BULICHO
-- William Lagos, 22 out 2008
BULICHO I
Nos lugarejos antigos o bulicho
era o lugar de encontro dos
peões,
faziam caderneta, em ilusões
que o pagamento seria menos
micho.
Os pilas escorriam num esguicho
muito fininho. Na safra é que os patrões
pagavam uns pingados, produções
em que passavam pra trás o pobre
bicho.
E quando iam se acertar com o
bulicheiro
nunca que a plata dava... No contrário,
dever ficavam para mais de um
ano...
Só tinha uns que pagavam de
changueiro,
nos domingos e feriados, que o
salário
nem chegava para a canha do
aragano...
BULICHO II
O bulicheiro fazia
as conta em papel de embrulho:
para tudo lhe servia,
até mesmo sarrabulho!...
Quando o mascate trazia
mercadoria de entulho,
ele as contas conferia,
para não ficar no esbulho!...
Se o mascate punha antolhos:
"Oigale tchê, tu é uma
peste!"
reclamando feito um potro,
apontava para os olhos:
"É porque este é irmão
deste
e primo daquele outro!..."
BULICHO III
O bulicheiro e o mascate eram
amigos
de longa data... Pelas carreteiras
andava um, portando
garrucheiras,
passando privações e mil
perigos;
o outro se quedava nos antigos
direitos dessas vendas
estancieiras,
erguidas desde sempre pelas
beiras
das estradas vicinais, nesses
ambigos
lugares que ainda eram duas
estâncias,
que também a uma e outra
pertenciam,
que junto às lindes sempre havia
passagens;
lá se reuniam para as
manigâncias
os peões e os milicos que ainda
havia
pelas fronteiras, em longas
fabulagens...
BULICHO IV
No seguimento do beiral da
estrada
armava o bulicheiro cancha de
osso
(cancha de bocha pro pessoal
mais moço,
que aprendera dos gringos a
jogada).
Se o fazendeiro era meio
camarada,
deixava ainda fazerem mais um
troço:
alevantavam o arame, abriam
poço,
montavam cancha reta e a
cavalhada
juntavam nos domingos pras
carreira;
vinha gente de longe, bem
pilchada,
de aranha e de charrete. Para a aguada
iam cavalo e burro... Pela
esteira
vinham os cuscos e, numa
cambulhada,
chinas vestidas pra ocasião
festeira...
BULICHO V
Era em feriado que corria a
canha,
mas os sitiantes preferiam fazer
feiras
em cada sábado. Traziam as chaleiras
que a mulher do bulicheiro, sem
ter manha
aquecia no fogão. Compravam banha,
charque e farelo, farinha e umas
porqueiras:
Pindorama pro cabelo das
chineiras,
Amor Gaúcho, que rapaz apanha...
E maior percisão, agulha e
linha,
ferramentas, fazenda, até
bombacha:
os aba-largas pro calor do sol.
O que quisessem no bulicho
tinha,
espora, poncho, guaiaca, bota,
faixa,
cal e cimento, tinta e até
urinol!...
BULICHO VI
E o que teria sido do Rio
Grande,
sem esses bulicheiros
dessombrados,
em seu viver consoante Deus o
mande,
por estes vastos pampas
descampados...?
Por onde a tosca aflora, se
cavados
por mais de meio metro, no desbande
dos rebanhos, nesses tempos
invernados,
nas canhadas vazias dessa
lande...
Essa gente tão simples e
constante,
que dava provisões aos
maragatos,
provisionava também os
pica-paus,
buscando a paz que seu comércio
adiante,
mas sem que pobres andassem sem
sapatos,
nem lhes falhasse a bóia em dias
maus!...
BULICHO VII
Pois era assim, na vastidão do
pago,
esse entreposto de
provimentação,
na venda da espingarda até o
colchão,
pra cuidar do vizinho em cada
estrago.
O bulicheiro não era nenhum
mago,
mas não ficava rico em sua
função:
bancava o duro, porém bom
coração
demonstrava ao andejo em dia
aziago.
Hoje rarearam os bulichos de
campanha:
vem à cidade o peão, sempre que
ganha,
do bulicheiro até esqueceu o
nome,
que suas compras anotava em
caderneta
mas a missão cumpria mais
secreta
de não deixar o povo passar
fome!...
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