos em meigo percutir,
Quando tua vida sem temor se enterra...

Durante a escuridão que nos aterra,
Abrem-se os olhos sem nada discernir...
Veio a cegueira, enfim, nos perseguir,
O medo arcano que o inconsciente aberra?

Então, se a luz acendes num tatear
E de imediato a vista ressuscita,
Como a visão demonstra ser bonita!

Bem mais tranquila, já a podes apagar,
Já consolada pelo interruptor,
Adiado assim o teu atávico terror!...

A MORTE DO OLHAR III

Mas que percebe teu olhar na escuridão?
Será que a vista se apaga, simplesmente?
Mas é tão forte esse temor subjacente
Que mil sonhos te compõe a imaginação!

Gotas somente de uma alucinação
Que teu quiasma ótico, impaciente,
Não captando uma imagem do consciente
Forma em alívio para a própria ocupação?

E assim afasta essa morte da visão,
Mesmo que enxergue apenas um fantasma,
Quando só existe para ver algum negror

Ou então contrasta as cores na ocasião,
Outro artifício a criar o teu quiasma
Em seu combate contra o final pavor?

FATORIAL! I –19 JUN 2018

o vento que doura meu sonho dourado
o ouro que aventa meu sonho aventado,
o sol que prateia meu sonho alunado,
a lua que aluna meu sonho assolado,

a terra que aterra meu sonho molhado,
a água que molha meu sonho aterrado,
o ar que evapora meu sonho queimado,
o fogo que fende meu sonho arejado,

o ferro que corta meu sonho acobreado,
o cobre que azinha meu sonho acerado,
o estanho que encobre meu sonho aferrado,

o chumbo que estanha meu sonho gelado,
o gelo que chumba meu sonho sangrado,
o sangue que doma meu sonho chumbado.

         FATORIAL! II

o cobalto que alumbra meu sonho cadmiado,
o cádmio que faísca meu sonho acobaltado,
o fósforo que grita em meu sonho clorado,
o cloro que aluma meu sonho fosfatado,

o alumínio que clora meu sonho nitrado,
o nitrogênio que dorme em meu sonho fluorado,
o fluor que brilha em meu sonho bromado,
o bromo que dança em meu sonho iodado,

o iodo que queima em meu sonho alumado,
o oxigênio que aviva meu sonho enxofrado,
o enxofre que dana meu sonho oxidado,

o selênio que cura meu sonho helicado,
o hélio que assopra meu sonho telurado,
o telúrio que habita meu sonho selenado.

FATORIAL! – III

o argônio que escova meu sonho xenoniado,
o kriptônio que data meu sonho argoniado,
o neônio que acende meu sonho kriptoniado,
o xenônio que chispa em meu sonho neonado,

o níquel que xênia em meu sonho calcinado,
o cálcio que endura meu sonho carbonado,
o carbono que move meu sonho litiado,
o lítio que azula meu sonho berilado,

o berílio que alegra meu sonho irradiado,
o rádio que queima em meu sonho escandiado,
o escândio que brota em meu sonho cesiado,

o césio que mata meu sonho hafniado,
o háfnio que chispa em meu sonho hidrogenado,
o hidrogênio que alenta meu sonho apaziguado.

INTROSPECTIVISMO I – 20 JUN 18

em certos dias pregressos de minha história,
se por qualquer razão perdi o ensejo
do que julgara ser garantido beijo,
coloquei o meu amor em moratória,

por adiamento e não falência inglória,
perdeu-se o ósculo como um leve adejo,
mas a esperança nem por isso aleijo,
sem ser em nada deferida ou compulsória.

o que é um beijo, senão uma ilusão
que se pretende ser apenas transitória
para a completa fruição sexual,

o que se aguarda, em nicho de emoção,
como uma pena mais ou menos compulsória,
no imaginário pouco ou nada de sensual.

INTROSPECTIVISMO II

que na verdade perdura na lembrança
mais o ensejo do que nunca ocorreu,
mas que frequente ali se concebeu,
que esses mil atos que a memória alcança,

igual que algum sabor desde criança,
algum perfume que infração nos deu,
ou injustiça que se pensa que sofreu,
voltam à mente cheios de implorança,

que os beijos se misturam em camadas
e quem distingue mil ocasiões afortunadas
que em nossa vida se multiplicaram?

enquanto as outras que nunca nos chegaram,
por bem ou mal, costumam ser lembradas,
sem que se tornem estratificadas?

INTROSPECTIVISMO III

existe em nós certa perversidade
que mais nos faz recordar humilhações
em detrimento de agradáveis ocasiões,
que más lembranças nos perseguem sem bondade,

tal qual tivéramos enfim necessidade
de insistir sobre as limitações,
os bons momentos por ingratidões,
abandonados nas lixeiras da vaidade.

é que esse beijo posto em moratória
de certo modo ainda se espera usufruir,
por mais que se concorde no impossível,

naquela ânsia de desbotada glória,
que se imagina nos pudesse reluzir
e se mastiga em insistência inexaurível!

MINERAÇÃO I – 21 JUN 2018

Sou eu que faço a noite.  Entre meus dedos,
recolho aqui um beijo, ali um carvão,
cabelos soltos a flutuar em solidão,
na tempestade de tantos mil segredos.

Recolho um fio de morte dos torpedos
que me enviam celulares sem razão;
guardo as mensagens dentro de um caixão
conservo a noite tingida de meus medos.

Eu vivo só por ela e durmo mais
durante a sesta que me mastiga a tarde,
do que nas horas que os outros dão ao sono,

porque essa noite é minha por demais,
em meu até, meu nunca, meu alarde,
nas horas cheias que ao labor eu abandono.

MINERAÇÃO II

Enquanto a noite aos outros complementa,
que o núcleo supraquiasmático governa,
no adiamento de outra noite eterna
e as horas de suas vidas desalenta,

nesse cansaço que à solidão atenta,
sempre o sono individual nessa caserna,
com sentinelas que algum sonho alterna,
nesses momentos em que a escuridão rebenta,

no cavalgar inglês da “égua da noite”, (*)
no germânico “vento alpino da opressão” (+)
e no gaulês em importuno cauchemar,
(*) Nightmare (+) Alpdrücken

minha multidão de monstros em aboite,
meu inconsciente a sofrer dominação,
que um pesadelo eu obrigo a reiniciar.

MINERAÇÃO III

De fato, há muito não recordo pesadelos,
por muito tempo meus sonhos a escolher;
caso algum mal neles possa perceber,
recordo logo serem apenas meus desvelos,

e em meu controle assim eu posso tê-los
para onde eu quero que me venha mover,
quando muito o meu destino a esquecer
em outros pontos dos territórios belos...

É até possível que venha a censurar
algum duende que me possa perturbar,
mas certamente me desperto inteiro

e mesmo em noite de sono entrecortado,
que algo de mau tenha sido descartado,
para outra luz a despertar ligeiro.

MINERAÇÃO IV

Mas sou eu que faço a noite em qualquer hora,
sem que Morpheu me domine realmente;
as madrugadas percorro indiferente,
nesse instinto feroz que vem do outrora

e assim trabalho diuturnamente a fora,
ou pego um livro para ler, em complacente
sonho acordado num viver subjacente
dos personagens que em breve vão-se embora

e ponho as horas noturnas em ataúde,
para o momento de sua exumação,
quando maior for o cansaço corporal,

ou quando sofra algum problema de mais rude,
quando as devoro em plena comunhão
e assim minero minha própria noite individual.

LIBERDADE I – 22 JUN 18

Se há coisa que não faço é reviver
o meu passado voluntariamente,
por mais que saiba se fazer presente,
quando o prefiro apenas esquecer...

Acontece que há momentos do viver
em que a memória se fixa mais frequente;
em geral são desairosos: tanta gente
que já nos destratou por malquerer.

Mas o pior são os momentos retornar
em que fizemos mal aos outros; ou ainda
comprender que não soubemos responder,

nem com a palavra certa, sem odiar
e sem amar tampouco nessa infinda
coletânea de erros a escolher...

LIBERDADE II

Se não revivo meu passado, voluntário,
de repente tal passado me revive
qualquer punhal do antanho que me crive,
em momentos de falsear no itinerário,

em ocasiões de pouco numerário,
quando queria ajudar e me contive,
porque os meios para tal não tive
e assumo a culpa pelo mau fadário,

muito mais a lastimar o que não fiz,
que certamente não poderia ter feito,
mas sem qualquer iniquidade voluntária

e lá do fundo me persegue o que não quis,
realizado mesmo assim ato imperfeito,
tal qual em mancha de maldade temporária.

LIBERDADE III

É meu costume tal lembrança engaiolar
em uma jaula que teci com meus cabelos,
os meus desgostos pelas frestas posso vê-los,
como um grilo que chinês quer conservar,

numa arapuca, sem deixar sorte escapar,
ainda que possa escutar os seus apelos,
mas sua entrada salivei com sete selos,
mais acústica proteção contra o ulular.

Assim me empresto temporária liberdade
de conviver unicamente com o presente
enquanto aguardo ver o filme do futuro,

sem invocar da vida a mortandade,
cada ano morto em sepultura assente,
por mais que meu porvir seja inseguro.

Terceirização i – 23 jun 2018

Como um soneto de métrica infamante,
A triste nênia da magra carpideira,
Roupas rasgadas, em cinza toda inteira,
Sangue escorrendo de arranhões, pulsante,

Profissional sem sentir-se comungante
Com esse luto em despedida derradeira,
A dispensar de chorar sua dor primeira
Essa família a reunir-se suspirante.

Igual que a carpideira palpitante,
Em seu gemido de pura expectância,
Quantos se enroscam no carpir de um sonho?

Que venham outros lastimar-se nesse instante,
Nessa dor paga de segunda instância,
Terceirizada em seu dever medonho.

Terceirização ii

Como um relógio de pilha palpitante,
Não mais a corda a requerer-se dar,
Tal qual relógio atômico a marcar
Eternamente, sem erro contrastante,

Só no ritmo degradado do pulsar,
Cada átomo a explodir a seu talante,
Nunca se sabe qual prossegue avante
Ou qual implode, outros átomos a gerar.

Também a pilha só requer a introdução
Nesse retângulo faminto de energia
Roubada ao sol, ao vento, à mutação,

Enquanto a nossa vida requeria
Corda cardíaca a gerar com emoção
Que um abantesma da alma furtaria.

Terceirização iii

Antigamente, quase tudo era manual,
As valas se cavavam com enxada,
Também a cova em que seria enterrada
Essa pessoa a quem carpiam na inicial.

A pilha para o esgoto já esgotada,
A antiga corda com ferrugem natural,
Após séculos desgastado o animal,
Cada cronômetro com duração marcada.

A carpideira já não é mais contratada,
Embora exista parasita de velório
Que se alimenta da lágrima enlutada,

A se aquecer no fogão do sofrimento,
Terceirizado sangue sem cibório,
Buscando ver a alma descartada.

Terceirização iv

Antigamente, também havia o compromisso,
A sensação do dever haver cumprido,
Morte e noite um descanso merecido
De um tempo dado só em fideicomisso,

Hoje em dia tudo sendo esquecediço,
Não se sabe por quem foi recolhido
O alimento pelo super fornecido,
Fruto da terra ou folha com seu viço.

Cada vez mais sem se carpir a terra,
Com grandes máquinas o solo a cultivar,
Um agrotóxico a ampulheta encerra;

Não obstante ao tempo mais se aferra
Quem não labora de forma regular,
Seu fértil tempo sem carpir e sem chorar.

torrentes 1 – 24 jun 18

escorre a chuva pela noite escura,
como se o céu se estivesse a desmanchar,
no carbonáceo cinzor de seu pingar,
nessa lamúria que a noite inteira dura...

mas embora nos pareça sem ternura,
essa chuva que esfria em seu chorar,
à sua maneira nos vem acalentar,
em ladainha da liquidez mais pura...

pela frente de minha casa o borbotar
de plástico enredado no papel,
não é a chuva da poluição sacrário,

mas sim das contas mortas do rosário,
envolvidas em pecados como fel,
pequenos berços de sêmen a navegar...

torrentes 2

um certo descontrole se percebe
na inundação a correr pelas cidades,
por sob nuvens de obscuridades
quando o sistema pluvial a água não bebe;

que a culpa seja alheia alguém concebe,
mas no passado só quem tinha veleidades
de construir às margens suas herdades,
toda a força da torrente então recebe.

porém cortada a relva protetora
e em lugar da pastagem só cimento,
não chupa o solo a chuva a seu contento,

só pedra e saibro sem força restritora,
tantas cidades erguidas à jusante
dessas torrentes de erosão constante.

torrentes 3

com o aquecimento global não me enlouqueço:
quem estudar os registros com cuidado,
sem ali buscar só o conveniente dado,
verá períodos de semelhante apreço;

há esfriamento do qual eu não me esqueço,
mas que deliberadamente é olvidado,
por um novo aquecimento proclamado...
que não o agravem simplesmente eu peço!

foi radiação solar exacerbada
a criar tais exageros de calor;
ou alguma erupção descontrolada,

ou impacto de meteoro de estridor
a atmosfera conservando resfriada,
até um tímido sol mostrar favor.

torrentes 4

certo é que o povo não tem educação
e não se importa se vai bueiros entupir,
para depois reclamar da água a rugir
ou se deixar arrastar na inundação.

certo também que o motor de combustão,
além das petrorreservas destruir,
com o aquecimento só se vai retroagir,
principal fonte de toda a poluição.

porém a chuva ainda cumpre o seu destino
e ainda se guarda para as plantações,
mesmo encontrando um represar em desatino.

a deusa Plúvia a chorar despedaçada
e então se vinga arrastando povoações,
por gravidade em erosão descompassada.

torrentes 5

dizem que um dia, nas brumas do passado,
uma camada estratosférica quebrou,
toda a umidade que continha condensou,
tendo o dilúvio universal originado.

muito mais certo o aquecimento ocasionado,
qualquer que seja o fator que o provocou;
grande degelo então desencadeou,
o solo inteiro assim sendo inundado.

o Mar do Norte sendo então criado,
deixando a Atlântida inteira submersa,
que há poucos anos já foi localizada,

embora a imprensa isto abafar tenha buscado,
pois a manchete dos tablóides se dispersa,
se a antiga lenda já foi desmitificada...

torrentes 6

a narrativa dessa chuva escritural
menciona as fontes que se abriram desde o abismo,
não só a chuva, sua invasão em cataclismo,
o Mediterrâneo em inundação exponencial.

e até o Mar Negro, nesse aquecer global,
velhas cidades submersas nesse cismo,
seus habitantes vitimou o catastrofismo,
no derreter do gelo que parecia perenal.

vai-se o calor e chega nova glaciação,
quatro sofremos em períodos bem recentes,
nos intervalos aquecimentos bem potentes

e embora Plúvia receba a acusação,
foi desse ciclo tão só a coadjuvante
e não a deusa louca ou a carrasca delirante.

DISTRAÇÃO I – 25 JUN 2018

Certa manhã, eu saía do escritório
A procurar em vão por meu boné,
Sobre os móveis e o divã, no chão até,
Já desbicado como em dia de velório!
Que fim levara meu têxtil cibório,
Que sobre a cabeleira tem a sé,
Há tantas décadas jaz ali com fé,
Essa nudez a divorciar nosso esponsório!

E o procurei, em vão, vários minutos:
Mas o que fiz, Senhor? Onde é que pus
O solidéu profano que me aqueça?
Já inspecionados do banheiro os dutos,
Fui coçar meu cocuruto que reluz
E o tempo todo estava em minha cabeça!

DISTRAÇÃO II

Tais problemas são causados por praxias,
Automatismos praticados sem pensar,
Há tantos anos com bonés a me enxergar,
Que meus cabelos raramente vias!
Toucas de banho lhes concedem anistias,
A cabeleira evitando de molhar...
Mas até hoje não cheguei a penetrar
De boné sob um chuveiro em tantos dias!

Não que me causem eles qualquer mal,
Pois até mesmo me protegem das batidas
E automatismos não ferem os meus dedos,
Mas distração é perigo bem mortal,
Quantas vidas foram já interrompidas
Por quem dirige a pensar em seus segredos!

DISTRAÇÃO III

Eu simplesmente me olvidei que meu boné
Sobre a testa estava já encarapitado...
Um presidente teve um dedo já arrancado,
Quando a seu próximo discurso dava fé!...
Ou talvez pensando apenas no café,
Que tomaria no intervalo já aguardado;
Não acredito que houvesse calculado
De alguma igreja ir então rezar na sé!

Eu me distraio só muito raramente,
Se nas térmicas vou verter água fervente,
A tal processo darei plena atenção,
Salvo em momento de maior perturbação,
Quando aos miados a meus pés se agita o gato,
Mais ração a exigir-me no seu prato!

MILÂNGULOS I – 26 JUN 2018

Sobre as paredes almas-penadas giram
em fogos-fátuos, quando o ventilador
as faz pairar quais vagalumes no calor,
gerando estrelas enquanto as pás se viram;

os Fogos de Santelmo ali se estiram,
desconsoladamente em seu palor,
como as luzes de espera a meu redor
indiferentes a que meus olhos firam.

Os fantasminhas giram num sentido
e se apagam no tornar do movimento,
brilham de espasmo sem dor ou sentimento,

nesse angular deambular perdido,
minhas paredes percorrendo sem marcar
e então se extinguem em flébil cintilar.

MILÂNGULOS II

Velas de fogo já desarvoradas,
sem mastros e sem leme diretor,
pequenos botes afundando sem pavor,
só se refletem enquanto projetadas.

Suas curtas vidas em breve são passadas,
nutridas só do movimento gerador,
têm um começo e um meio de estridor,
na turbulência das imagens encantadas.

Não terão filhos as centelhas refletidas,
é o Sol que as inaugura de repente
e as abandona sem comiseração;

viram-se as pás e ficam desnutridas,
em seu retorno não há chispa aparente
sobre as paredes isentas de emoção.

MILÂNGULOS III

Mas surge logo uma nova geração,
nesse brilho escritural feito esperança,
são cuneiformes num instante de bonança,
luz de papiro em tal fascinação.

Pobres chispas sem calor e sem noção,
sem um ruído sequer para lembrança;
quem lhes cedeu esse brilho de expectância,
transitório qual fagulha de fogão!?

Se num capricho ou por casualidade
eu modifico o fresco ângulo da brisa,
põem-se a correr em autódromo diverso;

a persiana lhes dá vida em falsidade,
reflexos de reflexos em sua lisa,
pequena marcha sobre o reboco imerso.

MILÂNGULOS IV

E até imagino se nós mesmos não somos
mil reflexos de correntes giratórias,
a luz do sol sobre leques, em arbórias
girândolas fantásticas em que pomos

nossa esperança, essa ilusão que fomos,
a quimera das futuras moratórias,
em nossa carne acumuladas as escórias,
os nossos dias a dividir em gomos,

chispas mensais em artifícios mais complexos
luzes anuais que insistimos em anotar,
em mil registros fugazes de centelhas,

nessa insistência em encontrarmos nexos
em nosso breve fulgir de cintilar,
não mais que luzes que já nasceram velhas.



Um comentário:

  1. Muito bela coleção de obras, A morte do temo, terceirização, mineração, torrentes, liberdade. OBRAS sociais, deixando registrado o que anda acontecendo em nosso país. Parabéns mil

    ResponderExcluir