DONS GRATUITOS I – (?)
(Barbara Stanwick, Hollywood Golden Age)
Existe algum motivo que os deuses adorados
Pelos humanos fossem, se a
vida fosse eterna?
Por que madura o óvulo
no ventre de uma terna
Donzela adolescente,
senão por consagrados
Ideais reprodutivos, que a deusa Biologia
Um só espermatozóide
escolhe preservar,
Enquanto a multidão
condena a ressecar,
Por que somente num se
funde e, em sintonia,
Produzem nova vida, estuante de esperança?
Enquanto a mesma vida
recamam de estertores
Esses deuses
solertes, por nos atribularem
Com pragas e desditas, rigor que não
descansa...
Os deuses são sagazes: pois
só nos dão as dores
Para lhes
sermos gratos, depois que nos passarem.
DONS GRATUITOS II
Tomo o crânio entre as mãos. Órbitas
vejo
Que me contemplam,
vazias e sem mente.
Tiveram antes um
hóspede presente
E contemplaram da
vida inteira o ensejo.
Quem sabe se esses dentes para o beijo
Não serviram de apoio
bem frequente
Ou se os forames
laterais da gente
Escutaram o som de
ardor ou pejo,
Estimulando os neurônios e a esperança...?
Quanto aspiraram tais
fossas nasais!
Tantos odores que o
mundo já esqueceu...
Mas que importância tem, se já descansa
Para sempre esse crânio
no jamais...?
Apenas sei que
outro crânio ainda é o meu.
DONS GRATUITOS III
Se duvidas da vida, pensa em água:
Ela se infiltra em todos os buracos,
Consome as bolsas, pinga pelos sacos
E acaba superando a própria frágua.
Se duvidas da vida, lembra a raiz:
Também ela se infiltra em cada fenda
E, qual o tempo, por longa seja a
senda,
A rocha racha, como sempre quis.
Se a água mole e a raiz tão delicada,
Cedo ou tarde conseguem o que querem,
Cabe a nós insistir, sem força
bruta...
É a paciência que causa a derrocada
Dos piores obstáculos que esperem,
À nossa frente, nessa eterna luta...
DONS GRATUITOS IV – 5 junho 2023
Se os bens da Terra dons gratuitos fossem
E a todos dessem só o
trabalho de colher
E se passasse em jogos,
banquetes e prazer,
Em que os malefícios só
levemente rocem,
Se tudo fosse fácil, gentil e agradável
E os frutos nos viessem, só
de estender a mão,
Jamais construiríamos esta
civilização
Que com todas as antigas é
incomparável.
Eu só me espanto quando escuto a gente
Dizer que deveríamos à vida
natural,
Retroagir, que mais afirmam
ser saudável...
E, contudo, basta olhar sem grande mente,
Para os selvagens de nosso
mundo atual,
E perceber quão sua vida é
vulnerável.
DONS GRATUITOS V
Eu me prendo em mim mesmo e som algum
escuto:
Ausculto o coração e só
silêncio vejo.
Fremeram as narinas em
vagabundo adejo,
Até os pulmões se calam
em prematuro luto.
O sangue já me jorra do arterial conduto:
Lançou-se por aí, em
palmilhar de andejo
Ou talvez ressecou-se,
um malquerido pejo,
Em qualquer ponto morto
deste meu lombo hirsuto.
São horas mortas estas, contemplo desde o
alto
A multidão que dorme, em
posição fetal,
Ou jazem abraçados
contra o espaldar de alguém.
Só eu não adormeço, de todo o sono falto,
Nem tenho quem me acolha
em abraço natural,
Enquanto o som escuto do
Nada e de Ninguém.
DONS GRATUITOS VI
Gosto da chuva quando passa e mal molhado
Ainda deixa o céu e a
fresca brisa,
Mui gentilmente, pelo ar,
desliza,
Com um frescor de água
renovado...
Gosto do amor, também, quando acabado
Se esgota o ato e a
sensação concisa
De sua completação a mente
alisa
E afasta por um pouco o
triste fado...
Mas quanta vez, após a chuva, o Sol
Nos amargura, em seu cruel
mormaço!...
E então sofremos quase
insolação...
E quanta vez o amor não é farol,
Porém luz negra, em
malfadado abraço,
Que mais amargo nos deixa
o coração!...
DONS GRATUITOS VII – 6 junho 2033
Sou eu que escrevo à noite o que ninguém
escreve,
Que
não deve ser dito, não é o que se espera,
Meu
sonho tem as presas e as garras de uma fera,
Redijo em pesadelo o que ninguém mais deve.
Pouco me importa assim que deem ao almocreve,
Como
papel de embrulho ou outra função mera
As
ficções que registro, parto que a mente gera,
No
labor peregrino que só peço ao vento leve.
Há uma cunha de tempo em cada esforço meu,
Um
farrapo de alma cortado com adaga,
Já
fez parte de mim, mas para ti é o nada,
Contudo, se me leres, com esse esforço teu,
Cuida
bem de tua alma e vê o que ela indaga,
Caso
minha estranha rima penetre em tua morada.
DONS GRATUITOS VIII
Se apenas entendesses o quão difícil
É
para mim o ato de pedir,
Compreenderias como busco me iludir
Em
obter de forma um pouco físsil
Um dom gratuito de maneira fácil,
Que fosse dado em voluntário agir,
Quer fosse ao menos um beijo permitir,
Beijo de leve, num instante grácil
Sem querer nada em troca, só por dar,
Como uma prova de apreço e de carinho,
Muito embora sedução a conotar...
Porque tal dom que alguém queira ofertar
É
o dom gratuito de um buquê de vinho,
Primeiro aroma para nos embriagar...
DONS
GRATUITOS IX
Contudo,
dons gratuitos tu me deste,
Sem que pedisse nada, por carinho,
Inesperado fosse em meu caminho
tal beijo puro de sabor agreste.
Teus
seios me mostraste, de mansinho
E que os beijasse de leve permitiste,
Depois de tanto tempo em que os negaste,
Por mais não fosse que um dote pequeninho.
Mas
para mim esse pequeno nada,
Que novidade não era, realmente,
Penetrou-me de perfume tão pungente
Que
me persegue até esta madrugada,
Só na esperança de um instante repetido
Em que de amor falar pudesse a teu ouvido.
DONS
GRATUITOS X – 7 jun 33
Ainda trago nos lábios o teu gosto,
Por
mais que o tempo tenha se esgotado,
Dividido
entre grãozinhos, tempo aveludado
Pela
lembrança de teu cheiro e mosto,
Pelo teu rosto no meu rosto posto,
Teu
cheiro ao fundo, doce e aveludado,
Tua
maciez no rosto acarminado,
Teu
beijo posto no côncavo do rosto.
Ainda guardo na língua o teu receio,
Os
mamilos erguidos como prenda,
Doce
armadilha em que me conservar,
As grades mornas de teu puro seio,
No
meu anseio por perpétua agenda,
Na
mente apenas o teu nome digitar.
DONS GRATUITOS XI
Nas papilas de meus dedos a tua pele,
Impressa
a maciez, seda e veludo,
Dedos
que rompem o macio escudo,
Na
alfombra mansa que meu sonho vele.
Que a digital sobre tua carne sele
A
propriedade de meu sonho mudo,
Não
que seja permanente, não me iludo,
Mas
que meu lacre teu corpo não cancele.
Enquanto me quiseres e eu a ti,
Que
nossos dedos partilhem de um só toque,
Carícia
meiga e fogo abrasador,
Que permaneça assim selado aqui,
No
mesmo antigo e milenar enfoque
Da
carne feita carne em puro amor.
DONS GRATUITOS XII
Trago na língua a textura de teu beijo
Que há
tempo não me dás. Porém recordo
A cada
vez que meus próprios lábios mordo,
Memória
antiga desse egrégio ensejo
Trago na boca um sonho em que te vejo
Na mesma
nau que a viajar abordo,
A cada
noie do dia assim discordo,
Outra
a verdade sobre a qual adejo.
Minhas próprias asas se enfunam como velas
E em
pensamento te visito onde estiveres,
A língua
e os lábios novamente meus,
Nessa parte de minha mente que congelas,
Pois
te apossaste dela e ainda feres
Diuturnamente
os sonhos que são teus.
DONS GRATUITOS XIII – 8 junho 2033
Ainda nas pálpebras conservo essa visão
Do seio
meigo de mamilo erguido
Visão
fugaz em só momento permitido,
Esses
mamilos que meus nunca mais são
Para beijar, tocar, no côncavo da mão,
Acalentar
em meu carinho preferido,
Roçar
de leve e em torno, percebido
Esse arrepio
que te corta o coração.
Saudade guardo do passado instante
Em que
teus seios mostravas com orgulho,
Vaidade
simples de mulher airosa,
Nessa nudez parcial, mas delirante,
Que de
minha vida se afastou em esbulho,
Por mais
que antes se mostrasse dadivosa.
DONS GRATUITOS XIV
Conservo nas narinas teu odor,
O teu
perfume que me tornou em servo,
Que
tal olor no olfato que conservo
Não
se compara a artificial ardor.
Na minha mente engravo o teu olor,
Sabor
de pluma e vento, odor que enervo
Por
todo o organismo e que reservo
No
puro ardor da pele cor de amor.
Que permanece puro e cristalino,
Perene
em minhas papilas olfativas,
A dominar-me
a gama sensorial,
Dom gratuito material e feminino,
Que
minhas ânsias por ti conserva ativas,
Enquanto
dura minha vida natural.
DONS GRATUITOS XV
Mas o problema da mulher foi teimosia,
Que para tudo queria
explicação;
Suspeitando em qualquer
coisa uma traição,
Dificilmente a
desconfiança adia.
Foi assim com Eurídice, que jazia
No Hades dos Gregos, sem
ação;
Orfeu consegue comover o
coração
Do próprio deus com sua
harpa e fantasia.
Hades lhe impõe terrível condição:
“Podes levar Eurídice, mas
sem olhar
E sem falar com ela. Somente as fés,
Em mútuo amor aos dois conduzirão
Até a superfície.” Mas em
seu teimar
Por ser olhada, caiu-lhe
morta aos pés.
DONS GRATUITOS XVI
Ai, quanta vez amor assim se perde,
Na teimosia de um olhar fortuito,
Porque amor raramente é um dom gratuito,
Sempre algum preço nele existe que se herde.
Por isso dizem que a esperança é verde,
Tem breve vicejar, não dura muito,
Por mais que se confirme o seu intuito,
É rápida a descrença que a deserde.
O que é gratuito, parece sem valor,
Poucos respeitam generoso dom,
Querem saber quanto se acha por trás
E morre assim de ciúmes muito amor,
Desconfiado qual o preço desse som
De dom gratuito que em cinzas se desfaz.
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