DESTINO DE AVE I – 1º SETEMBRO 2022
Se subir eu quiser até a nuvem dos mortos,
antes que para ela inteiro me evapore,
antes que meu ataúde toda a visão deflore,
grande auxílio precisarei em tais desportos...
precisarei erguer aos céus meus dedos tortos
e permitir que toda a linfa que os percorre
por longas penas corra e enquanto corre,
de meus remígios percora os longos portos. (*)
Busco encontrar ali meus predecentes
e lhes pedir conselho em minha estadia aqui,
sem que me acorde para essa nuvem viva,
pois muitos deles me sorrirão dolentes,
mas só dirão: “Contempla o que eu vivi,
enquanto ali minhalma permaneceu cativa...”
(*) Longas penas da direção na ponta das asas.
DESTINO DE AVE II
Caso eu quiser alcançar a nuvem santa,
em que se envolve a antiga humanidade,
devo ser pássaro de igual volatidade,
devo ser ferro que para o céu se imanta,
devo ser ave sem voz que ainda canta,
devo ser canto da maior liberalidade,
devo ser a liberdade em sua saudade,
a folha devo ser, virente, de uma planta.
Talvez apenas me dirão: “Paciência,
teus versos lança em nossa direção,
teus dedos em engaste os seguirão,
pois todo o peso gastaste nessa agência,
cada soneto engastaste em amargura
e muito em breve os seguirás tendo alma pura.”
DESTINO DE AVE III
“Mas por que queres a tal nuvem subir,
já que ao redor de ti ela se encontra,
tua vida inteira a lhe servir de monstra,
milhões de olhares tua vida a perguirir?
Queres, quem sabe, parar de te iludir,
pensando que o que escreves como lontra
é o resultado da mente que o recontra,
de teu sangue composto e dalma a reluzir?
Queres ter finalmente essa resposta,
de onde brota tua enciclopédica missão,
quais os poetas que seus versos te enviaram?
E enfim gozar plena certeza que desgosta,
que nada é teu, mas tão somente a redação
desses mil versos que os mortos te mandaram?”
DESTINO DE ORVALHO I – 2 SETEMBRO 2022
Porém se um pássaro de minhas mãos brotar,
será uma ave a jamais pousar em galho,
mas que se ergueu de mim num ato falho,
cada junta de meus dedos a alisar;
livre que possa então tal pássaro a voar,
teus dedos partirá qual duro malho,
cortadas as falanges pelo gume de seu talho:
bem certamente não o poderei acompanhar.
Ao que de mim voará eom ampla liberdade,
não darei destino certo ao seu pousar,
mas saberá com exatidão seu destinar,
para outra vida a sofrer de opacidade,
para quem seja correio em tal mensagem,
por beve instante a abrilhantar essa paragem.
DESTINO DE ORVALHO II
Bem gostaria de em meus versos ascender,
que cada estrofe, cada linha de um poema,
asas fortes forjasse, com que então não tema
subir ao longo da amplidão e nela ver,
nesse azulado silêncio do querer,
o que um soneto carrega em cada sema, (*)
todo o sentido que possui minha pena,
todo esse pouso de que pude me esquecer.
Não sei se um dia um certo crime cometi,
como sugere alguma lenda do Talmude
e fui lançado até aqui para aprender,
que em minha pretensão bem preferi,
ter escolhido o meu destino rude
para a meus próximos dessedentar poder.
(*) Unidade de Significado.
DESTINO DE ORVALHO III
Mas certamente eu não sou o Consolador,
esse Paráclito e nada existe em mim
que crie o mundo e que o mantenha assim,
fui barro e penas nas mãos do Criador.
Mas a ânsia tenho de ser um ente voador,
que com meu hálito cultive algum jardim,
cuja beleza possa fluir toda de mim,
na trilha viva da magia e do escultor.
Mas só a mim posso aos poucos construir,
não me foi dado um dote de altruismo,
mas um talento que a mim apenas devo;
revoo em versos para mim mesmo a redigir,
na mais bondosa realizaçõ do egoismo,
essa árdua pena com que a mim mesmo elevo.
DESTINO DE PETREL I – 3 SETEMBRO 2022 (*)
(*) Ave Palmípede Aquática
A grande nuvem dos mortos humanos,
que envolve a terra em vastidão virtual
não nos inveja de forma material,
só nos lamenta a multidão dos desenganos,
como os humanos carnais provocam danos
dentro de si em disforme espiritual,
de grandes culpas a semear-se um cabedal,
as suas mortalhas a tecer com mil afanos.
Porém nos olham e podem nos amar,
porque enfim não têm mais necessidade
das tantas coisas inúteis que há aqui
e sobretudo, sem de qualquer forma precisar
de uma vingança em sua eternidade,
nem do néctar ou perdão de um colibri.
DESTINO DE PETREL II
Mais do que tudo, os mortos já viveram
e do bornal das ilusões já partilharam,
durante a vida se engrandeceram e humilharam,
perante altares brancos círios acenderam;
que eram inúteis velozmente perceberam,
com a indiferença, enfim, se acostumaram
desses santos e madonas que adoraram
e que a ninguém as suas graças concederam.
Mas já esqueceram os seus ressentimentos
e ainda entendem à perfeição as emoções,
que já nutriram, porém sem mais experimentar
e veem nos vivos tão iguais padecimentos,
rasgando as fibras de seus rubros corações,
por que os mortos nos poderiam então odiar?
DESTINO DE PETREL III
Lá na distância meu petrel ascenderia,
as cem paisagens do mundo a deglutir,
sem a menor necessidade de dormir,
sobre seu próprio colo pousaria;
lá na distância azul se afogaria,
grande demais o mundo a percutir,
só no bater do coração a se iludir,
suas próprias penas, uma a uma, bicaria.
Eventualmente, tanta pena arrancaria,
que ao invés de ceder à gravidade,
assumiria a plenitude da leveza
e a mensagem somente a si anunciaria,
consigo apenas em consanguinidade,
na aceitação final de sua estranheza...
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