terça-feira, 27 de setembro de 2022


 

 

SONETOS INDUZIDOS 1 – 16 SET 2022

(Anouk Aimée, do cinema clássico francês)


Eu lá te encontrarei, sabes?  Um dia,

Quando cessarem todas as exigências

E a carne fria não mais tenha potências

Para prender-me no altar da nostalgia.

Eu lá te buscarei, na meiga penedia

Do mundo onírico de tuas complacências,

Em que portal encontrarei para imanências,

E de meu próprio sonho assim me evadiria.

Bem certo é que de um sonho eu sou senhor

E cada vulto que por ali se encontre

Pode ser por meu querer manipulado,

No teu, entanto, serei imagem incolor,

Não mais que vibração, em que demonstre

Sujeitar-me a teu querer imaculado.

SONETOS INDUZIDOS 2

Quando a neve me come o coração

E os fundamentos do mundo se derretem

E me consentes que meu sonho os teus penetrem,

Serei talvez não mais que abstração.

Ou em teus sonhos serei mais uma intrusão

Que apenas bem de leve o sono afetem,

Mas bem queria que dois sonos se completem,

Nos meus te aceito sem qualquer objeção,

Pois as quimeras que imagino, bem secretas,

Para mim se demonstraram incompletas,

Pois nelas faltam as arestas principais

E se acaso de teus sonhos nas aletas,

Me receberes sem grandes festivais,

Serei feliz só de habitar nos teus umbrais.

SONETOS INDUZIDOS 3

Porém quisera, sabes?  Que aceitasses

A minha presença com maior impacto,

Que entre nós dois se assinasse um pacto,

Que a cada noite comigo só sonhasses

E que em meus sonhos somente me abraçasses,

Tu no meu sonho e eu no teu intacto,

Cada fragmento de teu sonho então eu capto,

Que os elementos de meu sonho te agradassem.

Talvez um dia, quando a final coma,

Tolher os membros de percorrer o dia,

Nos recolhesse em seu perfeito acoite,

Quando minhalma inteira a tua toma,

Quando tua alma na minha acolheria

E nos uníssemos na derradeira noite.

SONETOS INDUZIDOS 4

Pois te encontrar na certeza transitória

Da vida alerta jamais é suficiente,

Nossa presença aqui é contingente,

Tanta exigência a nos morder peremptória,

Há tanta coisa material consecutória,

Que nossas horas latrocina tão frequente,

Que tudo tira, sem devolver clemente,

Tanta vida desperdiçada de irrisória!

Mas no meu sonho o mundo inteiro é meu

E de teu sonho és a única rainha,

Se nos uníssemos, um só reino criaríamos,

No qual o meu domínio é todo teu

E a multidão de teus desejos será minha,

Que em amor noturno enfim nos acharíamos...

 

SONETOS FAREJADOS 1 – 17 set 22

Como é translúcida uma pele de mulher!

Na transparência de um perfume singular!

Não sei por que o querem disfarçar,

Sob o artifício de uma loção qualquer!

Que o verdadeiro perfume é que se quer,

Que contra a fêmea nos vai aniquilar;

Nenhum desodorante nos irá conquistar,

Que não incrementa um tal odor sequer.

Eu só lastimo que ao olfato de passagem,

Não me apresentem essa arcana beberagem,

Macia e fina como um joelho em malmequer,

Que nada encontro nos recantos da miragem

Que a mim transmita uma igual mensagem

Que esse mistério de um umbigo de mulher!

SONETOS FAREJADOS 2

Sei muito bem que jamais poderei ver

Na totalidade de seu ser uma mulher

Que só verei a luz do sol em seu poder,

A refletir-se no espelho de sua pele...

Sei muito bem que só o olhar me sele

Essa visão que à mente mais apele,

Que de ciúme talvez artérias gele,

Que não pretendo abandonar sequer!

Toda mulher certa montanha alcantilada,

Cuja caverna conserva algum tesouro:

Eu bem queria melhor ser garimpeiro,

Mas me contendo a perscrutar nuvem deixada

Lá no fundo do perfume do desdouro

 Seu olfato delicioso captando derradeiro!

SONETOS FAREJADOS 3

Outros preferem gabar brilho do olhar

Ou a serpentina nuvem dos cabelos

Ou ombros expostos para seus desvelos,

Mas eu anseio por seu leve transpirar...

Talvez em risos irão de mim troçar,

Que são joelhos de mulher de fato belos,

Que realmente eu gostaria de obtê-los,

Mas sem motivo para joelhos farejar,

Porém eu digo que da mulher maior perigo

Vejo na taça misteriosa de um umbigo

Que num êxtase conseiga-se beijar!

Cada centímetro da pele então consigo,

No ato sagrado em que me vou ajoelhar,

Ver sacramento para o olfato e o paladar!

 

SONETOS MASTIGADOS 1 – 18 SET 2022

Qual a vantagem que me trazem os sonetos?

Reconheço que me foram assoprados,

Por entidades, quase sempre inesperados,

A transmitir-me seus anseios mais secretos,

Que quando em vida, por mais fossem diletos,

Jamais chegaram a ser registrados

Ou em seus próprios trabalhos rascunhados,

Por razão qualquer contrária a seus afetos.

Destarte, não se destinam a vantagem

Trazer a mim, mas à recrudescência

De parte de suas vidas, à imanência

Da inspiração de sua antiga abeberagem,

Só por arauto meus lábios a tomarem,

E em meus ouvidos quiçá se lastimarem...

SONETOS MASTIGADOS 2

De certo modo, seria pouco honesto,

Embora cada verso eu tenha escrito,

Considerar-me senhor de seu aflito

Balbuciar ineficaz em cada gesto;

Mas escrever, de fato, é bem mais lesto

Que o sibilar de seu arcano rito;

Não sei se é bênção ou se serei maldito,

Por recolher em meus dedos cada resto

Do que queriam dizer e não disseram,

Se o que eu quero dizer, não o digo agora,

Que tal corrente me impele os pensamentos

A revelar tão somente o que fizeram

Ou deixaram de fazer na curta hora

Em que puderam expressar seus sentimentos.

SONETOS MASTIGADOS 3

Por isso os versos que escrevo contradizem

Uns aos outros em sua díspare emoção,

Que não me brotam do sangue em borbotão,

Mas dos sussurros que receptar consigo;

A expectativa de vantagem própria não abrigo

E me limito a transcrever a sensação

De quem me expressa derradeira volição,

Desde a frágil proteção de seu jazigo;

Mas nem por isso me julgo generoso,

Sou dos poetas falecidos simples voz,

Quem sabe um dia alguém escute a minha?

E desta forma, devo ter-me por ditoso,

Ao desatar da memória os górdios nós,

No ancestral canto de sua oculta ladainha...

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