quarta-feira, 5 de julho de 2023


 

 

DONS GRATUITOS I – (?)

 (Barbara Stanwick, Hollywood Golden Age)


Existe algum motivo que os deuses adorados

    Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?

    Por que madura o óvulo no ventre de uma terna

    Donzela adolescente, senão por consagrados

 

Ideais reprodutivos, que a deusa Biologia

    Um só espermatozóide escolhe preservar,

    Enquanto a multidão condena a ressecar,

    Por que somente num se funde e, em sintonia,

 

Produzem nova vida, estuante de esperança?

    Enquanto a mesma vida recamam de estertores

    Esses deuses solertes, por nos atribularem

 

Com pragas e desditas, rigor que não descansa...

    Os deuses são sagazes: pois só nos dão as dores

    Para lhes sermos gratos, depois que nos passarem.

 

DONS GRATUITOS II

 

Tomo o crânio entre as mãos.  Órbitas vejo

    Que me contemplam, vazias e sem mente.

    Tiveram antes um hóspede presente

    E contemplaram da vida inteira o ensejo.

 

Quem sabe se esses dentes para o beijo

    Não serviram de apoio bem frequente

    Ou se os forames laterais da gente

    Escutaram o som de ardor ou pejo,

 

Estimulando os neurônios e a esperança...?

    Quanto aspiraram tais fossas nasais!

    Tantos odores que o mundo já esqueceu...

 

Mas que importância tem, se já descansa

    Para sempre esse crânio no jamais...?

    Apenas sei que outro crânio ainda é o meu.

 

DONS GRATUITOS III

 

Se duvidas da vida, pensa em água:

    Ela se infiltra em todos os buracos,

    Consome as bolsas, pinga pelos sacos

    E acaba superando a própria frágua.

 

Se duvidas da vida, lembra a raiz:

    Também ela se infiltra em cada fenda

    E, qual o tempo, por longa seja a senda,

    A rocha racha, como sempre quis.

 

Se a água mole e a raiz tão delicada,

    Cedo ou tarde conseguem o que querem,

    Cabe a nós insistir, sem força bruta...   

 

É a paciência que causa a derrocada

    Dos piores obstáculos que esperem,

    À nossa frente, nessa eterna luta...

 

DONS GRATUITOS IV – 5 junho 2023

 

Se os bens da Terra dons gratuitos fossem

    E a todos dessem só o trabalho de colher

    E se passasse em jogos, banquetes e prazer,

    Em que os malefícios só levemente rocem,

 

Se tudo fosse fácil, gentil e agradável

    E os frutos nos viessem, só de estender a mão,

    Jamais construiríamos esta civilização

    Que com todas as antigas é incomparável.

 

Eu só me espanto quando escuto a gente

    Dizer que deveríamos à vida natural,

    Retroagir, que mais afirmam ser saudável...

 

E, contudo, basta olhar sem grande mente,

    Para os selvagens de nosso mundo atual,

    E perceber quão sua vida é vulnerável.        

 

DONS GRATUITOS V

 

Eu me prendo em mim mesmo e som algum escuto:

    Ausculto o coração e só silêncio vejo.

    Fremeram as narinas em vagabundo adejo,

    Até os pulmões se calam em prematuro luto.

 

O sangue já me jorra do arterial conduto:

    Lançou-se por aí, em palmilhar de andejo

    Ou talvez ressecou-se, um malquerido pejo,

    Em qualquer ponto morto deste meu lombo hirsuto.

 

São horas mortas estas, contemplo desde o alto

    A multidão que dorme, em posição fetal,

    Ou jazem abraçados contra o espaldar de alguém.

 

Só eu não adormeço, de todo o sono falto,

    Nem tenho quem me acolha em abraço natural,

    Enquanto o som escuto do Nada e de Ninguém.

 

DONS GRATUITOS VI

 

Gosto da chuva quando passa e mal molhado

    Ainda deixa o céu e a fresca brisa,

    Mui gentilmente, pelo ar, desliza,

    Com um frescor de água renovado...

 

Gosto do amor, também, quando acabado

    Se esgota o ato e a sensação concisa

    De sua completação a mente alisa

    E afasta por um pouco o triste fado...

 

Mas quanta vez, após a chuva, o Sol

    Nos amargura, em seu cruel mormaço!...

    E então sofremos quase insolação...

 

E quanta vez o amor não é farol,

    Porém luz negra, em malfadado abraço,

    Que mais amargo nos deixa o coração!...

 

DONS GRATUITOS VII – 6 junho 2033

 

Sou eu que escrevo à noite o que ninguém escreve,

   Que não deve ser dito, não é o que se espera,

   Meu sonho tem as presas e as garras de uma fera,

   Redijo em pesadelo o que ninguém mais deve.

 

Pouco me importa assim que deem ao almocreve,

   Como papel de embrulho ou outra função mera

   As ficções que registro, parto que a mente gera,

   No labor peregrino que só peço ao vento leve.

 

Há uma cunha de tempo em cada esforço meu,

   Um farrapo de alma cortado com adaga,

   Já fez parte de mim, mas para ti é o nada,

 

Contudo, se me leres, com esse esforço teu,

   Cuida bem de tua alma e vê o que ela indaga,

   Caso minha estranha rima penetre em tua morada.

 

DONS GRATUITOS VIII

 

Se apenas entendesses o quão difícil

   É para mim o ato de pedir,

   Compreenderias como busco me iludir

   Em obter de forma um pouco físsil

 

Um dom gratuito de maneira fácil,

   Que fosse dado em voluntário agir,

   Quer fosse ao menos um beijo permitir,

   Beijo de leve, num instante grácil

 

Sem querer nada em troca, só por dar,

   Como uma prova de apreço e de carinho,

   Muito embora sedução a conotar...

 

Porque tal dom que alguém queira ofertar

   É o dom gratuito de um buquê de vinho,

   Primeiro aroma para nos embriagar...

 

DONS GRATUITOS IX

 

Contudo, dons gratuitos tu me deste,

   Sem que pedisse nada, por carinho,

   Inesperado fosse em meu caminho

   tal beijo puro de sabor agreste.

 

Teus seios me mostraste, de mansinho

   E que os beijasse de leve permitiste,

   Depois de tanto tempo em que os negaste,

   Por mais não fosse que um dote pequeninho.

 

Mas para mim esse pequeno nada,

   Que novidade não era, realmente,

   Penetrou-me de perfume tão pungente

 

Que me persegue até esta madrugada,

   Só na esperança de um instante repetido

   Em que de amor falar pudesse a teu ouvido.

 

DONS GRATUITOS X – 7 jun 33

Ainda trago nos lábios o teu gosto,

   Por mais que o tempo tenha se esgotado,

   Dividido entre grãozinhos, tempo aveludado

   Pela lembrança de teu cheiro e mosto,

 

Pelo teu rosto no meu rosto posto,

   Teu cheiro ao fundo, doce e aveludado,

   Tua maciez no rosto acarminado,

   Teu beijo posto no côncavo do rosto.

 

Ainda guardo na língua o teu receio,

   Os mamilos erguidos como prenda,

   Doce armadilha em que me conservar,

 

As grades mornas de teu puro seio,

   No meu anseio por perpétua agenda,

   Na mente apenas o teu nome digitar.

 

DONS GRATUITOS XI

 

Nas papilas de meus dedos a tua pele,

   Impressa a maciez, seda e veludo,

   Dedos que rompem o macio escudo,

   Na alfombra mansa que meu sonho vele.

 

Que a digital sobre tua carne sele

   A propriedade de meu sonho mudo,

   Não que seja permanente, não me iludo,

   Mas que meu lacre teu corpo não cancele.

 

Enquanto me quiseres e eu a ti,

   Que nossos dedos partilhem de um só toque,

   Carícia meiga e fogo abrasador,

 

Que permaneça assim selado aqui,

   No mesmo antigo e milenar enfoque

   Da carne feita carne em puro amor.

 

DONS GRATUITOS XII

 

Trago na língua a textura de teu beijo

   Que há tempo não me dás.  Porém recordo

   A cada vez que meus próprios lábios mordo,

   Memória antiga desse egrégio ensejo

 

Trago na boca um sonho em que te vejo

   Na mesma nau que a viajar abordo,

   A cada noie do dia assim discordo,

   Outra a verdade sobre a qual adejo.

 

Minhas próprias asas se enfunam como velas

   E em pensamento te visito onde estiveres,

   A língua e os lábios novamente meus,

 

Nessa parte de minha mente que congelas,

   Pois te apossaste dela e ainda feres

   Diuturnamente os sonhos que são teus. 

 

DONS GRATUITOS XIII – 8 junho 2033

 

Ainda nas pálpebras conservo essa visão

   Do seio meigo de mamilo erguido

   Visão fugaz em só momento permitido,

   Esses mamilos que meus nunca mais são

 

Para beijar, tocar, no côncavo da mão,

   Acalentar em meu carinho preferido,

   Roçar de leve e em torno, percebido

   Esse arrepio que te corta o coração.

 

Saudade guardo do passado instante

   Em que teus seios mostravas com orgulho,

  Vaidade simples de mulher airosa,

 

Nessa nudez parcial, mas delirante,

   Que de minha vida se afastou em esbulho,

   Por mais que antes se mostrasse dadivosa.

 

DONS GRATUITOS XIV

 

Conservo nas narinas teu odor,

   O teu perfume que me tornou em servo,

   Que tal olor no olfato que conservo

   Não se compara a artificial ardor.

 

Na minha mente engravo o teu olor,

   Sabor de pluma e vento, odor que enervo

   Por todo o organismo e que reservo

   No puro ardor da pele cor de amor.

 

Que permanece puro e cristalino,

   Perene em minhas papilas olfativas,

   A dominar-me a gama sensorial,

 

Dom gratuito material e feminino,

   Que minhas ânsias por ti conserva ativas,

   Enquanto dura minha vida natural.

 

DONS GRATUITOS XV

 

Mas o problema da mulher foi teimosia,

   Que para tudo queria explicação;

   Suspeitando em qualquer coisa uma traição,

   Dificilmente a desconfiança adia.

 

Foi assim com Eurídice, que jazia

   No Hades dos Gregos, sem ação;

   Orfeu consegue comover o coração

   Do próprio deus com sua harpa e fantasia.

 

Hades lhe impõe terrível condição:

   “Podes levar Eurídice, mas sem olhar

   E sem falar com ela.  Somente as fés,

 

Em mútuo amor aos dois conduzirão

   Até a superfície.” Mas em seu teimar

   Por ser olhada, caiu-lhe morta aos pés.

 

DONS GRATUITOS XVI

 

Ai, quanta vez amor assim se perde,

Na teimosia de um olhar fortuito,

Porque amor raramente é um dom gratuito,

Sempre algum preço nele existe que se herde.

 

Por isso dizem que a esperança é verde,

Tem breve vicejar, não dura muito,

Por mais que se confirme o seu intuito,

É rápida a descrença que a deserde.

 

O que é gratuito, parece sem valor,

Poucos respeitam generoso dom,

Querem saber quanto se acha por trás

 

E morre assim de ciúmes muito amor,

Desconfiado qual o preço desse som

De dom gratuito que em cinzas se desfaz.

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