DULCIMÔNIOS I – 20 JUNHO 2023
(Renée Adorée. cinema mudo francês)
fiz o que pude contra essa fusão
de minha própria alma contra a tua,
contra a qual empreguei toda a razão,
aguda e firme como espada nua,
mas esse amor que sobre a mente atua
não se desfaz a golpes de facão,
não se suspende com vigor de grua,
sem que se arranque o próprio coração
e agora que te vejo novamente
e minha razão se esflora em desatino
e se transfere num clangor de sino,
por esta noite gélida e inclemente,
eu me percebo a tal amor todo impotente,
rendido totalmente ao teu destino!
DULCIMÔNIOS II
nem sei se aguardo. as coisas acontecem
sem que as impeça ou me esforce
para as provocar,
cem vezes já tentei ao mundo
dominar,
mas em todas ocasiões todas
perecem;
da memória tais momentos já se
esquecem,
nem sequer intenções sem
realizar,
pois toda vez que um tesouro
fui buscar,
as cédulas em minhas mãos
desaparecem;
enfio as mãos nos bolsos,
cheias de ouro,
mas então, quando as retiro, só
vem palha,
que o ouro dos duendes é
ilusório,
mas no meu caso até mais
transitório,
que a própria palha desse meu
tesouro
fumaça vira e pelo céu se
espalha.
DULCIMÔNIOS III
eu me lembro. há pouco tempo
atrás,
quando um homem solteiro era
invejado,
pelas “moças encalhadas”
cobiçado
e era referido tão só
como”solteirão”;
também lembro dessa gente lá de
trás,
que olhava sem malícia, lado a
lado,
um belo par de meninas
abraçado,
sem encontrar o menor mal na
posição,
quando até mesmo um real tempo
houvesse
que fosse o beijo de um filme
algo excitante,
de nudez só em duas peças pela
praia,
quando raro era um biquini que
estivesse
até numa revista e mesmo a saia
não se ostentasse de forma
transparente!
DULCIMÔNIOS IV – 21
JUNHO 2023
éramos quatro uma
vez. dois já morreram,
um foi de ‘aids’,
falhou de outro o coração,
arrebatado em mil
lufadas de emoção,
que suas artérias não
entreteceram;
caminhamos sem pausa
até o cerro,
resto erodido de um
ancilar vulcão,
onde uma cruz erguera
a religião,
tombada e cinza agora
em seu desterro;
meu amigo josé quebrou
um pedaço
com o calcanhar e
deu-me de presente:
guardei comigo por
mais de trinta anos;
mesmo o terceiro já
perdeu-se pelo espaço
e prossegui em minha
vida descontente,
até que o incêndio
queimou todos meus enganos.
DULCIMÔNIOS V
só sei contar assim – somente em verso
consigo transmitir memória antiga,
cada lembrança a puxar-me como auriga,
empunho escudo e lança e sou converso
em guerreiro tebano, em pluriverso
proclamo amor só no côncavo da biga,
descrevo a guerra nessa mesma liga,
recordações afinal de um ser disperso,
qual já fui no passado e não sou mais,
quando fazia teatro e então tocava
desde o saxofone até o violoncelo,
tive minhas longas caminhadas no jamais,
que não repetirei, quando cantava
meu corpo inteiro o quanto o mundo é belo!
DULCIMÔNIOS VI
os mais estranhos olhos que já vi
eram do rosto de minha primeira esposa:
foi para mim gentil e generosa,
por quinze anos com ela convivi;
nas íris verde-cinza eu percebi
três anéis dourados, dupla rosa
em torno das pupilas; poderosa
foi a magnética atração que então senti;
olhos de fada, eram olhos de sereia,
que para mim giravam com afeto
e originavam uma límpida emoção,
como no cerne da vida, tripla veia,
em seu luminescer puro e discreto,
qual a hipnose de meu coração.
DULCIMÔNIOS VII – 22 junho 23
mas ai! por mais belos que fossem esses
olhos
e me prendessem com tal magnetismo,
um dia das vagas me ergui do hipnotismo:
queria mais que da sereia os seus refolhos;
que todo o material repleto está de
abrolhos,
meu coração sobreviveu ao romantismo,
era uma alma que eu queria e não o abismo,
em que pudesse me cegar contra os antolhos
e assim me separei e fui buscar
uma outra alma mais à minha semelhante,
que não me viesse como um dom gratuito;
achei olhos formosos de um certo brilho
fosco,
que demonstraram ser tesouro mais constante
e que enfim só me aceitaram em dom
fortuito.
DULCIMÔNIOS VIII
conservo o trauma de um
sobrevivente,
por que resto apenas eu dos companheiros,
por que respira tão só meu
peito ardente
e os três soltaram seus
suspiros derradeiros?
é só imaginação ou está em mim
assente
a obrigatoriedade de lembrar
estes terceiros,
algo assim a mostrar de sua
presença ausente,
nestes meus versos de pendores
altaneiros?
será de fato que tenho a
obrigação
de redigir estes versos tão
constantes,
alguns sensatos, outros tantos
delirantes,
mesmo que não brotem de meu
coração,
mas que dons sejam de espíritos
aflitos
em seu disfarce de serem dons
gratuitos?
DULCIMÔNIOS IX
conservo trauma igual pela
sobrevivência
ante este amor que morreu por
acidente,
do qual por anos conservei-me
crente,
nesse esforço de conservar a
sua potência,
mas amor menos que a vida tem
vivência,
são feromônios que o tornam
resistente,
não os que brotam da mente mais
potente,
que nos dominam com maior
intransigência,
de onde os dulcimônios nos
provêm,
muito acima e além do material,
ancorados em seu sabor
espiritual,
ante o puro carnal acima e além
e assim deixei para trás seus
dons fortuitos,
que a vida me custaram ao
parecer gratuitos.
DULCIMÔNIOS X – 23 junho 2023
se dons gratuitos alimento em minha cabeça,
sejam no cérebro, no espírito ou na mente,
seriam resultantes de genética potente
ou se esforçaram para que sua ânsia cresça.
seria meu pai? que a sua
sombra permaneça
firme no além em que se encontra continente,
onde quer que esse além se encontre realmente,
sem mais ter meios com que a mim impeça
de ser o que devia, porém que me criou
de forma tal a me podar a iniciativa
e a não confiar em ninguém na sociedade;
mas não o culpo pelo mal que me causou,
foi mal gratuito e levou minhalma esquiva
não se atrever a recusar, mas que o aceitou.
DULCIMÔNIOS XI
contudo para mim, que tanto me
esforcei
e que gastei meus dedos em
benefício de outrem,
melhor que a outros bens que me
recontrem,
sem o trabalho e o labor que
desgastei;
saber queria então que o amor
que despertei
me fosse oferecido dos lábios
na bandeja,
me fosse entregue assim na taça
que me enseja,
no corpo que se abre e que não
conquistei;
sempre quis mais o beijo que
viesse de surpresa,
totalmente gratuito em sua
abnegação
dessa alguém inesperada que por
mim se enamorasse
e então compartilhasse seus
dotes de beleza
sem nada requerer, totalmente
por paixão
e desse modo minhalma interna
conquistasse.
DULCIMÔNIOS XII
porém não acredito que exista
tal mulher:
as que tive na vida custaram-me
labor,
queriam segurança além do meu
amor,
queriam ter de mim o mais que
mulher quer;
e assim em todo caso, até nesse
qualquer
instante de sua entrega, no
mais completo ardor,
sem pedir nada em troca de seu
gentil favor,
seus olhos conservavam no
feminil mister,
bem mais além até que o da
procriação,
sua ânsia maior sendo a própria
segurança,
com que até os mais brutais
esperam dominar,
e eu que sempre tive a mais
clara aceitação
por essa fugidia, mas pálida
esperança
quantas vezes no antanho me
deixei manipular!
DULCIMÔNIOS XIII – 24 JUNHO 2023
desta forma, bem sei que nunca foi gratuito
o amor que me convieram durante meu outrora,
não me puderam desiludir por inteiro nessa hora,
mas cobraram muito mais que por ato fortuito
e não venham me dizer que foi carinho aflito,
que a mulher, mais que o homem, precisa ser senhora
desse amor que conservam, que não se vá embora
e de outro beijo desconfio, por mais seja bendito,
porque o que vi até hoje me trouxe desalento:
olhando a meu redor, vi serem generosas
mulheres por tais homens que nada mereciam,
mais agindo como mães a distribuir alento,
enquanto as bênçãos para mim, até as mais ditosas,
sempre queriam em troca as bênçãos que queriam.
DULCIMÔNIOS XIV
assim as coisas percebi ao
longo de minha vida,
raro recordo de quem só me
busque para dar,
sempre fui mais o doador a me
espalhar
e a recolher no peito a dor da
despedida;
tudo paguei bem caro ao longo
dessa lida
e nada consegui no final
amealhar,
senão por vasto esforço e duro
trabalhar,
a cornucópia de fato nunca me
deu guarida;
e embora saiba que da vida vale
o esforço,
que não se dá valor ao que nos
vem de graça,
que àquilo que vem fácil não se
sabe dar valor
comigo não funciona seguer
igual escorço,
bem que eu queria essa
abundância que repassa,
que me caísse ao colo e ali
nascesse em novo amor.
DULCIMÔNIOS XV
não se diga, contanto, que sei
apenas me queixar,
pois recebo diariamente em
gratuidade dons,
os sons que minha cocleia
traduz em meigos tons,
as cores e formatos na mácula
ocular,
percebo as superfícies a cada
meu tatear,
os anéis da benzina em seus
perfumes bons,
os sabores em minha língua e
até mesmo os ronrons
dos gatos que me buscam para um
paciente acariciar,
a música eu escuto dos cantos
do passado
e muitos livros leio dos
melhores ancestrais,
embora tais dulcimônios eu
tenha de comprar;
que não se julgue então ser meu
poema acabrunhado,
confessarei portanto nestas sílabas
finais
que um otimismo bem real ganhei
sem procurar!
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