quarta-feira, 24 de janeiro de 2018



SOLICITUDE & MAIS -- NOVAS SÉRIES
DE WILLIAM LAGOS -- 2-11/11/2017
        (AFTER DREAM, TÊMPERA ARTHUR                                    BRAGINSKY)

SOLICITUDE -- 02 NOV 17
ESPOSA -- 03 NOV 17
OUSARES -- 04 NOV 17
REBROTAR -- 05 NOV 17
SILÊNCIO AGUDO -- 6 NOV 17
LÁGRIMA DE ARTISTA -- 7 NOV 17
PROPOSIÇÃO -- 8 NOV 17
CERÂMICA -- 9 NOV 17
PULSOS DO MUNDO -- 10 NOV 17
CRONÓTOPO -- 11 NOV 17

SOLICITUDE I -- 24 abril 1979

Ele a queria demais.  Sempre a seu lado
para as menores coisas, fiel e carinhoso,
a enchia de cuidados, prestimoso,
em todos os detalhes desvelado...

E ela adorava que ele fosse assim,
disposto a tudo, terno, tão gentil,
os lábios cheios de desculpas mil
sempre que ela o maltratava... Enfim,

o mais perfeito amante a aborrecia,
queria ter razões por desprezá-lo,
mas era sua presença que a cansava;

era o perdão constante, a dor que via,
a mágoa em seu olhar, sempre a atraiçoá-lo,
rancor de amor, que tanto a sufocava. 

SOLICITUDE II -- 2 NOV 2017

Contudo, não se diga, no entretanto,
que não houvesse amor da parte dela,
pois em seu próprio desgosto se revela
querer um erro que pudesse perdoar tanto

quanto ela via ser perdoada, amor de santo
a quem sequer se acenda alguma vela,
mas que em tudo revelava querer tê-la,
sem ao menos lhe pisar orla do manto...

Queria ao menos escutar algum protesto
que à luz trouxesse o seu ressentimento
e até mesmo lhe indicasse o seu rancor,

exigindo lhe mostrasse um qualquer gesto
como sinal de seu desvalimento,
algo de podre desvendando nesse amor...

SOLICITUDE III

Pendor materno ela mostrava, em ser mulher,
que fosse ele que, às vezes, a ofendesse,
que saísse com os amigos e a esquecesse
ou que tivesse, até mesmo, algum affair,  (*)
(*) Caso de amor extra-conjugal.

sem ocasião para um perdão sequer,
que não fosse tão solícito, que lhe desse
qualquer motivo para que se equilibrasse
a balança do perdão, qual via ser

tão só unilateral, que apenas ela
acabasse por sentir a culpa intensa
e por não ter o que perdoar, se ressentir,

ansiando ser mulher e não estrela,
tampouco estátua que um amor incensa
num pedestal, sem mudança a pressentir. 

SOLICITUDE IV

Ao mesmo tempo, a si não compreendia,
pois esse amor igualmente respondia,
ao invés de seu perdão, querendo orgia,
troca de insultos que no fim a excitasse,

como ao redor de suas amigas escutasse
que justamente era esse descompasse
a eminência parda em que sua raiva achasse:
fazer as pazes na cama ela queria!...

Que ele não fosse assim tão compassivo,
que em tal magnanimidade a insultava:
com que direito insistia em ser melhor?

Buscava assim qualquer pretexto esquivo
para quebrar o padrão que em tédio faz-se,
tal qual no amor só demonstrasse ser pior...

SOLICITUDE V

Até que um dia explodiu em desencanto
e começou a exprobá-lo abertamente:
"Não quero mais que me seja tão clemente,
mas que me insulte, me retribua tanto

"quanto eu sei que o magoo!" E nesse pranto,
por querer e não querer ser impaciente
poder mostrar-se ela mesma complacente,:
mãe gentil, que ao filho envolve em manto...

Pois sentia a execração incompreensível,
sem a si mesma conseguindo confessar
o que encontrava sob  o manto da neblina,

não mais querendo compreensão inexaurível:
"Quero te ver também raivoso a protestar,
não nessa calma que jamais se inclina!"

SOLICITUDE VI

"Eu a percebo qual se fora indiferença,
como se a angústia que te causo fosse inútil
e assim procuro qualquer desculpa fútil
para outra vez te ofender em minha descrença!"

"Pois nem percebes a necessidade intensa
de te arrancar qualquer palavra menos dúctil,
que de algum modo minha tolice seja útil
e não permita assim que eu me convença

"de que mereça esse amor descompassado,
quase um insulto cruel e desumano:
dá-me um motivo também para perdoar!"

Calou-se o homem e afinal, descontrolado,
esbofeteou-a num prazer insano,
para depois em seus braços se lançar!...

ESPOSA I  -- 25/4/79

Eu nada quero desmanchar, entendes?
Prefiro pôr em risco o meu carinho,
do que teu beijo terno, de mansinho,
furtar a quem comprou, se me compreendes...

Tu pertences a outra, por promessa,
e ela te ama, eu sei: maravilhosa
em sua meiguice... é violeta e é rosa
e de magoar-se seu coração não cessa...

Porque te ama tanto ou mais que eu,
toda a sua vida, enfim, te concedeu
se a tua eu busco, assim hei de insultá-la,

somente de assentar-me nesta sala
que não é minha nem tua -- e que ela encheu
desse amor mesmo que a alma lhe avassala.

ESPOSA II -- O3 NOV 17

Quanta vez foi essa frase proferida
na mais sincera das insinceridades,
na mais bondosa de todas as maldades,
doce inocência de quem causa ferida!

Quanta vez foi a vitória conseguida
na gentileza das perversidades,
na complacência das iniquidades,
nessa mentira da verdade malquerida!

Pois se algo existe de veracidade
é essa ânsia de superação,
essa fome de vencer uma rival,

monogamias desculpando a inverdade,
sem pela outra demonstrar-se compaixão,
qual na disputa pelo afeto paternal!...

ESPOSA III

Desde o momento em que afirma não querer
desmanchar laços é que já considerou
e a possibilidade em si já sopesou,
sem ter certeza de obter o quanto quer!...

Ah, jogo antigo da adolescente no mister
que desde a infância aos poucos prosperou,
posta de lado quem primeiro a amou,
mais que sua mãe querendo ser mulher!

Na maior parte, sem dúvida, é inconsciente,
porém sempre há de surgir-lhe algum lampejo
dessa emoção que chamam de ciúme

e quando o pai à sua mãe deixa, inclemente,
nessa traição em que parece malfazejo,
é mais a ela que trai, se à outra rume!...

ESPOSA IV

Naturalmente, em haver poligamia,
algo de igual ocorrerá também,
umas às outras em despeito nesse harém,
em que feroz competição existiria!...

Porque é intrínseca essa ânsia que luzia
no mais profundo do coração de quem
se encontra a competir por qualquer bem,
por coisa séria ou por qualquer folia!

E eu mesmo já escutei, compadecido,
quando qualquer honrou-me com desejo,
a negativa quanto a algo desmanchar,

sem em minha mente sequer haver surgido
dela querer algo mais que um simples beijo,
para depois recolher-me ao próprio lar!...

OUSARES I  (1979?)

foi-me dito de achar-me em grão Perigo,
de tudo pôr a risco e me Perder,
largar quanto já Tinha e de não ter
por Recompensa um grão sequer de trigo...

foi-me dito deixar de me Arriscar
aos beijos triunfais dessa Mulher
que tanto me Negou, quanto mais quer
de meus abrigos sempre me Arrancar...

mas o perigo eu trago é no meu Peito:
não vejo outro castigo que o Direito
de nos seus braços lançar-me no Jazigo

ansiando mais, no instante em que me Afasta
e a carne mesma ao coração Desbasta,
por me furtar do amor ao terno Abrigo. 

OUSARES II -- 4 NOV 17

na maior parte dos homens há o Desejo
de sua semente noutras Várzeas derramar,
por tantos Séculos sem poder-se confirmar
se qualquer Filho resultou-lhe desse beijo.

ou se foi outro que ali deixou o Adejo
que o próprio Óvulo predispôs-se a aceitar.
"tens certeza de que é Meu?" -- a perguntar,
na circunstância Incerta desse ensejo.

podem alguns até mesmo Renegar
esse impulso de deixarem Descendência,
quando algum Útero encontrarem preparado,

mas lá no fundo rebrilha o Acendalhar,
que assim somente terá a Sobrevivência,
após em Átomos ver-se dispersado...

OUSARES III

de seu ventre tem Consciência só a mulher,
que muitas vezes percebe até a Concepção,
após do amor haver Consumação
ou quando alguém por Estupro a retiver.

mas como um homem poderia antes Saber
há meio Século ainda, sem ter real noção
se responsável foi de tal Fecundação
no breve instante que o Coito assim requer?

hoje a coisa mudou... não é mais Assim,
já decifrado que nos foi o Deeneá;
dificilmente uma Mulher conceberá

se algum Cuidado for tomado, enfim;
muita incerteza então se Desfará,
exame simples a lhe pôr um Fim!...

OUSARES IV

contudo, existem Outros, tal qual Eu,
que mesmo tendo a Carne satisfeita,
a Alma não sentem em igual teor sujeita
se a "companheira idônea" não colheu.

mais que do corpo o Par da alma é seu,
quando se sente ali real Colheita
de ideais em gosto que a Esperança aleita,
que Alguém escuta e se sabe que entendeu.

há muitos séculos os Deuses separaram
essas Metades que imaginou Platão,
almas cortadas pelo Meio, na verdade

e para aqueles que Sensíveis mais tornaram
sempre Irrequieto irá bater seu coração,
na vã esperança de Encontrar essa metade...

REBROTAR I --- Wm. Lagos, 28 ABR 80

passou-se o tempo e ela se fez Bela,
acima e além de quanto havia Esperado;
os olhos que a Tristeza havia velado
lavaram-se da Luz, que mais revela

a pureza da alma; e os Sonhos nela
volveram a surgir, num Renovado
e meigo farfalhar, em Zéfiro espelhado
de que o Porvir lhe abrisse uma Janela,

que outra vez luz brilhasse em seu Caminho...
pois elegante se fez, Formosa, Altiva,
disposta à vida cobrar certa Bonança

inda maior que a do anterior Carinho.,,
destrói a morte quanto a Vida nos cultiva,
porém só vive o coração de uma Esperança. 

REBROTAR II  -- 5 NOV 2017

melhor talvez nos fora não querer o que nos Rói,
do que ficar a Mastigar uma esperança,
que sempre chama o Além que não se alcança,
enquanto o Tempo tal Espera sempre mói.

por certo a vida tantas coisas nos Destrói,
mesmo aquelas em que se Pensa ter poupança
e nos impele à Frente, nessa dança,
tal qual na inútil Pretensão de ser herói.

as coisas vêm e vão e as Emoções,
por mais queridas, aos poucos se Esmaecem,
monotonia e Desdém ao peito descem,

alma e carne outras tantas Ilusões...
carpe diem! -- como Anunciavam os antigos, (*)
pois são o Antanho e o Porvir teus inimigos!
(*) Aproveita o Dia Presente. em latim.

REBROTAR III

é conhecida a ilusão de Epimeteu,
melifluamente a convencer Pandora
a abrir o Cofre a ela confiado desde outrora
por seu irmão que tanto sofre, Prometeu.

falso o Titã que à ingênua convenceu
que belas Jóias lá encontraria nessa hora,
na caixa Mágica de singular penhora...
era a Guardiã, mas seu dever não atendeu.

sendo Mulher, pandora era curiosa
e a caixa abriu, a libertar cem Males
que Segurar de novo não alcança!...

pois este Mito nos traz mensagem tenebrosa:
mas por teu Bem... escuta e não te cales!
por ser um Mal ficou ali a esperança!...

REBROTAR IV

claro que, enfim, também essa ela Soltou,
que epimeteu lhe Mentiu compensaria
os demais males e até mesmo os Buscaria,
de novo presos nessa Caixa que estuprou!

naturalmente nenhum deles Recobrou
e tampouco a essa Mulher consolaria,
ficou em Vão a acreditar que voltaria
a Esperança, que a suas mãos nunca voltou.

pois quem espera, para o futuro Adia
qualquer desejo que Realizar queria,
sem se esforçar para tal Alvo conseguir.

e foi assim que essa Dama se fez bela,
já de toda sua esperança a Desistir,
salvo fazer de si sua própria Estrela!...

SILÊNCIO AGUDO I -- 6 NOV 17

Durante a noite, por mais seja silenciosa,
quando o escuto, o silêncio é interrompido,
o coração me explode em seu ruído,
ouço do crânio a circulação mais poderosa.

Auscultar o silêncio em vagarosa
contemplação do som não percebido,
leva a mente a imaginar o não-ouvido,
perturbação da calma preguiçosa.

Não sei se todos sofrem tal processo
de um inconsciente que se pensa suprimido
pelos sonhos que a mente têm nutrido;

subconsciente a se agitar como um possesso,
a me fazer escutar o inexistente
silvo no escuso de minha própria mente.

SILÊNCIO AGUDO II

O mais comum é escutar alguém chamando
pelas duas ou três horas da manhã
(se não estou ainda acordado, já se vê)
de qualquer sonho mais inquieto despertando.

Do mundo onírico o consciente me roubando
qualquer imagem, assim tornada vã,
talvez causada pelo livro que se lê,
talvez forjada por uma voz cantando

visto que tenho mesmo o sonho leve
e deixo um disco a rodar continuamente,
a noite inteira contra barulho externo;

ou então da campainha um guincho breve,
tocado por fantasma ali insistente
para a escada então galgar em passo terno.

SILÊNCIO AGUDO II

Algumas vezes alguma coisa se partiu,
um objeto tombado com estrondo
ao consciente indesejado assim respondo:
logo percebo que nada me atingiu,

somente essa ilusão de espanto frio,
após minutos, o sono já repondo
e novamente no onírico me escondo,
sem retomar, porém, do sonho o fio.

Tão fácil como acordo, já adormeço,
mesmo que, às vezes, saia a procurar
qual objeto foi no chão se espatifar;

ou perturbado pela escada desço,
a casa inteira na busca do miasma,
o esconderijo a procurar do meu fantasma...

SILÊNCIO AGUDO IV

O problema é que o fantasma eu mesmo sou
e como posso para a rua me expulsar?
um copo de água então eu vou tomar
ou então trocar o CD que terminou...

Foi de fato esse silêncio que brotou,
depois da música inteira me brindar
e nada resta senão o balbuciar
do sangue quente que na audição soou.

Retorno, então, aliviado de meus zelos,
após xingar essa íntima consciência
que sem clemência o sonho me desfez...

Ora, ainda que eu tivesse pesadelos!
Mas nunca os tive desde a adolescência,
salvo os das contas a pagar no fim do mês!

LÁGRIMA DE ARTISTA I -- 7 NOV 17

Eu me entristeço, mas as lágrimas teimosas
não jorram nunca para o rosto me lavar.
"Homem não chora!" -- souberam-me ensinar,
desde as primeiras horas desditosas.

Pelas dores não se chora, as mais penosas,
nem por tristeza que me venha a apunhalar,
nem pela morte do amor de mais amar,
nem pelas mortas que nos foram carinhosas.

Não foi só entre nós -- no mundo inteiro
houve a cultura de educar-nos desta forma,
pois o choro é só coisa de mulher

e o costume impôs-se derradeiro,
mais entranhado que uma externa norma,
salvo se algo minha vista faz doer.

LÁGRIMA DE ARTISTA II

Essa agressão único pranto permitido;
algum esguicho de cebola ou de limão
boa desculpa para cada compunção:
algum argueiro sob a pálpebra inserido.

Smoke gets in your eyes -- foi redigido.
"Fumaça nos teus olhos" -- a razão
para chorar a quebra da paixão
ou se a morte de alguém nos tem ferido.

E desta forma, nunca choro por tristeza...
Não obstante, eu choro com frequência,
ao ser tomado por qualquer doce emoção,

quando um coral escuto, com nobreza,
a entoar, com perfeição, cadência
capaz de me pungir o coração.

LÁGRIMA DE ARTISTA III

E também choro quando vejo o resultado
que aos poucos produziu a educação,
quando vejo adolescente com pistão
ou violino, ou tangendo seu teclado.

Especialmente quando sei que foi causado
sobre alguém que não teria essa paixão,
muito menos uma chance ou ocasião
nas condições normais de seu passado.

Quando a menina vejo na dança do balé
ao invés de funk ou rap sem cultura,
porém à arte devotando alma ainda pura;

ou quando escuto alguma marcha, até,
reivindicando ideal ou algum direito,
mesmo em nosso país tão imperfeito!

LÁGRIMA DE ARTISTA IV

Por que motivo chorar, ao ter tristeza,
quando é certo que ela sempre nos virá?
Por que chorar no instante da incerteza
pela desgraça que se sabe chegará?

Chorar consigo tão só pela nobreza
que só um grande esforço nos trará.
Chorar consigo pela fugaz beleza,
sabendo que em breve se dissipará,

porém que pode me empolgar nesse momento,
breve que seja, não mais que o pensamento,
qual da luz crepuscular o doce canto,

mas não chorar pelo que não pode ser,
nem pelo espasmo de cumprir algum dever,
que ao nos pungir, causaria inútil pranto.

LÁGRIMA DE ARTISTA V

Mas que a filha do operário toque o cello
ou o violino quem mãe teve lavadeira
ou que um coral envolvesse a escola inteira
localizada sobre um morro em desmazelo?

Que me comova por rapaz, ao vê-lo
subir ao palco em atuação ligeira
ou empostada a voz, bem altaneira,
ao invés de vício ou crack assim perdê-lo!

Ou que se saiba que um jovem foi treinado,
contra tudo e contra todos na ciência,
desenvolvendo assim a sua potência

perante ambiente ingrato e desvairado?
Ou que a menina que seria prostituta
tornou-se médica, após longa labuta?

LÁGRIMA DE ARTISTA VI

São estes os motivos de meu pranto,
não as mentiras da demagogia,
nem qualquer "vale" que pouco serviria
para arrancá-los de seu triste canto!

Que se difunda a educação em manto
para afastar esse mal que manteria
pela pobreza o povo em letargia,
na marcha lenta para o campo santo!

Isso me faz chorar, sem ter vergonha:
não que a pobreza entre nós exista,
mas que alguém possa dela triunfar

e romper cada barreira a que se exponha,
que em bom exemplo tal vida consista,
para das lágrimas que verto me orgulhar!

PROPOSIÇÃO I -- 8 NOV 17

Se eu fizer o que pretenda e não me importe
por receber qualquer crítica ou elogio,
se não espero que comentem o que crio,
quando minha própria natureza não se entorte,

se eu não deixar que minha mente alguém recorte
na autoridade que lhe empresta um olhar frio
e se puder manifestar todo o meu cio
na branda arte da poesia em que sou forte,

se eu esquecer cada desapontamento
e encarar a sociedade com leniência,
sem dar menção a quem me fira a esmo

e destarte conservar meu julgamento,
sem ter inveja ou ceder-me à complacência,
talvez eu saiba continuar a ser eu mesmo.

PROPOSIÇÃO II

Mas se eu deixar que a mim mesmo influencie
terminarei por me mediocrizar,
as mesmas coisas somente a declarar,
sem que algo original de novo avie.

Este é um problema a partilhar todo o que crie,
que tantas vezes já pude observar,
que como "estilo" vêm a denominar,
quando em seu próprio labirinto alguém se enfie.

Quem já não muda mas cimenta suas veredas,
seu pensar e seu criar anquilosando,
igual cão velho que nada mais aprende.

Assim me esforço para guardar-me dessas quedas,
meu pensamento sempre aprimorando,
sem pensar no que agrada ou que se vende.

PROPOSIÇÃO III

Mas se apresento tal proposta agora
já encaro o que escrevi com desconfiança,
não me veio de Dionyso esta lembrança,
nada de novo defendo nesta hora.

Prossegue a frase a fluir-me, sem demora
e com mim mesmo pratico esta aliança,
as palavras se juntando nesta trança,
mas sem o brilho que cintilava outrora.

Pois de mim mesmo por que devo falar?
Que interesse represento para ti,
quando preencho com medula os esqueletos,

enquanto versos só devia te enviar
como arcabouço vazio do que escrevi
para que o enchas com teus sonhos mais secretos.

CERÂMICA I -- 9 NOV 17

a aranha social me suga os ossos
milhões de patas têm os seus filhotes
seus palpos prontos para novos botes
minha carne a dividir em seus destroços
ao invés de covas me arrastei por poços
de convenções sociais tristes escotes
tantos professam aceitar-me os dotes
quantos conhecem apenas seus esboços
mas fui treinado a regras aceitar
sou servo do respeito à posse alheia
e já me acostumei com meus grilhões
por mais que queira um dia me soltar
levo na alma filamentos dessa teia
grosso casulo que se entranha nos pulmões

CERÂMICA II

já desde a infância somos moldados todos
pelos gestos dos amigos ou dos pais
em nós se atrelam os dons artificiais
repetições rituais de antigos rodos
que em nós se entranham de diversos modos
mesmo ao pensarmos ser originais
sempre restritos por convenções reais
entrelaçados em cem alheios nodos
que reconheço serem necessários
para podermos viver em sociedade
mesmo quando a queremos reformar
que em nós persistem esses funcionários
do tecido social tranquilidade
sem que tudo se venha a destroçar

CERÂMICA III

pois somos vasos moldados em argila
com sorte postos a secar somente ao sol
requentados pela luz desse farol
bem encaixados em perpetua fila
da social mente a nossa mente ancila (*)
amarfanhada assim desde o arrebol
nos interstícios contidos nesse rol
quem se rebela acaba por feri-la
e é então levado até o forno
para a mente rebelde ter queimada
a velha forma assim assegurada
neste casulo aracnídeo apenas morno
submetidos aos palpos dessa aranha
que até na alma o seu ferrão entranha
(*) Serva. criada


PULSOS DO MUNDO I -- 10 NOV 17

O que é a inspiração?  Momento breve
Em que Dionysos nos beija em plena testa,
A nos dar disposição para a sua festa,
Um beijo em potencial, um toque leve.

O preço da obediência então se deve,
Sinal de vassalagem, não de besta
Que se disponha ao jugo, nem molesta
Subserviência que a um tirano ceve.

O que é a inspiração desse momento
Senão o bafejar claro do encanto
Que o mundo inteiro chamaria de ilusão,

A plena mutação do julgamento
Que o belo enxerga no menor recanto
A transformar o monótono em emoção.

Pulsos do Mundo 2

E depois disso, o que é o amor?  Um quente
Sopro nas têmporas em brisa transitória,
Amor a cópula entre a coroa e a glória
Que nos reveste dessa ilusão nascente.

O que é o amor, senão essa aparente
Mastigação de luz que torna a escória
Em vaso de cristal e cria a história
A partir do mais minúsculo incidente.

O que é o amor, então?  Um tal bafejo
Dos lábios da Aphrodite caprichosa
Que nos transporta além da cor do beijo.

Uma guirlanda leve, um tom de rosa
A nos cingir a testa em leve ensejo,
Ousado aceno, devassidão formosa.

Pulsos do Mundo 3

E depois disso, o que é a vida?  A pluma
Que oscila apenas sob o zéfiro encantado,
Esse sopro vazio de um deus alado,
Acasalando a semente com a espuma.

A geração que um breve instante esfuma
Em líquido prazer enclausurado
Em reçagar membranoso e calculado
Para iniciar a senda a que consuma.

Na própria dádiva da vida estando o termo
Da mitose das células, complexa
Vivissecção da mórula num feto,

No fim das contas, nada mais que o espermo- (*)
Grama que se expande na perplexa
Mortalidade que reveste todo o afeto.
(*) Aqui foi empregada a Sinafia.

Pulsos do Mundo 4

E o que é a morte, então?  O fim do verso
Que se expôs nestas rimas do soneto,
Quatorze linhas a mascarar o afeto,
Para depois se extinguir em som reverso,

A inspiração, a vida e o amor converso
Nesse eclodir em busca do completo
Nada mais sendo que do poema um objeto,
Nada mais sendo que seu próprio inverso.

Porque um soneto busca apenas completar-se,
Chega ao final a buscar chave de ouro:
Esse o motivo da sua confecção,

Enquanto a vida só transcorre a aproximar-se
Do derradeiro dia, em que o tesouro
Se extinguirá de um partido coração.

CRONÓTOPO -- 11 NOV 17

As mortes dos famosos, geralmente,
chamam mais atenção que as dos milhares
que partem deste mundo diariamente
deixando para trás bens e azares.

Foi a de um negro que queria, realmente,
tornar-se branco e a tantos operares
submeteu-se, alcançando-o finalmente,
sacrificada sua saúde em tais ousares.

Foi a de uma branca que queria se bronzear
(Queria tornar-se negra, isso é aparente!),
para um câncer obter por resultado.

Até que ponto consegue assim pecar
o ser humano (e o faz constantemente),
contra seu próprio corpo rebelado!

CRONÓTOPO II

Minha memória tenho sempre estimulado
e a conservo sem descanso até agora;
se uma pergunta na minha mente estoura,
rapidamente seu responso é alcançado.

Um vasto acervo eu tenho acumulado
em minhas redes neurais, hora após hora
que até hoje não percebi ter ido embora,
por mais que o tempo me tenha acicatado.

Será que peco nesses mil instantes
em que insisto em repetir mil vezes
quanto gravado era antes em relances?

Mas logo esqueço meus velhos descantes
e quando leio um rascunho após uns meses,
 fogo-fátuo da morte me paira em tais alcances.

CRONÓTOPO  III

Acossado por  miríades de cantos,
nem sei mais onde ponha a indiferença,
minha vida se tornou demais intensa,
sorrisos mortos por meus secos prantos.

É no trabalho que meus dias torno santos,
já repetida mil vezes tal valença,
chega o tempo de mostrar diversa crença,
abandonados meus antigos mantos.

Não mais quero mencionar os meus trabalhos
nem o labor árduo dos versos em minha sorte,
a multidão de acotovelados pensamentos,

mas sim as forjas dos estranhos malhos,
as mil chispas de versos desta morte,
na lava ígnea dos diários sangramentos.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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