domingo, 15 de maio de 2022


 

 

GENTIL PAROXISMO I – 11 MAI 22

(Jane Powell, da época de ouro de Hollywood)

Existe algo dentro de mim que se debate,

igual que um feto esticando pontapés,

amalgamado das mais potentes fés,

às vezes calmo, mas que jamais se abate.

Nem sei se eu mesmo participo do combate

ou me contenho no alcantilado de minhas sés,

as escaramuças só ocorrendo nos sopés,

consigo mesmas digladiando nesse embate.

 

O que tal requer de mim não lhe concedo:

de meus demônios tornei-o o carcereiro,

como um escravo que jamais terá alforria

e conservo o alterno eu em tal degredo,

mais que os cativos o eterno prisioneiro,

guardião das chaves de sua própria tirania.

 

GENTIL PAROXISMO II

 

Contudo, mesmo mantido confinado,

esse meu gremlin ou troll é resistente,

sempre que pode, surge para a frente

e seus anseios tem-me demonstrado;

talvez por isso, nunca sossegado

fica o meu ego dominador da mente,

a sua necessidade é sempre permanente,

requer de mim permanecer-me ao lado.

 

Chego às vezes a pensar que esse sou eu

e que meu superego é o usurpador,

que me leva a conservar-me um doador,

sem primeiro buscar algo de meu,

mas sempre se aflora em benfazejo,

a garantir de qualquer outrem seu desejo.

 

GENTIL PAROXISMO III

 

É meio tarde, segundo me parece,

para a esse algo conceder participação,

talvez causasse até em mim revolução

se demasiada liberdade assim lhe desse.

Pois nem sei se de fato ele padece

ou se é a fonte de toda a inspiração,

de minhas esfinges requerendo produção,

seja qual for a angústia de sua prece.

 

Ou quem sabe? – É tão só o lado direito,

a discutir com meu esquerdo hemisfério,

há muitas décadas assinado um armistício

e nem me inquieto por ver-me sujeito

ou sujeitar ao insistente despautério,

se constante da poesia cumpre o ofício...

 

IMPERFEITA BROTAÇÃO I – 12 MAIO 22

 

Das frestas da calçada sobe-me o calor

das mil pequenas vidas escondidas,

muitas delas facilmente percebidas,

as importantes submissas ao esqualor.

Tombaram para ali juras de amor,

vinte ternuras que não foram compartidas,

trinta esperanças para o além perdidas,

crenças sem fim da vida em seu palor.

 

Ali rastejam os passos dos fantasmas

que tantas vezes cruzaram por aqui

(muitos desses fogos-fátuos foram meus),

as incertezas com que tu mesmo pasmas,

as feridas e as injúrias que assisti

e tanto orgulho que para o chão desceu!

 

IMPERFEITA BROTAÇÃO II

 

Dorme a vaidade nas frestas da calçada:

já mais de um brinco no cimento se partiu,

uma fivela que não mais tremeluziu,

ou quem sabe?  A figurinha abandonada

das coleções que fazia a criançada,

quiçá uma bola de gude que sumiu

ou um picolé partido que caiu,

ou ainda bala deixada aqui melada.

 

Mas também se acumularam os suores,

as lágrimas e tantos líquidos vitais,

excitações dos antigos carnavais,

o sangue impuro dos mais puros amores

e as flatulências de vergonha e de vapores

nestes sendeiros para o nunca mais.

 

IMPERFEITA BROTAÇÃO III

 

No fim das contas, qualquer forma de morte

pode ser como parada cardíaca registrada;

sempre a tristeza, ao ser regurgitada,

será um enfarte fulminante de uma sorte

e cada vez que um sonho bom se aborte,

sem haver tempo para safena aplicada,

é um acidente vascular na luta armada,

ali a mesclar-se com túrgida coorte.

 

Mal imagino qual reserva celular,

quantos desgastes desses mil sapatos

que percorreram inconscientes tijoletas,

pequenas almas contra o solo a hibernar,

magia simpática desses raros fatos

que ainda perscrutam suas mansões secretas.

 

GUILDAS INCOMPLETAS I –13 MAIO 22

 

Encontro em mim desejos aprendizes,

ainda inconclusos, meio independentes,

vontades turvas e pouco concludentes,

que nem ao menos esperam ser felizes.

Se te indagar, suspeito que não dizes

quais os anseios que tens impermanentes,

sequer para ti mesmo transparentes,

talvez nas barras da alma ainda os pises.

 

Mas nossa vida bem raro é independente,

porque forjamos os destinos sem querer,

que o passado escolheu ao bem-prazer,

as consequências de cada antecedente,

que em cada encruzilhada a rota quântica

é abandonada por arbitragem mântrica.

 

GUILDAS INCOMPLETAS II

 

Durante o sono, saio a cumprimentar

os tristes planos e projetos do passado,

cada prurido que não foi coçado,

mas sob a pele acabou por se afogar.

Alguns desejos se fazem ressaltar,

em seu tom dominante e compassado,

cobrindo em manto fugaz e aveludado

essas vontades que não chegam a medrar.

 

Tarefa árdua será enfim classificar

o vasto mar das ilusões perdidas,

quente deserto dos ideais desfeitos;

em escaninhos os ponho a hibernar

ou quem diria? – em estivações compridas,

nos receptáculos imperfeitos de conceitos.

 

GUILDAS INCOMPLETAS III

 

Porém não sinto nestas miúdas linhas

a presença de Dyoniso inspirador,

nem tampouco de um Apollo criador:

estranhas musas me criam ladainhas;

são tão só monotonias de minhas vinhas,

que não produzem mais uvas de sabor,

não me dirigem e nem sou seu diretor,

amareladas já percebo suas gavinhas.

Embora os versos se encaixem facilmente,

são aprendizes a compor palimpsextos,

com a poeira das galáxias ausentes;

mas onde o fogo encontro no presente?

Tão numerosos meus antigos textos,

que até meus dedos se fizeram descontentes.

 

GUILDAS INCOMPLETAS IV

 

Em meu olhar os vejo quais flanelas

a espanar o pó de minhas entranhas;

de cada canto se erguem novas manhas,

sem que consigam passar pelas janelas;

com o tato perfuro minhas costelas

e delas tiro composições estranhas

das agonias e das vontades ganhas,

algumas mesmo que ouso chamar belas.

 

Mas de algum modo, é como começasse

e ainda andasse pela poesia a tropeçar,

sem nela ver qual seja o meu lugar,

tal como a alma inteira se espalhasse

na imensa rede de mágoas ao luar,

sem que do sol qualquer luz a amedalhasse.

 

 

 

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