VIDAS SOTERRADAS I – 9 JUNHO 2023
(Doris Day)
Toda mulher é sagrada para mim,
são para a raça totalmente necessárias;
servem os homens para funções várias,
porém nenhuma tão importante assim.
Seus ventres são sementes de jasmim,
a transmitir-se de maneira
multifárias,
nobres produzem, igualmente geram
párias,
mas sem tais flores nada brota
enfim.
Contudo essa mãe, que por filho tudo
faz,
pode igualmente dos demais tornar-se
algoz,
o homem não mais que o autor desse
cultivo,
dispensável aos milhares, para a
guerra ou para a paz,
enquanto a humanidade segue empós,
cada mulher lâmia a marchar em passo
altivo.
VIDAS SOTERRADAS II
Espera-se da lâmia que seduza
e então nos sugue a vida, lentamente,
nem sempre com desfecho surpreendente
do amor extremo que nosso amor reduza.
O mais comum é essa fome mais
difusa,
que aos poucos nos devora,
suavemente,
entre carinhos, que a gente mal
pressente,
por trás um fim que a própria sede
excusa.
São amantes, afinal, ou mesmo
esposas,
que se entregam a nós, nessa
aparência
de uma meiga e total dedicação,
mas lá no fundo, são famintas rosas,
que precisam de adubo em sua
vivência
e quanto mais nos tiram, menos dão.
VIDAS SOTERRADAS III
Outras existem envoltas em legendas,
como as de Zaragoza, lá na Espanha,
as duas donzelas de beleza estranha,
que chamavam os viandantes nessas lendas,
para que entrassem, tranquilos, nas
prebendas,
a quem serviam refeições em pura
manha,
vertendo vinho que a prevenção
acanha
e para o leito lhes indicavam sendas
e a noite inteira, o viajante
incauto
fazia amor com elas, sem cessar,
até adormecer só de exaustão,
para acordar desse banquete lauto
entre duas múmias secas, cujo esgar
quase levava a lhe explodir o
coração.
VIDAS SOTERRADAS IV – 10 jun 23
Muitos morriam mesmo e eram achados
nus, ressequidos, deitados em monturo,
no meio das ruínas e sendo de obscuro
destino, finalmente sendo sepultados
em covas rasas, com ritos
apressados,
para tornar o caminho mais seguro
e à noite, em Zaragoza, em medo
puro,
esses segredos eram murmurados.
Dizem que um bispo, após um
exorcismo,
mandou as ruínas inteiras arrasar,
mas a colina continuou amaldiçoada
e só o mato reverdesce em torno ao
abismo,
ninguém ali nada atreve-se a plantar
e de quem o intentou nunca mais se
soube nada.
VIDAS SOTERRADAS V
Houve outras lâmias bem mais verdadeiras:
no centro de Paris havia uma torre,
chamada Nèsle, de que atraíam quem passava,
para orgias a durar noites inteiras;
mas sob a torre, por onde o Sena
corre,
havia um alcapão e águas ligeiras,
as provas a ocultar se acreditava,
dos cadáveres a acolher missões
certeiras.
Diziam ser a rainha e uma dama da
nobreza,
insatisfeitas com sua vida conjugal,
que davam origem a esse imenso
malefício,
não que sugassem o sangue de sua
presa,
somente sua semente até o final,
para total satisfação do próprio
vício.
VIDAS SOTERRADAS VI
E como estas, muitas outras existem,
as súcubos dos sonhos, certamente,
roubando sêmen e o levando inteiramente
para seus íncubos que no inferno assistem,
mas vêm à terra, nos sonhos que
conquistem
o corpo das mulheres, impiamente
e que as fecundam,
compreensivelmente,
com suas sementes que do mal
consistem.
Assim explicam por que existem gente
má,
que até parece humana, mas não o é,
sua semente em pesadelos conspurcada
e para estes salvação qualquer não
há,
tornam-se monstros em quem se vê até
toda a bondade humana soterrada.
VIDAS SOTERRADAS VII – 11 JUNHO 2023
Não têm lugar fantasmas ou quimeras
na minha imaginação. Antes eu penso
nesses momentos de prazer intenso
que poderia ter tido ao invés de esperas,
nesse desejo que ainda em mim tu
geras,
nos adiamentos que me deixaram
tenso,
a temores irreais quaisquer infenso,
penso somente nos meus quem-me-deras.
Meus pesadelos são mansos de
martírios,
breves suplícios de Tântalo somente:
quando te beijo, te imagino
indiferente,
mas diferente em todos meus
delírios,
no momento em que te abraço, te
deslocas
e só com os dedos os meus lábios
tocas...
VIDAS SOTERRADAS VIII
São esses meus fantasmas ilusórios,
mil círios de marfim ainda ilesos,
pascais lembranças, sonhos não acesos,
porém perfeitos em seus ideais inglórios.
Meus duendes são assim
persecutórios,
que mais comprimem o peito de seus
pesos,
de bronze e de paixão que os torna
tesos,
hóstias mofadas no zinabre dos
cibórios.
São esses corpos reluzentes que
procuro
e se desfazem numa chuva de ouro,
no momento em que deles me apodero;
porém de assombrações meu sonho é
puro,
revivo apenas pesadelos de desdouro
nesse desdém de não ter quem mais eu
quero.
VIDAS SOTERRADAS IX
Ainda se fosse apenas uma estrela
por quem me apaixonei sem galardão,
bem mais fácil me seria a explicação
de que seu brilho me apartasse dela;
ainda que fosse uma simples vela,
cujo calor mal me aquecesse a mão,
seria fácil a justa explicação,
na busca fútil de outra luz mais
bela,
mas não foi por estrela e nem pavio,
foi só por luz saudável e redolente,
bem capaz de conter o meu passado
e contudo, descurei do desafio,
talvez por medo, talvez por
indolente,
só o castiçal conservando do meu
lado
VIDAS SOTERRADAS X – 12 junho 23
Eu beijo a palma de minha mão e sinto
o poder que ainda dela se irradia,
esta estrela que na palma me luzia
e a vela que suporta longas lutas.
Finto
com a morte a cada vez que pinto
o meu futuro, qual perante mim
seria,
o meu passado, que em meu empós
jazia,
venço os embates ou tão somente
minto.
Na palma de minha mão tenho uma
estrela:
no centro dela diviso a letra “A”,
todos afirmam ter na palma a letra “M”;
minha mãe dizia referir-se a ela,
mas hoje penso que nem sequer há
qualquer mulher que me marque com
seu leme.
VIDAS SOTERRADAS XI
Nas entrelinhas do passado eu vejo
as mil alternativas despojadas,
tristes sorrisos de normas descartadas,
luzes furtivas qual irreal ensejo.
Nos escaninhos, existe mais que
pejo,
formei minhas pilhas de pequenos
nadas,
quais aventuras jamais realizadas,
em zombaria, afinal, de meu desejo.
De nada me envergonho do que fiz,
talvez apenas de algumas desventuras
que pratiquei nos tempos de criança,
eu só lastimo as faltas do que quis,
não o Evangelho das pobres
travessuras
que deixei amortalhadas na
esperança.
VIDAS SOTERRADAS XII
O tempo é assim, a mansa gelatina,
feita de âmbar no qual somos insetos,
a nossa vida a soterrar afetos,
sem saber para onde a seiva se destina.
O tempo é assim, a lenta guilhotina,
descendo apenas em rangidos quietos,
serrando o bem, cortando os
desafetos,
indiferente à soterrada sina.
Apenas flui, desconsoladamente,
numa teia de mel que mal sussurra,
mas nos transmite a mais falsa
mensagem,
tal como um dom que se conceda à
gente,
mas energia, que lentamente nos empurra
ao redemoinho manso da voragem.
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