domingo, 21 de janeiro de 2018






O TOCADOR DE HARPA -- 28 OUT a 1º NOV 2017
(História tradicional irlandesa, baseada em fatos reais e/ou em parte imaginários (serão...?), versão poética William Lagos).

BANRÌGH MÀIRI, "HARPA DA RAINHA MARIA", INSTRUMENTO MEDIEVAL, MUSEU NACIONAL DE EDINBURGH, NATURALMENTE ANTERIOR AO REINO DE MARIA.

O TOCADOR DE HARPA  -- 28 OUT 2017
A PRINCESA E O SAPO -- 29 OUT 2017
O LOBO E O CORDEIRO -- 30 OUT 2017
A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA -- 31/10/17
A MULHER DAS 10.000 ALMAS -- 1º/11/17

O TOCADOR DE HARPA I

Sem dúvida, o instrumento mais tradicional
de toda a Irlanda é a harpa, realmente
que um símbolo nacional mesmo tornou-se
dessa nação de tradição antiga.
em melodia
e harmonia
que desse povo a nostalgia abriga
e até mesmo nas guerras escutou-se,
um entusiasmo transmitindo transcendente
em suas canções do sonho mais real...

Ora, habitava na região de Donegal,
da Irlanda no extremo noroeste,
certa família cujo nome era Muldoon; (*)
outros falam que em Mayo aconteceu
esta história
de antiga glória,
que em Munster de fato sucedeu;
ou  em Tyrone nos afirma algum
ou mesmo em Cork, já no sudoeste,
outros lugares reclamando fama igual.
(*) Leia "Maldum".

Porém Muldoon é sobrenome bem comum
também nos arredores de Dublin;
iria bem longe assim a discussão,
mas o certo é que foi em uma aldeia,
lugar pobre,
coração nobre
ou, pelo menos, consoante a gente leia,
dos camponeses da pequena povoação,
que na penúria sobrevivia assim,
sem alívio encontrar de modo algum...

Não foi na época da terrível fome
que a terça parte obrigou a emigrar,
um outro terço chegando a perecer,
mas mesmo assim, em tal lugar havia
certa a pobreza,
muita a incerteza
sobre quanto o futuro lhes traria,
nenhuma terra dos campônios sendo o haver,
aos proprietários altas rendas a pagar,
que todo o lucro das colheitas lhes consome.

O TOCADOR DE HARPA II

Pois tal era a situação desses Muldoon,
já há onze anos a família constituída.
com oito filhos em torno de sua mesa,
bênção, decerto, mas responsabilidade
de alimentar,
vestuário dar,
em sua choupana pequena de verdade,
alegre gente, mesmo na pobreza,
sob a ameaça de despejo igual sofrida
por tantos outros, um destino bem comum...

Bem ou mal, o pobre arrendatário
sempre pudera pagar seu aluguel,
até um ano em que perdeu seu trigo
pouco sobrando da colheita de batata,
que a chuva forte
trouxe má sorte
de frutinhas e raízes meio à cata,
enquanto o clima lhes fosse um inimigo,
sempre chegando o cobrador do Coronel,
querendo libras para levar ao proprietário.

As coisas iam mais ou menos se ajeitando,
mesmo a batata tendo sido escassa
e sua colheita de trigo pobrezinha,
mas podendo colher a sua cevada,
só que esmirrada,
sabor de nada
e como era a sua hortinha bem aguada,
colhia-se ainda qualquer verdurinha,
com a sopa de raízes a fome passa,
embora os cintos fossem apertando...

Porém então lhes ocorreu outra tragédia:
morreu a vaca que lhes dava leite,
comia só palha, apodrecido seu capim...
Logo teriam de pagar o cobrador:
como fazer,
sem nada ter?
Por mais sementes se precisou fazer penhor
dos castiçais que ainda tinham e enfim,
da própria mesa e da cama em que se deite,
sem alcançar do pagamento a soma média...

O TOCADOR DE HARPA III

Dos oito filhos, o mais velho tendo dez,
como Ralph Muldoon foi batizado (*)
e procurava demonstrar-se bem ativo,
ajudando a cuidar de seus irmãos,
porém sentia
que não podia
mais o pai ajudar nas plantações;
com armadilhas ia caçar um coelho esquivo,
mas sem ter forças para empurrar o arado,
nem um roçado capinar com rapidez.
(*) Leia 'Rolf" ou "Ralf"ou mesmo "Raf".

E ainda sendo a comida tão escassa,
com sete irmãos precisando dividir,
como sua massa muscular fortalecer?
Os pais a perceber desperançados,
até esfomeados,
pobres coitados
e a própria harpa de sues antepassados,
que Ralph já tocava com prazer,
para ajudar seus manos a dormir,
foi levada ao penhor, nova desgraça!...

Porém lhes trouxe medidas de aveia
e um saco de batatas machucadas...
Nessa semana comendo até melhor;
das batatas as cascas retiradas
seriam plantadas,
se bem aguadas,
seriam em novas batatas transformadas,
caso sua sorte não ficasse ainda pior,
pois viera a seca e minguavam as aguadas,
buscando água do outro lado de sua aldeia...

Ou se, de novo, ali chovesse por demais,
apodrecendo toda a nova plantação...
Mesmo assim, a família dos Muldoon
confiava em Deus e mais ainda trabalhava,
mais que rezando,
em si confiando
pois nessa noite começou a trovejar;
de combustível de turfa havia algum,
indo a família enroscar-se pelo chão,
a pedra e o choupo proteções bem naturais... (*)
(*) O teto era coberto com folhas de choupo -- daí "choupana".

O TOCADOR DE HARPA IV

Mas quando o fogo pretendiam já apagar,
a fim de conservar seu combustível,
alguém bateu na porta da choupana;
Patrick Muldoon sua porta destrancou;
raio brilhou
e deparou
com pobre velha, que lhe suplicou
a proteção contra a tormenta insana;
tinha Patrick o coração sensível,
mas explicou-lhe que não havia lugar...

 A velha disse: "Eu me encolho num cantinho..."
Maureen, a esposa, falou: "Deixe-a entrar..." (*)
Chegou a pobre, toda encolhidinha
e se assentou à beira da lareira,
sua cabeleira
e a face inteira
recobertas por um lenço de ir à feira
e foi ficando por ali, muito quietinha,
mas depois disse: "Qualquer coisa que sobrar
poderiam me servir nalgum pratinho...?"
(*) Leia "Morím".

Por sorte ainda restava algum mingau
e numa jarra alguns dedos de cerveja
(no dia seguinte, este seria o seu café),
mas o casal depressa contemplou
os filhos a dormir,
sem assistir...
Numa gamela Maureen então despejou
quanto sobrara do mingau até
e num copinho de barro o quanto esteja
da jarra ao fundo, sem pensamento mau...

Muito faminta, a velhinha agradeceu,
com apetite tudo devorando...
E sobre o tampo do forno de pão,
Ralph dormia, a subir por escadinha
feita de corda
e então se acorda,
os olhos fixos na boca da velhinha,
tudo o mais ainda oculto na ocasião;
ficou o menino bem quieto, observando;
logo a seguir, a visitante adormeceu...

O TOCADOR DE HARPA V

Seus pais deitaram num monte de palha,
mal se cobrindo com cobertor rasgado,
ficando Ralph apenas cochilando,
já na lareiro o fogo avermelhado,
quase apagado,
a velha ao lado.
Dormiu o garoto um sono perturbado,
parecia estar música escutando,
sem ter a harpa, essa noite havia cantado,
sua voz pura qual fio de navalha...

Da velha harpa a sentir saudade,
pensou estar somente imaginando,
a melodia que bailava no seu sono,
mais num cochilo, sentindo-se embalado
por canto doce
e a escutar pôs-se,
no devaneio de um sonho descuidado,
só percebendo aos poucos que esse entono.
vinha do lado da lareira se emanando:
era a velha que trauteava, na verdade!...

As melodias mais lindas que já ouvira,
ao par de outras que antes já tocara,
longa a tristeza no seu coração,
pela sua harpa que nunca mais veria...
bem acordado,
já deslumbrado,
sua tristeza desmanchou-se na harmonia
das letras lindas de cada canção
e de repente, lhe veio a noção clara
que a visitante nem sequer dormira...,

Já parecia estar muito maior,
sem qualquer jeito de velhota aparentar
e então se ergueu da beira da lareira,
sempre cantando, em direção à porta,
já escancarada,
sem ser tocada,
sua voz tranquila, até meio absorta,
seu porte nobre, esguia e altaneira,
seus pés o solo quase sem pisar:
passada a chuva, estava o tempo bem melhor...

O TOCADOR DE HARPA VI

Ralph desceu por meio da escadinha
e foi seguindo a cantora, silencioso,
sem ser tocada, a porta se fechou,
a visitante pelo prado a deslizar,
sem nem pisar,
Ralph a notar
que seus mulambos já estava a transformar
em longo manto; e o canto sempre continuou;
Ralph Muldoon, embora um pouco temeroso,
seguia o vulto belo, imponente qual rainha.

 O lenço velho da cabeça escorregara,
em vez de brancos, eram vermelhos os cabelos;
sobre o semblante que já resplandecia
logo surgiu um brilhante diadema,
era encantada,
decerto fada!
depois surgiu criaturinha bem pequena
e a seu redor dezenas mais havia,
asas sedosas, dançando em mil desvelos
e embora noite, se esparzia luz preclara!

As árvores e os arbustos transformados,
raios de luz brotando das estrelas,
sem haver vento, as folhas farfalhando,
como batendo palmas... e mil flores
surgindo no caminho;
pisando de mansinho,
Ralph seguia, permeio a seus temores:
a Rainha das Fadas que estava acompanhando,
de sílfides cercada, cujas vozes belas
anões chamavam, em passos apressados!

E quando, enfim, apareceu uma clareira,
anões e sílfides em animada dança,
a Rainha no centro, majestosa,
Ralph queria fugir e não podia,
que a melodia
ainda o prendia,
empolgado nessas ondas de harmonia,
embasbacado ante a dama portentosa,
tão somente o seu olhar a cena alcança,
escondido por detrás de uma macieira...

O TOCADOR DE HARPA VII

Nem era tanto que sentisse medo,
porque, de fato, estava envergonhado
desses farrapos velhos que vestia,
sem possuir meias e nem sequer sapatos
e nem tamancos,
pisando aos trancos,
em seus pés calos grossos e ingratos,
de suas roupas o mau cheiro rescendia!
Queria fugir, mas se sentia acorrentado
na melodia e na luz daquele albedo!

Mas acabando por criar coragem,
já procurava afastar-se da clareira,
quando o canto interrompeu-se por momento
e uma voz doce e gentil de campainha
feita de prata
soou na mata:
"De nós, menino louro, te avizinha,
olhos azuis cintilantes em portento"..."
Seu coração a pulsar em tremedeira,
seus pés movendo para o meio da miragem!...

Mas a voz da Rainha prosseguiu:
"Não se envergonhe, Ralph, meu pequeno,
seja bem-vindo entre nós, jovem Muldoon,
não é preciso ter temor em nosso meio!..."
"Não é receio,
é que sou feio!..."
"Ao contrário, da feiúra és bem alheio,
teu coração é mais puro que nenhum!
Venha depressa atender a meu aceno,
sei muito bem por que hoje me seguiu!..."

"Seus pais me demonstraram caridade,
do pouco que possuíam repartindo
e é justo que esta noite eu retribua...
Sei que tu te tornaste um bom harpista,
a harpa empenharam
e compartilharam
com uma estranha o quanto subsista
do alimento... pouca gente assim atua,
por isso lhe repito: sê entre nós bem-vindo
e em nossa harpa nos demonstre habilidade!..."

O TOCADOR DE HARPA VIII

Dois anões grande harpa já traziam,
toda lavrada em carvalho antigo,
dourada e marchetada de lavores,
as cordas todas de algum metal forjadas,
tão resistentes
quanto fluentes...
"Queres tocar as melodias escutadas?"
De novo Ralph ficou cheio de temores:
E se estragasse esse instrumento amigo?
Mas já nas cordas seus dedos se estendiam...

 Ele lembrava não mais que fragmentos
das cem canções que ouvira anteriormente,
mas outra era a memória de seus dedos,
que pelas cordas rápido correram,
ali pontearam
e dedilharam
cada canção e melodia que acolheram,
a própria harpa a despejar os seus segredos,
notas bailando assim magicamente,
fadas e anões a lhe aplaudir assentimentos...

Destarte executou uma por uma
das que escutara, cem belas melodias,
até que a série finalmente completou,
o coro inteiro a pedir tocasse mais...
"E o que escutou
quando acordou...?"
Correram os dedos, ágeis, naturais
e de cada canção logo lembrou
e finalmente as de todos os seus dias
foi recordando, sem faltar nenhuma...

Então, tomado de dionisíaco furor,
começou ferozmente a improvisar,
até chegarem da aurora os seus albores...
"Nossa visita terá de agora terminar,
mas seu concerto
pago, decerto...
Essa harpa tu gostarias de ganhar...?"
Pensou Ralph: Mais que todos os favores!...
É o melhor que eu poderia desejar!...
Porém lembrou dos pais e seu labor...

O TOCADOR DE HARPA IX

"Senhora fada, ofendê-la eu não desejo,
mas não podia me dar por recompensa
uma vaca?  Os meus pais têm precisão
e meus irmãos necessitam desse leite..."
"Muita nobreza,
grande beleza!
Mas por deixar de lado o seu deleite,
terás a vaca de sua solicitação
e que essa harpa igualmente lhe pertença,
grata lembrança deste belo ensejo!..."

 "Vai à feira amanhã -- antes do meio-dia
e irás tua vaca certamente adquirir,
logo a melhor que ali se encontre à venda!...
Vai agora descansar em tua caminha...
que é pobrezinha,
mas bem quentinha..."
Então ouviu bater palmas a Rainha
e sem lembrar ter percorrido qualquer senda,
sobre seu forno se encontrou logo a dormir:
não mais que um sonho tudo então seria!...

Acordou-se com as vozes de seus pais
e dos irmãos uma alegre gritaria;
junto à lareira não havia visitante,
seu pai falando em tom bem intrigado
"Foi-se embora
em qualquer hora,
mas o ferrolho por dentro está fechado!
Por onde foi que saiu a viandante?
Não há janelas...  A chaminé não subiria,
para um gato já é estreita por demais!..."

 "Ela saiu, mas quem correu o ferrolho?
Foi você, Ralph?" -- ele indagou.
O menino desceu pela escadinha:
"Eu a vi sair, porém eu não fechei!
Era uma fada,
toda encantada!
Pela estrada da floresta a acompanhei,
vieram outras, pois ela era a Rainha
e uma harpa de ouro me entregou:
fiquei a noite sem ao menos pregar olho!..."

O TOCADOR DE HARPA X

"Ora, querido," disse a mãe, foi tudo um sonho!"
"Não foi sonho, Mamãe, foi de verdade:
mandou trazer-me uma harpa e eu toquei
horas e horas, enquanto eles cantavam..."
"Mas que loucura!
De noite escura!
Era embaixo dessa chuva que dançavam?"
"Parou a chuva, Papai, quando eu cheguei;
ela agradeceu pela sua caridade..."
O pai fitou-o com um olhar tristonho...

"Agora chega dessa história louca!
Não invente coisas para os seus irmãos!..."
"Pai. ela disse que eu fosse hoje à feira,
em que uma vaca linda eu compraria!..."
"Com que dinheiro?
Não há nem cheiro!
Quem sabe até o feitor me expulsaria.
após tirar-me a moeda derradeira,
para da estrada arrastar-nos pelos chãos,
como se nossa miséria fosse pouca!..."

"E ainda pretende me envergonhar na feira,
pensando que lhe darão vaca de graça...?
Eu vou sair e procurar colocação,
não venha agora com mais essa loucura!
Seremos troça,
de toda a roça!"
Falava assim por estar cheio de amargura,
tanto trabalho sem ter compensação...
Abriu a porta e a luz então perpassa,
saindo o Pai pela ressecada jeira...

Mas quando o interior se iluminou.
Maureen experimentou grande surpresa:
"Meu filho, essas roupas, quem lhe deu?"
O próprio Ralph somente então notou
estar calçado
e bem trajado...
"Só se foi a boa Rainha que trocou
nessas roupas os meus trapos!   E ela prometeu
que uma vaca eu compraria, com certeza!
Que eu fosse à feira foi ela quem mandou!"

O TOCADOR DE HARPA XI

E de repente, Ralph se lembrou
e subiu velozmente a sua escadinha...
Viu que a harpa nova realmente estava ali!...
Desceu com ela, no maior cuidado,
sendo rodeado
por coro alvoroçado,
seus sete irmãos a chegar de cada lado:
"Venha tocar para nós agora aqui!"
"Não é essa a harpa que a família tinha!"
Em seu assombro, Maureen o contemplou...

 "Não, Mamãe, esta foi o meu presente
que ontem me deu das fadas a Rainha,
depois que nela eu toquei a noite inteira
e é encantada, Mamãe, tem lindo som,
às vezes trágico,
mas sempre mágico,
meus dedos correm pelas cordas nesse tom,
em melodia delicada e então brejeira..."
E demonstrou a habilidade que então tinha,
toda a família deixando bem contente!...

De tardezinha, voltou o Pai, desapontado,
por mais tentando, sem conseguir emprego achar;
porém da aldeia, quando se aproximou
dela provinha a mais alegre gritaria:
aclamação
de multidão,
que aos ombros jovem louro conduzia
e uma harpa de ouro rebrilhou,
todos alegres, em cantos a dançar,
ao escutarem tão formoso dedilhado!...

E para sua surpresa, era seu filho,
envergando uma nova indumentária,
sem qualquer luxo, porém de certo, nova,
a tocar maravilhas nessa harpa!...
Mas que loucura!
Mas que doçura...
Pois da tristeza e dor a menor farpa
ele afastava com sua melodia viçosa,
cantos antigos em harmonia vária,
a aldeia alegre percorrendo o mesmo trilho!

O TOCADOR DE HARPA XII

Viu-se encantado pela melodia,
já esquecido seu desapontamento,
sendo saudado pelo bom vigário:
"Patrick Muldoon, esse teu filho é bem genial!"
Na minha igreja
que sempre o veja,
tocando ali o Te Deum mais triunfal!..."
E o cobrador falou ao arrendatário:
"Teu filho hoje ganhou o rendimento
deste ano e tudo o mais que antes devia!..."

 E mais adiante, encontrou a sua mulher,
dançando alegre, com toda a filharada,
sua tristeza dispersada inteiramente
e a menina que tinha nove anos
puxava, toda prosa,
vaca formosa!
"Veja, Papai, foi o Ralph, sem enganos,
ganhou dinheiro, pagando totalmente
a vaca nova, qual nos prometeu a fada!
Sobrou dinheiro para o que senhor quiser!..."

E desse modo à choupana retornaram,
mas cada noite subiam até a aldeia,
para Ralph dar um novo recital,
a sua voz linda a harpa acompanhando,
toda a miséria,
tristeza séria
de sua família inteiramente dissipando...
E vinha gente até da capital
a partilhar dessa alegria que se ateia
nos corações de quantos o escutaram!...

 Assim a aldeia inteira prosperou,
mas seguiram os conselhos do vigário
e continuaram sempre trabalhando,
embora Ralph precisasse praticar
e sua choupana,
com tanta fama,
facilmente conseguiram aumentar,
o feitor, finalmente, aconselhando
que aos Muldoon a vendesse o proprietário,
pois também ele com Ralph se encantou!...

EPÍLOGO

Ralph Muldoon foi assim considerado
de toda a Irlanda como o melhor cantor
e renomado como o maior harpista,
longa vida percorrendo em sua carreira,
passado o tempo
o seu talento
reconhecido pela Europa inteira,
muitos discípulos deixando na sua pista,
recordado com o máximo louvor
por ter sido pelas fadas abençoado!

O que foi?  A harpa antiga?
Bem depressa do penhor a resgataram
e seus irmãos nela praticaram,
sem que a Ralph nenhum igual ficar consiga!

A PRINCESA E O SAPO -- 29 OUT 2017

A PRINCESA E O SAPO I

Um reino havia com doze princesas,
uma a uma das quais se foi casando
e o reino de seus pais foram deixando,
em alianças com outras realezas...

Vinham os príncipes a banquetear-se às mesas
cada princesa solteira examinando
e uma a uma os foram acompanhando,
felicidade ou desgosto só incertezas...

Restou apenas a mais jovem, finalmente,
já tendo idade para se casar,
mas sem que aparecesse um pretendente

e assim os anos se passavam velozmente,
já a pobrezinha a se desesperar,
alguns falando num convento abertamente...

A PRINCESA E O SAPO II

Filhos de nobres decerto a aceitariam
e até mesmo alguns ricos comerciantes,
plebeus, talvez, mas com bens interessantes,
porém seus pais jamais consentiriam.

Seus vinte anos logo chegariam,
já se achava solteirona em alguns instantes,
pelos jardins vagueando, verdejantes,
em seu laguinho nenúfares haviam...

E a princesinha ficava a se entediar,
mesmo suas aias já ficando velhas,
sem demonstrar mais por ela grande amor,

porque a ninguém poderiam desposar,
ante um altar carregando suas corbelhas,
com sua princesa ainda solteira e sem favor!

A PRINCESA E O SAPO III

Certo dia, a brincar com sua bolinha,
viu-a cair no meio da lagoa;
vadear a água não seria coisa boa
para as aias, que dirá à princesinha!

Porém um sapo sobre folha vinha,
a bolinha entre as patinhas, coisa à toa,
e com a voz fanhosa então entoa:
"Dou-lhe a bola, se quiser ser minha rainha!"

"De fato, eu sou um príncipe encantado:
pode o feitiço quebrar-me com um beijo!"
Em suas costas ostentava rubra capa...

Mesmo sentindo certo nojo, sem cuidado,
a princesa beijou-o nesse ensejo
e dessa forma se tornou a Rainha Sapa!

O LOBO E O CORDEIRO -- 30 OUT 2017

O LOBO E O CORDEIRO I

Chegou um lobo faminto à pradaria,
em que avistara rebanho haver de ovelhas;
seria expulso, decerto, pelas velhas;
presa mais fácil então procuraria...

Mas o pastor mesmo de longe o enxergaria,
pois tinha pelo negro e sobrancelhas,
cauda espetada, sem as lãs parelhas
que qualquer ovelhinha mostraria...

No ano anterior pudera então caçar
um carneirinho e guardara seu pelego,
que sobre o lombo, com cuidado, estenderia,

desta forma a conseguir se disfarçar:
Com este velo eu deixo o pastor cego! (*)
E assim sem medo, por ovelha passaria...
(*) A lã aberta e formada, mas sem o couro.

O LOBO E O CORDEIRO II

Mesmo seu cheiro o pelego disfarçou
e um cordeirinho foi depressa procurar,
que do rebanho poderia apartar...
possível vítima assim localizou.

Um cordeirinho matreiro ele alcançou,
conversação começando a entabular,
o animalzinho a responder, sem desconfiar,
e a pouco e pouco, do rebanho o separou...

Seu objetivo pensou ter alcançado,
ao cordeirinho facilmente a enganar:
"Daquele lado a grama é bem melhor!"

O cordeirinho escutou o seu recado,
indo um pouco mais além a acompanhar,
do lobo a fome já ficando bem maior!

O LOBO E O CORDEIRO III

Não obstante, não gostou desse capim.
Disse o cordeiro: "Mais adiante, eu sei,
é mais gostoso, porque eu já provei,
venha comigo, vou mostrar-lhe assim..."

Pensou o lobo: Bem melhor pra mim,
pois bem mais longe do rebanho o pilharei!
Realmente, dos disfarces sou o rei!
E foi seguindo o cordeirinho até o fim.

E de fato, havia grama bem verdinha,
porém bem perto, ele avistou carneiro!
Disse o cordeiro: "Sigamos esta trilha,

"ou o prepotente nos corre depressinha!"
Seguiu o lobo a ordem bem ligeiro
e o cordeirinho o fez cair numa armadilha!

A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA -- 31/10/17

A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA I

Uma rainha buscava noiva para o filho,
porém que fosse da mais total nobreza,
não descendente de uma nova realeza,
sua dinastia do mais antigo brilho!

"Jamais filha de um rei que, por gatilho
ou por lâmina de espada que outro lesa
um real trono conquistasse como presa,
mais rei não sendo que um pé de milho,

"que bem na ponta também mostra uma coroa,
mas é um broto avantajado de capim:
para meu filho só a donzela mais perfeita!"

Nenhuma noiva considerando boa,
mesmo arriscando que ofendesse, assim,
o rei seu pai, cuja filha não aceita!...

A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA II

Passou assim a convidar esta ou aquela,
porém em todas encontrou algum defeito,
em sua tutela o filho bem sujeito,
pouco importando que a alguma achasse bela!

Ficou assim a testar cada donzela
e tendo o reino riqueza e bom conceito,
diversas houve buscando dar um jeito
de um matrimônio arranjar de boa estrela!

Mas a todas, gentilmente, descartou,
depois de noite dormirem no castelo,
sem explicar-lhes o porquê da rejeição.

Até que o filho, em desgosto, protestou:
"Senhora mãe, por que tanto desvelo?
Deste jeito, vou acabar um solteirão!"

A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA III

"Não se amofine, meu filho, que acharei
uma digna princesa que o mereça!"
E de fazer tais convites nunca cessa
para cada dinastia e grande rei...

"Hoje uma nova princesa acolherei,
muito me agrada a velha estirpe dessa!"
Após jantar, conduziu-a para a peça
em alto leito a dormir, consoante a lei.

Pela manhã, indagou como passara
e a princesa respondeu: "Eu dormi mal,
havia uma pedra embaixo do colchão!..."

Só um grão de ervilha a rainha colocara
sob doze colchões!   Mas essa tal,
sentira a pele machucada sem razão!...

A PRINCESA FLOR-DE-ERVILHA IV

Pensou a rainha: No teste ela passou,
mas quem sabe? Por alguém foi informada!
Mesmo depois de sua pele ver marcada,
a rainha um novo teste imaginou.

E nessa noite, depois que se deitou,
dormiu a princesa muito sossegada...
"Eu dormi bem!" -- disse, ao ser interrogada
e a rainha grande agrado demonstrou,

pois desta vez não pusera o grão de ervilha
por debaixo de seus doze colchões.
"Pois dormiu bem a noite inteira agora!"

"Você é digna de ser minha nova filha!"
E assim se uniram os dois corações,
satisfeita a rainha com sua nora!...

A MULHER DAS 10.000 ALMAS -- 1º/11/17
 
A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS I -- 27/4/2006

Uma mulher possuía dez mil almas,
uma legião de almas tinha ela:
umas furiosas, outras muito calmas,
altivas eram, ou de expressão singela.

No dia em que morresse, quando dela
o suspiro final fosse exalado,
dez mil suspiros residentes nela
teriam de sair, num apressado

empurrar-se de almas...  Tules brancos,
almas de sedas e almas de filó,
almas de geada e da respiração

condensada do inverno, como são
almas de teia a se afastar aos trancos,
almas de giz e espuma feita em pó...

A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS II -- 1º NOV 2017

Como essas almas poderiam sair
antes que o corpo morresse totalmente?
As que pudessem pular mais velozmente
para o astral mundo conseguiriam fugir...

As mais lentas, a saída a perseguir,
com uma dúzia de farrapos, certamente
alcançariam a saída, finalmente,
restos de outras na fuga a adquirir...

Enquanto nessas deixariam fragmentos,
tantas almas mutuamente influenciadas,
já desde o ventre materno tão fecundo,

porém ficando a combater por seus alentos,
mais magoariam as que foram empurradas,
nesse êxodo de temores iracundo!...

A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS III

Mas como tantas almas se reuniam
de um só corpo no solitário abrigo?
Ela trouxera algumas do jazigo
em que os parentes seus próprios olhos viam.

Outras trazidas desses dias que já iam
pelos séculos passados. O vulto antigo
de seus antepassados, sem temer perigo,
ela buscara, em especial as que sofriam.

Assim juntara essa imensa multidão,
cada fantasma de seus muitos ancestrais,
em suas artérias e medulas a habitar,

a se encararem com despeito ou com paixão,
da carne viva escondidas nos umbrais,
sem desejarem tai refúgio abandonar...

A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS IV

É bem provável que fizessem assembleias
e até em partidos se organizassem,
que todos eles igualmente proclamassem
as plataformas que expressavam suas ideias...

Pronunciariam então prosopopeias
em seus discursos que no sangue se lançassem,
muitas fagulhas por ali se dispersassem,
bolhas de gás a espocar em epopeias...

Teriam bandeiras e lenços coloridos,
no ectoplasma pregando distintivos,
confirmando a aderência a seus partidos

e por ideais vigorosos comovidos,
seriam espíritos totalmente redivivos,
na pretensão de dominar os seus sentidos!

A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS V

Assim buscavam reunir mais partidários,
mas, de fato, eram partidos por demais,
os resultados demonstrando, naturais,
que em eleições fossem os votos perdulários...

Pequenos núcleos só valetudinários, (*)
com planos de governo artificiais,
coligações formando, assim no mais,
contrárias mesmo a seus correligionários...
(*) Fracos, sem energia, sem vigor.

E por não conseguirem maioria,
acabaram por formar oligarquia,
assim composta por quaisquer dezenas...

No controle a alternar-se diariamente,
seus humores mudando, tão frequente,
que nunca ali encontrei mulher apenas...

A MULHER DAS DEZ MIL ALMAS VI

Destarte, quando chegou o seu final,
cada alma pensando só em si,
apressuradas saíram por ali,
correndo para a luz em seu fanal.

Pelas narinas os suspiros, afinal,
sem ser possível contê-los mais aqui,
em meu espanto sua diáspora assisti,
sem saber qual amor me foi leal...

E por ai revoam as dez mil,
as almas das mulheres que algum dia
amei em vão, perdidas pelo espaço.

E nesta urna de cinzas cor de anil
sei muito bem que alma alguma havia
que para mim de amor guardasse um traço...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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