segunda-feira, 22 de abril de 2019









OS ANÕES DA CLAREIRA
(Folklore alemão, recolhido pelos Irmãos Grimm e publicado em prosa por Viriato Padilha nas Histórias do Arco da Velha, Nona Edição  (1957) da Editora Quaresma. Versão poética de William Lagos, 8/5/2014)

OS ANÕES DA CLAREIRA I

Durante as guerras que assolaram a Alemanha,
muitos fugiam e as aldeias se esvaziavam...
O trabalho escasseava, em consequência
e os aprendizes já passavam fome...
Para escapar dessa terrível sanha,
dois dos rapazes que em tal lugar moravam,
temendo não mais achar do que se come,
saíram em busca de qualquer melhor vivência...

O mais velho, Jacob, era ferreiro
e aprendera muito bem a profissão,
mas de tanto apertar o fole para a forja,
o que fazia desde tenra idade,
criou corcunda e ficara torto, inteiro...
Não pudera ser soldado na ocasião,
criando ódio pela humanidade,
da qual dizia não ser mais do que uma corja!...

Mas até grato ser devia, na verdade,
pela dispensa do serviço militar;
muitos rapazes seus amigos haviam morrido,
mas afirmava que preferia até a morte
do que ter de passar necessidade,
com roupas velhas, sem poder se alimentar
e passava lamentando a triste sorte
da má estrela sob a qual havia nascido...

E quando Hermann, seu mestre, o dispensou,
ficou sentindo raiva ainda maior,
mas não havia mais trabalho para dois;
ganhou uns groschen, pão e charque num farnel
e o caminho da estrada então tomou;
de costas tortas, seu esforço era pior,
inclinado para a frente, ruminando o fel
de uma vingança, que cobraria depois!...

OS ANÕES DA CLAREIRA II

E enquanto resmungava no caminho,
ouviu os passos de outro viajante,
que na aldeia fora até seu camarada,
o qual depressa atrás dele foi chegando...
Chamavam-no Luddi, apelido de carinho,
outro aprendiz de profissão interessante:
era alfaiate, de fato se chamando
Ludwig, como dizia sempre a namorada.

Mas para todos os demais, ele era Luddi
e a Jacob cumprimentou, alegremente:
“Já vi que também vai para a cidade...
Melhor marcharem dois do que só um...”
Mas Jacob foi com ele um tanto rude:
“Pensei que trabalhasse com um parente!”
“Já não há serviço para mais de um,
mas em outra parte encontrarei felicidade...”

“Siga em frente, porque eu vou-lhe atrasar;
carrego os ferros da minha profissão
mais um estoque miserável de comida
e ainda tenho de levar a minha corcunda!
Foi culpa de meu mestre me aleijar
e me correu igual se expulsa um cão!
Já não suporto mais minha sorte imunda;
estou pensando em até dar fim à vida!...”

“Mas, o que é isso!?  À frente, muda a sorte:
vão nos querer em acampamento militar;
eu trago agulhas e bastante linha
para uniformes cerzir e costurar...
E você, que é ferreiro de bom porte,
pode sabres e lanças consertar;
a sorte vai aos dois nos ajudar;
mais adiante, nos será menos mesquinha!...”

OS ANÕES DA CLAREIRA III

“Não quero andar no meio de soldados,
que vão zombar de mim pela corcunda!
Fui ao sargento e nem quis me convocar!...”
“Mas, ora essa!  Tampouco eu fui engajado,
que acertar alvos não se acha nos meus fados!
De perto, eu vejo, mas assim que a vista afunda,
por mais que eu olhe, fica tudo atrapalhado!...
Foi de tanto no escuro costurar...”

“Você notou?  Também foi culpa de seu amo!
Eles nos pegam desde criancinhas
e nos aleijam em seu trabalho impuro!
E depois, se não precisam mais de nós,
eles nos jogam a um destino desumano!...
Mas o seu tio...?  Deu-lhe muitas moedinhas,
não foi...?  Em respeito a seus avós...”
“Bem ao contrário, meu farnel só tem pão duro.”

“Sei que meu tio até gosta de mim,
mas tem dez filhos para sustentar
e os meus pais, coitados!  Já morreram...
Mas prometeu-me a mão de Margarida
se eu tiver sorte em algum emprego, enfim...
Agulhas e linha devem-me bastar
para iniciar qualquer tipo de vida
e suas lições até que muito me renderam!”

“Pode até ser que nem tenha algum dinheiro,
mas pelo menos, pode leve caminhar,
enquanto malhos e martelos eu carrego!...”
Nessa conversa, a longa estrada percorriam;
chegando a um rio, Ludwig, bem ligeiro,
de um alfinete fez anzol e foi pescar;
depressa os peixes sua isca ali mordiam...
“Ao menos para isso, eu não sou cego!...”

OS ANÕES DA CLAREIRA IV

Então Jacob tirou de sua mochila
um ferrinho e uma pedra pederneira,
juntaram logo musgo e alguns gravetos,
ele fez fogo e foi mais lenha cortar,
com a machadinha que trouxera desde a vila;
logo se ergueu, alegre, uma fogueira
e assim puderam os dois se alimentar,
com seis peixinhos fincados em espetos!

Após descanso, reencetaram a caminhada,
Jacob já a se sentir mais animado;
seus ferros haviam mostrado utilidade
e seu amigo Luddi era um otimista;
a estrada à frente sempre bem conservada,
mas a seguir um largo trecho arborizado,
em que as sombras recaíam sobre a pista:
belo lugar para tocaia ou outra maldade!

Ludwig até indagou se havia desvio,
porém Jacob disse ser o melhor caminho,
passado o mato, uma vila encontrariam,
já viera aqui com seu mestre-ferreiro...
Cortou dois galhos de árvore, com brio,
“Agarre firme um destes, amiguinho,
serve de arma e é também bordão certeiro;
e que eu ando de armadura pensariam

os salteadores que espreitam por aí,
só de verem o tamanho da corcunda...”
Tiveram sorte, pois ladrões não encontraram,
mas a floresta parecia interminável
e a noite ainda os encontrou ali
“Olhe a Lua!  Também parece recorcunda!”
Brincou Jacob, para ser mais agradável
e os companheiros, alegres, continuaram...

OS ANÕES DA CLAREIRA V

A luz da Lua Minguante entre os pinheiros
ainda ver bem o sendeiro permitia
e os dois seguiram, agora com cautela,
até que, à frente, escutaram melodia...
“Será que há um casamento entre os vileiros?”
“Talvez jantar nos deem na cantoria!...”
Mas a seguir viram clareira que se abria,
na luz alegre de uma fogueira bela!...

Era uma roda de anões, todos dançando,
enquanto outros tocavam instrumentos
e na fogueira dois leitões assavam...
Nem parecia ser um lugar secreto
e então os dois se foram aproximando,
arrebatados como por encantamentos,
todo o cuidado perdendo por completo
devido à música que ambos escutavam...

Contudo, eles não eram esperados
e toda a dança cessou, subitamente.
Bem no meio da roda estava um velho,
usando túnica um tanto esfarrapada,
todos os tons no tecido misturados,
cada faixa de nuance diferente...
Uma batuta toda torta e desbeiçada
ele abanava, parecendo mais um relho...

E quando os dois se aproximaram mais,
o velhinho indagou: “O que quereis...?
Disse Ludwig: “Desculpe-me, senhor,
mas foi a música que nos seduziu...
Não os queremos atrapalhar jamais,
vamos embora, se deixar-nos podereis...”
“Não foi o cheiro da comida que atraiu?”
“Não; e nem podemos pagar por seu favor...”

OS ANÕES DA CLAREIRA VI

Porém disse Jacob: “Eu posso consertar
essa varinha com que marca o compasso!”
E disse Ludwig: “E eu costuro facilmente
esses buracos que traz no seu casaco!...”
Falou o velho,  barba branca a balançar:
“Pois vamos ver como saem do embaraço...
Caso consiga costurar cada buraco,
eu me darei por bem servido, certamente!...”

Despiu o manto e a varinha ele estendeu
para Jacob, que numa pedra a colocou
e a aqueceu ao fogo, com cuidado,
enquanto Ludwig costurava...
Tão logo a velha batuta amoleceu,
com um martelinho Jacob a endireitou...
E Ludwig cerzia e reparava,
bem mais depressa do que estava acostumado...

Ao mesmo tempo, recomeçava a dança,
os anõezinhos a cantar alegremente,
a música a enchê-los de entusiasmo!...
Seus clarinetes a desamassar trouxeram
e ao ver o manto consertado, sem tardança,
um outro anão trouxe o casaco, bem contente;
muitos consertos assim eles fizeram,
com rapidez que até os encheu de pasmo!

Depois dos instrumentos consertados
e as roupas todas em cerzimento estarem,
convidaram-nos a magnífica refeição:
frutas e carnes, raízes bem cozidas
e bolinhos de mel foram passados,
mais bebida de fazer beiços estalarem!
Ainda mais belas melodias então ouvidas
nos instrumentos, por sua renovação!...

OS ANÕES DA CLAREIRA VII

Mas a bebida era forte e os estonteara;
quando os anões recomeçaram a dançar,
os colocaram da roda bem no meio
e então o velho desembainhou uma faca longa!
Chegou-se a eles, com as mãos em garra,
mas embriagados, não tinham jeito de escapar!
Porém o velho começou, sem mais delonga,
a lhes raspar a barba, em ágil volteio!...

Logo a seguir, as cabeças lhes raspou
e como não mostrassem resistência,
o seu barbeiro pareceu bem satisfeito,
jogando pelos e cabelos na fogueira!...
Logo o fogo mais ainda se avivou
e então lhes disse que daria recompensa
por sua habilidade tão certeira,
à qual, por certo, os dois tinham direito!

E lhes mostrou um monte de carvão:
“Podem pegar dali o quanto quiserem...
Encham os bolsos e o que couber em sua mochila!”
Jacob e Ludwig depressa obedeceram,
sem saber ao certo qual a sua aplicação:
mas sempre é bom um combustível terem...
Com educação ao velho agradeceram,
que lhes mostrou o caminho para a vila...

Porém assim que à estrada retornaram,
ouviram sino a tocar num campanário
suas doze pancadas compassadas:
cessou o canto e a fogueira se apagou!
Os dois amigos muito se espantaram,
porém seguiram no seu itinerário
e à luz da Lua logo um celeiro se avistou
e então entraram, dando as mais leves pisadas...

OS ANÕES DA CLAREIRA VIII

Mas ali só encontraram animais
e no meio da palha se deitaram,
muito cansados e logo adormeceram,
sem os seus bolsos esvaziar sequer!
Só se acordaram com os mugidos matinais...
Com algum esforço, os dois se levantaram
um grande peso os levando a se encolher
e as mãos nos bolsos então eles meteram...

Para seu espanto, em lugar do carvão,
estavam cheios de moedas de ouro
e nas mochilas achavam-se diamantes!...
Mal podiam em sua sorte acreditar!
Porém com medo de alguma acusação,
foram depressa à fazenda, sem desdouro,
dois cavalos oferecendo-se a comprar
por dois ducados de ouro, deslumbrantes!

As mochilas não chamavam a atenção
e não mostraram possuir mais algum dinheiro.
O fazendeiro os atendeu, de boa vontade
e pão e leite também compartilhou...
Com uma guerra de tão grande duração,
valia o ouro muito mais que parelheiro
e nem ao menos da sua origem indagou,
pois lhe traria maior prosperidade...

Ora, o alfaiate usava roupas novas
e o ferreiro passaria por criado.
Inventaram que em sua vila um regimento
havia passado e esvaziado a estrebaria
e que em troca de tão duras provas
o tenente só lhes havia jogado
as duas moedas que ele agora via
e então fugiam da guerra e sofrimento...

OS ANÕES DA CLAREIRA IX

Pediram licença para se lavar
e havia um espelho rachado no banheiro;
só então se deram conta que os cabelos
e suas barbas haviam voltado inteiramente!
Da mesma cor, sem sequer agrisalhar:
aquele anão era mesmo um feiticeiro!
Em seus cavalos galoparam, alegremente
e um estalajadeiro se alegrou em vê-los!

Escondidos em seu quarto, eles contaram
suas moedas e diamantes, que fortuna!
Mas o ferreiro percebeu que tinha mais:
“É que na forja eu sempre usei carvão
e meus bolsos com as pedras se apinharam...”
De orgulho o seu peito já se enfuna,
mas se deixou levar por ambição:
“Vamos voltar?  Eles têm ouro demais!...”

Mas Ludwig disse já ter o suficiente.
“Vou costurar bem os bolsos do casaco
e amanhã viajarei a Wuppertal,
onde a irmã de meu pai ainda mora.
Vou alugar uma oficina, calmamente,
esconder os meus diamantes num buraco,
como alfaiate alcanço fama, sem demora,
loja de roupas após montar é o meu ideal!...”

“Está certo... Mas me espera até amanhã?
Viajaremos outra vez juntos depois...
Mas quero ir para um lugar maior:
compro uma fábrica e produzo ferramentas!
Depois me caso com mulher bela e louçã,
sem que a corcunda interfira entre nós dois!”
“Mas com tudo o que tens não te contentas?
Começa a vida com uma fábrica menor...”

OS ANÕES DA CLAREIRA X

Porém Jacob não quis mudar de ideia:
comprou um casaco com bolsos bem maiores
e dois alforjes para o seu cavalo;
de tarde, retornou para a floresta,
em que escutou de novo a melopeia
e os anões lhe foram acolhedores...
Feito o banquete e terminada a festa,
chegou o velho outra vez para barbeá-lo...

Depois disso, encheu os bolsos com carvão
e os dois alforjes pendurados no cavalo...
Antes de soar meia-noite, despediu-se
e retornou, muito alegre, pela estrada,
o amor do ouro a lhe encher o coração;
na estalagem, chamou Ludwig a ajudá-lo,
para levar os dois alforjes pela escada
e do amigo mais modesto muito riu-se...

Mas de manhã, bem cedo, se acordou,
com Ludwig ainda adormecido
e em vez de alforjes, só dois montes de carvão!
Apenas mais carvão no seu casaco!...
Desesperado, o ouro de antes procurou:
fora em carvão novamente convertido!...
Foi procurar em frestas e em buraco
e a Ludwig acordou, num safanão!...

“Meu ouro!” – lhe falou.  “Você o guardou?”
“Não, Jacob... Eu só guardei o meu,
mas o que foi que aconteceu com seu cabelo?”
Jacob se olhou na vidraça da janela
e estava calvo como quando lhe raspou
o velho anão, que depois carvão lhe deu!...
Mas o tesouro de Ludwig ainda era belo
e lhe propôs repartir, no seu desvelo...

OS ANÕES DA CLAREIRA XI

Jacob até desconfiou, por um momento:
“Tem certeza de que ninguém entrou aqui?”
“Você passou no quarto a noite inteira...
E o anão lhe fez a barba, novamente...?”
Jacob o encarou, com arrependimento:
“Foi um castigo, porque eu voltei ali!
Por minha cobiça demonstrou-se descontente;
Tirou-me o ouro, com sua mágica traiçoeira!”

“Mas já lhe disse, tenho mais que suficiente:
vamos metade por metade repartir...”
Jacob primeiro não queria aceitar,
Mas Ludwig o acabou por convencer:
“E se o anão velho está espionando a gente?
Se não reparto, pode também o meu sumir...
Mas primeiro veja se alguém lhe quer vender
um bom chapéu para a careca lhe tapar...”

“Se perguntarem, diga ter sido uma promessa...
De roupas novas também vai precisar.”
Só então Jacob notou que com as velhas estava:
até o casaco grosso havia sumido!...
“Mas, e os cavalos!?” Desceram na maior pressa
até a estrebaria, ver se os podiam encontrar,
e ambos acharam, nenhum dos dois havia sumido:
Ludwig os comprara com o dinheiro que levava...

Após a refeição, o estalajadeiro
os encaminhou a uma lojinha do lugar,
onde compraram as roupas e um chapéu
e mais um saco para guardar o carvão:
“Para em minha forja acender fogo primeiro.”
Depois voltaram para as contas acertar
e o ferreiro carregou cheio o seu turrão,
caso acendessem fogueira a pleno céu.

OS ANÕES DA CLAREIRA XII

Paga a hospedagem, os dois juntos partiram
e até armas se lembraram de comprar,
cavalgando em direção a Wuppertal,
sem sofrer incidentes no caminho.
Lá um armazém vazio depressa viram;
falou Jacob que deveriam só alugar;
era melhor começar devagarinho:
que sua lição impedisse um novo mal...

Alugado o armazém, já se instalaram:
Jacob pôs sua forja a trabalhar,
Ludwig, ao lado, montou a alfaiataria;
na sobreloja apartamentos arrumaram;
encomendas para os dois logo chegaram,
pois Jacob era aplicado em seu ferrar
e Ludwig com a agulha; e prosperaram;
refeições a tia de Ludwig lhes servia...

Eventualmente, Jacob se interessou
pela tia solteirona e os dois casaram;
muito alegre, Ludwig foi o padrinho;
juntos compraram o armazém, após um ano;
seus diamantes Ludwig depositou
no melhor banco da cidade que encontraram;
o ouro gastaram de acordo com seu plano,
sem chamar a atenção, bem de mansinho...

Mas assim que Ludwig prosperou,
voltou à aldeia em que morava o tio
e se casou com sua prima e namorada;
desta vez, foi Jacob o seu padrinho,
que junto com a esposa viajou,
formando os três um bem alegre trio,
quando a tia se encontrou com seu maninho,
de quem estivera muitos anos separada!

EPÍLOGO

Os dois casais tiveram muitos filhos
e nenhum dos de Jacob saiu corcunda!
Daí a dois anos, Ludwig a loja abria
e se mudava para o centro da cidade;
tios e primos fez seguir os mesmos trilhos
e os recebeu, numa afeição profunda,
tão felizes quão ser pode a humanidade
quando a miséria não mais os afligia...

Viraram joias, um a um, os seus diamantes;
Jacob uma fábrica aos poucos foi montar;
mesmo que o amigo firmemente o recusasse,
a Ludwig queria pagar o que emprestara,
e seus parentes encaminhou como estudantes,
embora os dois jurassem não contar
onde a origem da fortuna se encontrara,
que a ambição a nenhum deles tentasse!...


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