quarta-feira, 3 de janeiro de 2018





SOMBRA ÚMIDA E MAIS -- Novas Séries de
William Lagos -- 25-29 set 2017

(NAYA RIVERA, GOUACHE DE LUIZ PABLO MARTINEZ)

SOMBRA ÚMIDA I -- 25 SET 2017

Não quero que te vás.   Que estejas perto
é-me importante, igual que sempre foi;
tua sombra úmida, que sobre mim constrói
caramanchão de espuma no deserto.

Eu te conservo sempre o peito aberto,
pois teu bafejo o próprio olhar me rói,
mesmo tua raiva para mim não dói,
de ti preciso, amado bem incerto!...

Sei não me dás o quanto desejei,
mas quanto dás me enche de fantasmas,
um abantesma de sonho e de desejo;

pela umidade só de ti aguardarei,
a cada instante em que a alma inteira pasmas
com algum perdido e solitário beijo.

SOMBRA ÚMIDA II

Tua sombra úmida descende da saliva
e se derrama no meu vago palpitar,
é o comburente de todo o meu sonhar,
um desafogo de quanto em mim se estiva.

A sombra úmida de ti, estranha diva,
banha meus dedos, mesmo sem tocar,
banha minha língua mesmo sem beijar,
como eu anseio por tal sombra esquiva!

Como eu anseio por tal sombra úmida
a condensar-se em âmbar e desejo,
que sob a minha eu sinta a carne túmida!

Como eu anseio me unir à maciez,
transtornado no martírio de seu beijo
até o momento de minha final prenhez!

SOMBRA ÚMIDA III

A sombra úmida a mim é que engravida,
percebo ovos correndo pelas mãos,
descendo para os dedos, gradações,
que se afunilam qual ingrata vida,

que de mim foge, mesquinha e desvalida,
nestas vertentes de escalavrações,
fingindo versos, dores e paixões,
a destilar-se por senda indevida!...

A sombra úmida assim molha meus traços,
perdida nessa incúria dos abraços,
no plasma a se perder de minhas raízes,

em mil gavinhas cada verso de vaidade
em mim condensa a sobra da umidade
que sempre ajuda a dissolver-me as crises!

SOMBRA ÚMIDA IV

E muito embora nada mais persista,
salvo a sombra da sombra já esquecida,
da úmida umidade em mim vertida,
perante a sombra curvarei minha crista.

Da sombra úmida perseguirei a pista,
sombra de sombra em sombra revestida,
úmida sombra em umidez contida,
sem que jamais de te encontrar desista!

Ai de quem se apaixona pela sombra!
Ai de quem se constrói úmida alfombra
e nela pisa a afogar-se em umidade!

Pois nem meus olhos choram sem os teus
e nem tua sombra ensombrece sem os meus
na umbela cinza de tal lubricidade!...

RECORDAÇÃO XI  (1979)

Eis-me aqui, eis-me aqui, não mais recordas
do Tempo... em que gemias nos meus braços,
quando alterados de Abandono os traços,
arqueavas contra mim tuas tensas cordas...?

Eis-me aqui, eis-me aqui, já não te lembras
de como os Pelos de meu peito ardente
se derramavam sobre o teu fremente,
em cachos negros de Ardor que não relembras...?

E, num riso nervoso e tão ligeiro,
após o Amor, casual os apanhavas
de entre teus Seios, negros caracóis...?

E numa pilha os contavas, derradeiro,
pêlo por pêlo; e ao Solo então lançavas
num leve Abano, do branco dos lençóis...?

FOTOSSÍNTESE I -- 28/3/2004

dos alimentos a alma Aprisionada
se evola em flatulências do meu Ser
e a energia por outros Dissipada
transformo em verso e música e Poder.

da luz do sol um gosto de Memória,
de minhas raízes, lingotes Minerais,
caleidoscópio branco em Som-história,
solvido em clorofila e em Madrigais...

derramo assim meu sêmen sem Malícia
sobre as páginas brancas, Versejando,
nos pentagramas os textos Fecundando,

em canções redolentes de Letícia,
demarcando os limites, sem Tristeza,
na melodia sutil que em mim Viceja...

FOTOSSÍNTESE II -- 26 SET 17

sou como a folha, mas minha Clorofila
ao invés de ser verde, se Avermelha;
pertenço a raça não assim tão Velha
e por hemácias minha seiva só Destila.

no meu olhar a luz do céu se Anila,
mas melanina nele cresce Desparelha
e por minha pele desfila-se em Corbelha
e broto em flor de abrolho e Camomila.

mas a semente que também Espalho
não é vermelha e sim Esbranquiçada,
azuis os brotos a me brotar da Pena.

em mil corpúsculos sobre versos Malho,
por maravilhas nunca Apaziguada
a dor da alma jamais feita Pequena.

FOTOSSÍNTESE III

cada flor sua própria carne Sintetiza,
algumas brandas, pintalgadas Pétalas,
outras mais duras, resilientes Sépalas,
em variedade que nunca se Agoniza...

cada mente de igual modo se Organiza:
buscam ideias e até podem Completá-las
buscam polir suas vidas e Aceitá-las,
buscam fervente Ambição que a Paraliza.

buscam no corpo de outrem seu Espanto,
buscam nos filhos o espantar da Nostalgia,
buscam no corpo social a Aceitação

e eu busco apenas meu derradeiro Canto
que se protela e sempre mais se Adia
quando outra luz me alumbra a Solidão.

FOTOSSÍNTESE IV

a luz do Sol anima os Vegetais
que recobriram a Terra a pouco e a Pouco
e sob o trigo fausto o ouvido Mouco
da multidão dos corpos Minerais.

a luz do Sol aduba os Animais,
seu ruminar constante canto Rouco,
seus ossos tombam em partir-se Louco,
aves e vermes a roer restos Mortais.

a luz do Sol recobre o meu Papel
que um dia pertenceu a tronco Arbóreo
e ali procuro perfilhar destino Nobre

e como a Abelha meu verso se faz Mel,
significado a destilar Peremptório
na rede oculta que a todos nós Recobre.

ENCAIXE I -- 1981

Depois de um ano e mais de lenta espera
em que minha própria incúria me afastava
e a quanto mais queria, me negava,
toquei de leve a sombra da quimera...

Depois de um ano e mais de desajuste,
de circunstâncias mudas contra nós,
sorriu-se o fado ao desatar dos nós,
completando a ilusão, sem mais embuste.

No aquecimento lento dos abraços,
teus olhos sobre os meus, teus olhos baços,
quase apagados, mornos de lixívia...

Na singular magia dos teus traços,
antes comuns e agora, nos meus braços,
transfiguradas jóias de lascívia!...

ENCAIXE II -- 27 set 2017

Quantas coisas descobri no teu olhar!
Alguns anjos busquei neles em vão,
alguns demônios ali ocultos são,
nem uns nem outros vieram-me abraçar.

Pois não me via refletir no teu sonhar;
não nos teus olhos, que só imagem são
dos desencontros de teu coração
e que, de fato, mal e mal pude sondar.

Nas superfícies, a lágrima luzia,
por mais que raro fosse o teu sonhar;
rostos estranhos dali me contemplaram,

mas percebi que outra película existia,
que meu amor nunca pôde perfurar
e outros olhos que de dentro me avaliaram.

ENCAIXE III

Porém não divisava só um par!
Havia multidão, calma e irrequieta,
algo de incólume, algo que se afeta,
uma que outra às outras dominar.

E desde modo foi preciso conquistar
a sobranceira que um dia se projeta,
antes que pudesse penetrar com minha seta
no coração em que via tantas habitar.

Contudo, no alvorecer do dia seguinte,
estranhos olhos fitava nas pupilas,
corais às vezes, destoutras longas filas.

Cantoras mudas no esplendor do acinte
e dançarinas paralíticas saltando
para meus olhos, cada qual me dominando...

ENCAIXE IV

Nunca pensara que numa só mulher
revivessem mil páramos de idade,
sílfides murchas de grande antiguidade,
mulheres doces quanto mais se quer.

Pelos séculos aninhando-se qualquer,
todas as crenças, toda a caridade,
toda a descrença, toda a iniquidade
que não se pode decifrar sequer!...

De certo modo, bricolei o encaixe,
quebrada aresta, preenchido fundo,
cada um dos côncavos escusos de sua alma.

Tendo certeza de estar preso nesse enfaixe,
mas sem jamais sentir o dom jocundo
de percebê-la minha em plena calma.

BOATO I -- 24/3/2006

Perdemos um amigo...   Segundo me contaram
Trazia no pescoço medalhas; sobre o peito
Imagens de outros santos, de servos sem defeito
Do Pai e Criador, que tanto suportaram

Para manter a fé e em busca da verdade.
Sofreu igual que nós, quem mede o sofrimento?
Quem sonda as emoções, quem lê o pensamento
Daquele que perece?   É horror?  Tranquilidade?

Nos momentos finais, quando a morte ben de perto
Assistiu impotente, como qualquer que seja
Que a enfrenta inesperada, em tal lugar deserto...

Quem sabe o que perpassa nos corações secretos!
Buscando a proteção dos santos e da igreja,
Morreu qual Faraó...  tapado de amuletos!...

BOATO II -- 28 SET 2017

Nossa vez há de chegar.  É natural
Que a carne sofra a sua degradação,
Quando cessar de lhe bater o coração
E se extinguir toda a vida material.

Para alguns é a coisa mais fatal:
De acidentes morrem, sem razão,
Ou assassinados em estúpida ocasião;
Outros a morte perseguem no final.

Antigamente, quando a todos dominava
A Igreja Católica, até mesmo proibia-se
Que um suicida repousasse em campo santo!

E com frequência sequer se mencionava
E no Atestado de Óbito, mentia-se,
Ser a morte natural causa do pranto.

BOATO III

Quando procuro nos Dez Mandamentos
Não vejo ali que se mencione o suicídio;
"Não Matarás" só refere o homicídio,
Sendo o resto opiniões e julgamentos.

Sempre é preciso alguns atendimentos
Dar aos cadáveres... Haverá feminicídio
Se uma mulher se mata?  Ou filicídio
Pelas crianças que não chegou a dar alentos?

Na verdade, não é mais do que um boato
Que o suicida não ascenda ao Paraíso.
Quem retornou e sobre tal nos revelara?

Desperdício realmente é o triste fato.
No Hinduísmo, de mais diverso siso,
Só representa mais retorno à sua Sansara...

BOATO IV

Se o meu amigo, católico devoto,
Se recobriu de imagens e amuletos,
Não buscaria burlares mais secretos,
Um Paraíso assaltando nesse loto?

Não que acredite.  Para mim denoto
Que a Graça atenda mesmo aos desafetos
Da Santa Igreja...  E que nossos dejetos
Bem poderiam ser lançados ao esgoto.

O importante é só a parte espiritual
E certamente não creio em Purgatório
E muito menos no "Tesouro do Perdão",

Que o Santo Espírito para todos é cordial,
Sem medalhas a nos trazer repositório
Que nos conduza a qualquer destinação!

LUZ ARGENTINA I -- 29 set 2017
(Agradecimentos a Benjamin E. King)

"Quando a noite chega e tudo escurece,
na prata apenas é que se encontra a vida."
Ao plenilúnio o argênteo dá guarida
e ali de estrelas todo o brilho permanece.

Toda estrela que cai na prata desce
e ali reluz, no adiar da despedida;
de um meteoro a mais gentil ferida,
de anjo caído a merencória prece.

Dizem alguns, até mesmo, que a cadente
estrela nessa prata se transforma,
a rocha e a areia a converter nesse metal

e fica ali esse esplendor jacente,
a fosca imagem, o espelho que deforma
a quem contempla em esplendor casual.

LUZ ARGENTINA II

Também o Sol, que lava a Terra inteira
e chove sobre nós em dom total
é equiparado ao esplêndido metal,
o ouro raro, que em cor dele se abeira.

Mas a canícula, em sua feroz esteira,
perpassa a Terra em fúlgido fanal
queimando o quanto traz de material,
é mais a praia que se faz hospitaleira.

Que até durante a noite ainda conserva,
na multidão de seus minúsculos cristais
o quanto resta de tal solar calor,

porém a prata se faz da Lua a serva,
flautas silvando melodias siderais,
num arremedo pálido do amor.

LUZ ARGENTINA III

Durante o dia pouco brilha a prata;
faz-se mais baça que ágata ou esmeralda,
quando arrancada da montanha à falda
desce dos Andes e na planura se desata.

Durante o dia é o Sol que mais contata
dos homens a ambição, terrível balda!
Preenche os corações, dourada calda.
inocente em si mesma: é a ambição que mata!

Há muito tempo já deixou de ser moeda;
dobrões que existem nos museus se encontram,
guinéus e rands em cofres bem guardados

e o próprio padrão-ouro sofreu queda,
que em lingotes e barras hoje se amontam
e em fac-símiles só poderão ser contemplados.

LUZ ARGENTINA IV

Hoje é o alumínio que nos bolsos faz ruído.
o cobre e o níquel ali mais raramente,
como moeda de troca ainda vigente,
o seu valor facial já esmaecido.

É o ouro ainda por muitos perseguido,
mas é a pirita que se encontra mais frequente,
metais dourados ainda enganam muita gente,
talha dourada em santuário já esquecido.

Pelos turistas contemplado com desdém,
o horror ao vácuo ali onipresente;
porém a Prata traz a Lua para quem

ainda a possui.  E o Ouro que se tem
só uma camada sobre a argenta ali dormente,
estrela fosca, que nos seduz também!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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