BOCAS DE CRISTAL
I – 17 OUT 2020
Não existe
palavra pequena ou com magreza,
são magníficos
esses seres filológicos,
racionais em seu
poder ou então ilógicos,
quase divinos em
seus rasgos de impureza;
mas palavras nos
devoram, com certeza,
canibalizam os
sistemas histológicos,
potencializam os
fervores neurológicos,
são impostoras
em toda a sua nobreza...
Não somos mais
que palavras, todos nós,
balões escusos,
cheios de metano,
só mantidos no
ar por verborreia...
Igual que os
outros, das palavras sigo empós,
elas me iludem
com seu filtro desumano
e me consomem ao
final de sua epopeia!
BOCAS DE CRISTAL
II
Segundo dizem,
eu nasci com este dom
da palavra, não
para a oratória,
mas para a
versação de cada história
em um poema de
amargo ou meigo tom;
se tal dote
recebi, sei que foi bom
comprometer-me
em verter memória
sobre as mentes,
em ação circuncisória
de certas partes
de mim, igual vison,
que só desejam
após ser esfolado
e cada verso que
parte de minhas mãos
se torna em
frágil boca de cristal,
não sendo eu
mesmo que seja desejado,
porém alvéolos
retirados dos pulmões,
tais quais palavras
de cerne material.
BOCAS DE CRISTAL
III
Segundo consta
das Santas Escrituras,
o Verbo se fez
carne e entre nós habitou;
poucos entendem
realmente o que falou
o Evangelista em
tais prédicas puras;
não foi a carne
de Deus consoante juras,
mas a Palavra,
que desde o céu soou,
a Sua Voz
sublime é o que nos enviou,
em nossas chagas
assoprando as curas...
Há o costume de
julgar que a oração
seja uma forma
de pedir a Deus presentes,
mas se trata
muito mais de ações de graças
e assim
louvarmos essa divina mão,
que em nada é
mão humana, mas ardentes
palavras a
desculpar-te o quanto faças.
BOCAS DE CRISTAL IV – 2 junho 2023
Guardei palavras em bocas de cristal
e até muitas destilei em partituras,
até certas melodias muito puras,
que do piano havia roubado no geral;
de meus versos geralmente um consensual
partilhei sobre o papel em mil loucuras,
transformei em cristal palavras duras,
nessa esperança de guardar, em tom sensual,
as mil bocas de cristal na biblioteca,
entre os milhares de livros que perdi
e os centenares de discos que reuni,
mas de um incêndio o tisne já resseca,
livros e discos em estalos a morrer
os poemas a me acusar por perecer.
BOCAS DE CRISTAL V
De certo modo, durante o meu sinistro,
como chamavam um incêndio antigamente,
as notas se evoluiram, incertamente,
a badalar em cada harpa e cada sistro,
enquanto na fumaça, avidamente,
de minha vida apagava-se o registro,
cada disco e cada livro, nesse histo-
grama de vento a planar amargamente.
Mas sei que em algum lugar de meu passado
ainda se escondem essas bocas de cristal,
suas notas puras e doces com o mel
e enquanto devaneio, descuidado,
posso evocar órgão de tubos, afinal,
que na memória esporeio qual corcel.
BOCAS DE CRISTAL VI
Mas não somente ali – o som que voa
encontra algures outros escaninhos,
ele se esconde em ramos de azevinhos,
na sombra esquiva a perseguir cada pessoa;
o som se aagita quanto a fonte escoa
e no canto singular dos ribeirinhos,
meu som se mescla a tantos seus vizinhos
e na amplidão do por-do-sol ressoa.
O som do órgão abrande o ar inteiro,
está nas nuvens e no grito derradeiro
de cada gota quando a chuva acaba,
em cada pássaro de som alvissareiro,
em cada onda que a meus pés se apaga
e em cada verso que um poema afaga.
BOCAS DE CRISTAL
VII – 3 junho 2023
E novamente o
som se acha presente
em lugar bem
arcano e mui secreto,
em mundo mais
suave e mais dileto
que o nosso
mundo de amor insuficiente;
existe gente que
o conserva sob o teto,
talvez fingindo
que só em lendas se apresente,
guardado ali por
ninfa mais clemente
do que Pyros em
seu guloso afeto.
Talvez se
encontre em um mundo paralelo,
como diziam – em
outra dimensão,
em que meus bens
não foram consumidos
por esse deus do
fogo, no seu zelo,
quiçá para
adornar qualquer mansão
em que ele os
guarda como lucros mal-havidos.
BOCAS DE CRISTAL
VIII
À maioria dos
deuses já bastava
o “suave cheiro”
de oferendas e holocaustos,
aspiravam de
seus tronos largos haustos
das ofertas
queimadas em que invocava
por seu nome o
sacerdote que matava
as pobres vítimas
por ocasião dos faustos,
sendo a carne
consumida nesses lautos
banquetes, que
só um pouco se queimava.
Até mesmo a
Plutão, o deus da lava
ou ao feroz
Moloque contentava,
embora crianças
inteiras lhe queimassem,
mas para o altar
de Pyros não chegassem,
sendo talvez, em
cada ígneo festival,
cada chama uma
boca de cristal.
BOCAS DE CRISTAL
IX
Quem sabe,
também Pyros me queimou
e nem sequer, mesmo hoje, o percebi,
apenas penso,
por me julgar aqui,
com estes dedos
que o fogo não cremou,
mas me mantém, na
prisão em que encerrou
as outras
vítimas escolhidas para si
e todo o verso,
desde então, só redigi
sob a ameaça
dessas flamas que invocou.
Enquanto em meu
ergástulo trabalho
Pyros me envolve
com o cheiro das memórias,
em sua brumosa e
magra refeição;
porém se um dia
em tal tarefa eu falho,
as barras se
avermelham transitórias
e queimo os
dedos se nelas ponho a mão.
BOCAS DE CRISTAL X – 4 jun 2023
Então escorre a música esquiva do passado
por entre os carpos que expuseram as queimaduras,
ferventes perpassando mil agruras,
que cada punho deixarão mais calcinado,
caso os queira ali reter de revoltado,
por momentos a desejar vilegiaturas,
mas Pyros não me inspira com ternuras,
com seus abraços sou pelo ele chicoteado.
Pois são hastes de fogo suas vergastas
e me percorrem as costas sem clemência,
caso busque me evadir desse talento
e desfrutar pequenas horas castas,
sem exercer de meu sexo a potência
e fecundar somente as chamas desse vento.
BOCAS DE CRISTAL XI
Eu sou escravo de meu próprio fogo
e coloco a mim mesmo sobre a grelha;
as queimaduras que me corpo espelha
ao mundo inteiro nos meus versos jogo,
pois essas bolhas se arrebentam logo,
quais em balidos de degolada ovelha,
rebatidas a explodir em cada centelha,
cada poema as preces de meu rogo!
E estendo assim os dedos calcinados
para que tomem a cânula do sangue
e a transformem em tinta de ilusão
e me desgasto em tais versos compilados
por esse ânsia que me torna exangue,
alimentada por minha própria expiração.
BOCAS DE CRISTAL XII
Se calcinado eu fui, escorrem flamas
por minhas veias mal recuperadas,
cai a pele em carnações acinzentadas,
iluminadas de dentro pelas chamas;
sou árvore despida e cujas ramas
foram da seiva totalmente desvaziadas,
dilui-se o pó das artérias descarnadas
e as labaredas dançam, rubras damas.
A meu redor sua iníqua inspiração
que sobre mim impõe os seus segredos,
depois da escrita, sem ser nem bem nem mal,
feitos de fibras que arranquei do coração,
transformadas nas mágoas de meus dedos,
sangue esguichado em bocas de cristal!
BOCAS DE CRISTAL
I – 17 OUT 2020
Não existe
palavra pequena ou com magreza,
são magníficos
esses seres filológicos,
racionais em seu
poder ou então ilógicos,
quase divinos em
seus rasgos de impureza;
mas palavras nos
devoram, com certeza,
canibalizam os
sistemas histológicos,
potencializam os
fervores neurológicos,
são impostoras
em toda a sua nobreza...
Não somos mais
que palavras, todos nós,
balões escusos,
cheios de metano,
só mantidos no
ar por verborreia...
Igual que os
outros, das palavras sigo empós,
elas me iludem
com seu filtro desumano
e me consomem ao
final de sua epopeia!
BOCAS DE CRISTAL
II
Segundo dizem,
eu nasci com este dom
da palavra, não
para a oratória,
mas para a
versação de cada história
em um poema de
amargo ou meigo tom;
se tal dote
recebi, sei que foi bom
comprometer-me
em verter memória
sobre as mentes,
em ação circuncisória
de certas partes
de mim, igual vison,
que só desejam
após ser esfolado
e cada verso que
parte de minhas mãos
se torna em
frágil boca de cristal,
não sendo eu
mesmo que seja desejado,
porém alvéolos
retirados dos pulmões,
tais quais palavras
de cerne material.
BOCAS DE CRISTAL
III
Segundo consta
das Santas Escrituras,
o Verbo se fez
carne e entre nós habitou;
poucos entendem
realmente o que falou
o Evangelista em
tais prédicas puras;
não foi a carne
de Deus consoante juras,
mas a Palavra,
que desde o céu soou,
a Sua Voz
sublime é o que nos enviou,
em nossas chagas
assoprando as curas...
Há o costume de
julgar que a oração
seja uma forma
de pedir a Deus presentes,
mas se trata
muito mais de ações de graças
e assim
louvarmos essa divina mão,
que em nada é
mão humana, mas ardentes
palavras a
desculpar-te o quanto faças.
BOCAS DE CRISTAL IV – 2 junho 2023
Guardei palavras em bocas de cristal
e até muitas destilei em partituras,
até certas melodias muito puras,
que do piano havia roubado no geral;
de meus versos geralmente um consensual
partilhei sobre o papel em mil loucuras,
transformei em cristal palavras duras,
nessa esperança de guardar, em tom sensual,
as mil bocas de cristal na biblioteca,
entre os milhares de livros que perdi
e os centenares de discos que reuni,
mas de um incêndio o tisne já resseca,
livros e discos em estalos a morrer
os poemas a me acusar por perecer.
BOCAS DE CRISTAL V
De certo modo, durante o meu sinistro,
como chamavam um incêndio antigamente,
as notas se evoluiram, incertamente,
a badalar em cada harpa e cada sistro,
enquanto na fumaça, avidamente,
de minha vida apagava-se o registro,
cada disco e cada livro, nesse histo-
grama de vento a planar amargamente.
Mas sei que em algum lugar de meu passado
ainda se escondem essas bocas de cristal,
suas notas puras e doces com o mel
e enquanto devaneio, descuidado,
posso evocar órgão de tubos, afinal,
que na memória esporeio qual corcel.
BOCAS DE CRISTAL VI
Mas não somente ali – o som que voa
encontra algures outros escaninhos,
ele se esconde em ramos de azevinhos,
na sombra esquiva a perseguir cada pessoa;
o som se aagita quanto a fonte escoa
e no canto singular dos ribeirinhos,
meu som se mescla a tantos seus vizinhos
e na amplidão do por-do-sol ressoa.
O som do órgão abrande o ar inteiro,
está nas nuvens e no grito derradeiro
de cada gota quando a chuva acaba,
em cada pássaro de som alvissareiro,
em cada onda que a meus pés se apaga
e em cada verso que um poema afaga.
BOCAS DE CRISTAL
VII – 3 junho 2023
E novamente o
som se acha presente
em lugar bem
arcano e mui secreto,
em mundo mais
suave e mais dileto
que o nosso
mundo de amor insuficiente;
existe gente que
o conserva sob o teto,
talvez fingindo
que só em lendas se apresente,
guardado ali por
ninfa mais clemente
do que Pyros em
seu guloso afeto.
Talvez se
encontre em um mundo paralelo,
como diziam – em
outra dimensão,
em que meus bens
não foram consumidos
por esse deus do
fogo, no seu zelo,
quiçá para
adornar qualquer mansão
em que ele os
guarda como lucros mal-havidos.
BOCAS DE CRISTAL
VIII
À maioria dos
deuses já bastava
o “suave cheiro”
de oferendas e holocaustos,
aspiravam de
seus tronos largos haustos
das ofertas
queimadas em que invocava
por seu nome o
sacerdote que matava
as pobres vítimas
por ocasião dos faustos,
sendo a carne
consumida nesses lautos
banquetes, que
só um pouco se queimava.
Até mesmo a
Plutão, o deus da lava
ou ao feroz
Moloque contentava,
embora crianças
inteiras lhe queimassem,
mas para o altar
de Pyros não chegassem,
sendo talvez, em
cada ígneo festival,
cada chama uma
boca de cristal.
BOCAS DE CRISTAL
IX
Quem sabe,
também Pyros me queimou
e nem sequer, mesmo hoje, o percebi,
apenas penso,
por me julgar aqui,
com estes dedos
que o fogo não cremou,
mas me mantém, na
prisão em que encerrou
as outras
vítimas escolhidas para si
e todo o verso,
desde então, só redigi
sob a ameaça
dessas flamas que invocou.
Enquanto em meu
ergástulo trabalho
Pyros me envolve
com o cheiro das memórias,
em sua brumosa e
magra refeição;
porém se um dia
em tal tarefa eu falho,
as barras se
avermelham transitórias
e queimo os
dedos se nelas ponho a mão.
BOCAS DE CRISTAL X – 4 jun 2023
Então escorre a música esquiva do passado
por entre os carpos que expuseram as queimaduras,
ferventes perpassando mil agruras,
que cada punho deixarão mais calcinado,
caso os queira ali reter de revoltado,
por momentos a desejar vilegiaturas,
mas Pyros não me inspira com ternuras,
com seus abraços sou pelo ele chicoteado.
Pois são hastes de fogo suas vergastas
e me percorrem as costas sem clemência,
caso busque me evadir desse talento
e desfrutar pequenas horas castas,
sem exercer de meu sexo a potência
e fecundar somente as chamas desse vento.
BOCAS DE CRISTAL XI
Eu sou escravo de meu próprio fogo
e coloco a mim mesmo sobre a grelha;
as queimaduras que me corpo espelha
ao mundo inteiro nos meus versos jogo,
pois essas bolhas se arrebentam logo,
quais em balidos de degolada ovelha,
rebatidas a explodir em cada centelha,
cada poema as preces de meu rogo!
E estendo assim os dedos calcinados
para que tomem a cânula do sangue
e a transformem em tinta de ilusão
e me desgasto em tais versos compilados
por esse ânsia que me torna exangue,
alimentada por minha própria expiração.
BOCAS DE CRISTAL XII
Se calcinado eu fui, escorrem flamas
por minhas veias mal recuperadas,
cai a pele em carnações acinzentadas,
iluminadas de dentro pelas chamas;
sou árvore despida e cujas ramas
foram da seiva totalmente desvaziadas,
dilui-se o pó das artérias descarnadas
e as labaredas dançam, rubras damas.
A meu redor sua iníqua inspiração
que sobre mim impõe os seus segredos,
depois da escrita, sem ser nem bem nem mal,
feitos de fibras que arranquei do coração,
transformadas nas mágoas de meus dedos,
sangue esguichado em bocas de cristal!
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