SONETOS INDUZIDOS 1 – 16 SET 2022
(Anouk Aimée, do cinema clássico francês)
Eu lá te encontrarei, sabes? Um dia,
Quando cessarem todas as exigências
E a carne fria não mais tenha potências
Para prender-me no altar da nostalgia.
Eu lá te buscarei, na meiga penedia
Do mundo onírico de tuas complacências,
Em que portal encontrarei para imanências,
E de meu próprio sonho assim me evadiria.
Bem certo é que de um sonho eu sou senhor
E cada vulto que por ali se encontre
Pode ser por meu querer manipulado,
No teu, entanto, serei imagem incolor,
Não mais que vibração, em que demonstre
Sujeitar-me a teu querer imaculado.
SONETOS INDUZIDOS 2
Quando a neve me come o coração
E os fundamentos do mundo se
derretem
E me consentes que meu sonho os
teus penetrem,
Serei talvez não mais que
abstração.
Ou em teus sonhos serei mais
uma intrusão
Que apenas bem de leve o sono
afetem,
Mas bem queria que dois sonos
se completem,
Nos meus te aceito sem qualquer
objeção,
Pois as quimeras que imagino,
bem secretas,
Para mim se demonstraram
incompletas,
Pois nelas faltam as arestas
principais
E se acaso de teus sonhos nas
aletas,
Me receberes sem grandes
festivais,
Serei feliz só de habitar nos
teus umbrais.
SONETOS INDUZIDOS 3
Porém quisera, sabes? Que aceitasses
A minha presença com maior
impacto,
Que entre nós dois se assinasse
um pacto,
Que a cada noite comigo só
sonhasses
E que em meus sonhos somente me
abraçasses,
Tu no meu sonho e eu no teu
intacto,
Cada fragmento de teu sonho
então eu capto,
Que os elementos de meu sonho
te agradassem.
Talvez um dia, quando a final
coma,
Tolher os membros de percorrer
o dia,
Nos recolhesse em seu perfeito
acoite,
Quando minhalma inteira a tua
toma,
Quando tua alma na minha
acolheria
E nos uníssemos na derradeira
noite.
SONETOS INDUZIDOS 4
Pois te encontrar na certeza
transitória
Da vida alerta jamais é
suficiente,
Nossa presença aqui é
contingente,
Tanta exigência a nos morder
peremptória,
Há tanta coisa material
consecutória,
Que nossas horas latrocina tão
frequente,
Que tudo tira, sem devolver
clemente,
Tanta vida desperdiçada de
irrisória!
Mas no meu sonho o mundo
inteiro é meu
E de teu sonho és a única
rainha,
Se nos uníssemos, um só reino
criaríamos,
No qual o meu domínio é todo
teu
E a multidão de teus desejos
será minha,
Que em amor noturno enfim nos acharíamos...
SONETOS FAREJADOS 1 – 17 set 22
Como é translúcida uma pele de mulher!
Na transparência de um perfume singular!
Não sei por que o querem disfarçar,
Sob o artifício de uma loção qualquer!
Que o verdadeiro perfume é que se quer,
Que contra a fêmea nos vai aniquilar;
Nenhum desodorante nos irá conquistar,
Que não incrementa um tal odor sequer.
Eu só lastimo que ao olfato de passagem,
Não me apresentem essa arcana beberagem,
Macia e fina como um joelho em malmequer,
Que nada encontro nos recantos da miragem
Que a mim transmita uma igual mensagem
Que esse mistério de um umbigo de mulher!
SONETOS FAREJADOS 2
Sei muito bem que jamais
poderei ver
Na totalidade de seu ser uma
mulher
Que só verei a luz do sol em
seu poder,
A refletir-se no espelho de sua
pele...
Sei muito bem que só o olhar me
sele
Essa visão que à mente mais
apele,
Que de ciúme talvez artérias
gele,
Que não pretendo abandonar sequer!
Toda mulher certa montanha
alcantilada,
Cuja caverna conserva algum
tesouro:
Eu bem queria melhor ser
garimpeiro,
Mas me contendo a perscrutar
nuvem deixada
Lá no fundo do perfume do
desdouro
Seu olfato delicioso captando derradeiro!
SONETOS FAREJADOS 3
Outros preferem gabar brilho do
olhar
Ou a serpentina nuvem dos
cabelos
Ou ombros expostos para seus
desvelos,
Mas eu anseio por seu leve
transpirar...
Talvez em risos irão de mim
troçar,
Que são joelhos de mulher de
fato belos,
Que realmente eu gostaria de
obtê-los,
Mas sem motivo para joelhos
farejar,
Porém eu digo que da mulher
maior perigo
Vejo na taça misteriosa de um
umbigo
Que num êxtase conseiga-se
beijar!
Cada centímetro da pele então
consigo,
No ato sagrado em que me vou
ajoelhar,
Ver sacramento para o olfato e
o paladar!
SONETOS MASTIGADOS 1 – 18 SET 2022
Qual a vantagem que me trazem os sonetos?
Reconheço que me foram assoprados,
Por entidades, quase sempre inesperados,
A transmitir-me seus anseios mais secretos,
Que quando em vida, por mais fossem diletos,
Jamais chegaram a ser registrados
Ou em seus próprios trabalhos rascunhados,
Por razão qualquer contrária a seus afetos.
Destarte, não se destinam a vantagem
Trazer a mim, mas à recrudescência
De parte de suas vidas, à imanência
Da inspiração de sua antiga abeberagem,
Só por arauto meus lábios a tomarem,
E em meus ouvidos quiçá se lastimarem...
SONETOS MASTIGADOS 2
De certo modo, seria pouco
honesto,
Embora cada verso eu tenha
escrito,
Considerar-me senhor de seu
aflito
Balbuciar ineficaz em cada
gesto;
Mas escrever, de fato, é bem
mais lesto
Que o sibilar de seu arcano
rito;
Não sei se é bênção ou se serei
maldito,
Por recolher em meus dedos cada
resto
Do que queriam dizer e não
disseram,
Se o que eu quero dizer, não o
digo agora,
Que tal corrente me impele os
pensamentos
A revelar tão somente o que
fizeram
Ou deixaram de fazer na curta
hora
Em que puderam expressar seus
sentimentos.
SONETOS MASTIGADOS 3
Por isso os versos que escrevo
contradizem
Uns aos outros em sua díspare
emoção,
Que não me brotam do sangue em
borbotão,
Mas dos sussurros que receptar
consigo;
A expectativa de vantagem
própria não abrigo
E me limito a transcrever a
sensação
De quem me expressa derradeira
volição,
Desde a frágil proteção de seu
jazigo;
Mas nem por isso me julgo
generoso,
Sou dos poetas falecidos
simples voz,
Quem sabe um dia alguém escute
a minha?
E desta forma, devo ter-me por
ditoso,
Ao desatar da memória os
górdios nós,
No ancestral canto de sua oculta
ladainha...
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