GENTIL
PAROXISMO I – 11 MAI 22
(Jane
Powell, da época de ouro de Hollywood)
Existe
algo dentro de mim que se debate,
igual
que um feto esticando pontapés,
amalgamado
das mais potentes fés,
às
vezes calmo, mas que jamais se abate.
Nem
sei se eu mesmo participo do combate
ou
me contenho no alcantilado de minhas sés,
as
escaramuças só ocorrendo nos sopés,
consigo
mesmas digladiando nesse embate.
O
que tal requer de mim não lhe concedo:
de
meus demônios tornei-o o carcereiro,
como
um escravo que jamais terá alforria
e
conservo o alterno eu em tal degredo,
mais
que os cativos o eterno prisioneiro,
guardião
das chaves de sua própria tirania.
GENTIL
PAROXISMO II
Contudo,
mesmo mantido confinado,
esse
meu gremlin ou troll é resistente,
sempre
que pode, surge para a frente
e
seus anseios tem-me demonstrado;
talvez
por isso, nunca sossegado
fica
o meu ego dominador da mente,
a
sua necessidade é sempre permanente,
requer
de mim permanecer-me ao lado.
Chego
às vezes a pensar que esse sou eu
e
que meu superego é o usurpador,
que
me leva a conservar-me um doador,
sem
primeiro buscar algo de meu,
mas
sempre se aflora em benfazejo,
a
garantir de qualquer outrem seu desejo.
GENTIL
PAROXISMO III
É
meio tarde, segundo me parece,
para
a esse algo conceder participação,
talvez
causasse até em mim revolução
se
demasiada liberdade assim lhe desse.
Pois
nem sei se de fato ele padece
ou
se é a fonte de toda a inspiração,
de
minhas esfinges requerendo produção,
seja
qual for a angústia de sua prece.
Ou
quem sabe? – É tão só o lado direito,
a
discutir com meu esquerdo hemisfério,
há
muitas décadas assinado um armistício
e
nem me inquieto por ver-me sujeito
ou
sujeitar ao insistente despautério,
se
constante da poesia cumpre o ofício...
IMPERFEITA
BROTAÇÃO I – 12 MAIO 22
Das
frestas da calçada sobe-me o calor
das
mil pequenas vidas escondidas,
muitas
delas facilmente percebidas,
as
importantes submissas ao esqualor.
Tombaram
para ali juras de amor,
vinte
ternuras que não foram compartidas,
trinta
esperanças para o além perdidas,
crenças
sem fim da vida em seu palor.
Ali
rastejam os passos dos fantasmas
que
tantas vezes cruzaram por aqui
(muitos
desses fogos-fátuos foram meus),
as
incertezas com que tu mesmo pasmas,
as
feridas e as injúrias que assisti
e
tanto orgulho que para o chão desceu!
IMPERFEITA
BROTAÇÃO II
Dorme
a vaidade nas frestas da calçada:
já
mais de um brinco no cimento se partiu,
uma
fivela que não mais tremeluziu,
ou
quem sabe? A figurinha abandonada
das
coleções que fazia a criançada,
quiçá
uma bola de gude que sumiu
ou
um picolé partido que caiu,
ou
ainda bala deixada aqui melada.
Mas
também se acumularam os suores,
as
lágrimas e tantos líquidos vitais,
excitações
dos antigos carnavais,
o
sangue impuro dos mais puros amores
e
as flatulências de vergonha e de vapores
nestes
sendeiros para o nunca mais.
IMPERFEITA
BROTAÇÃO III
No
fim das contas, qualquer forma de morte
pode
ser como parada cardíaca registrada;
sempre
a tristeza, ao ser regurgitada,
será
um enfarte fulminante de uma sorte
e
cada vez que um sonho bom se aborte,
sem
haver tempo para safena aplicada,
é
um acidente vascular na luta armada,
ali
a mesclar-se com túrgida coorte.
Mal
imagino qual reserva celular,
quantos
desgastes desses mil sapatos
que
percorreram inconscientes tijoletas,
pequenas
almas contra o solo a hibernar,
magia
simpática desses raros fatos
que
ainda perscrutam suas mansões secretas.
GUILDAS
INCOMPLETAS I –13 MAIO 22
Encontro
em mim desejos aprendizes,
ainda
inconclusos, meio independentes,
vontades
turvas e pouco concludentes,
que
nem ao menos esperam ser felizes.
Se
te indagar, suspeito que não dizes
quais
os anseios que tens impermanentes,
sequer
para ti mesmo transparentes,
talvez
nas barras da alma ainda os pises.
Mas
nossa vida bem raro é independente,
porque
forjamos os destinos sem querer,
que
o passado escolheu ao bem-prazer,
as
consequências de cada antecedente,
que
em cada encruzilhada a rota quântica
é
abandonada por arbitragem mântrica.
GUILDAS
INCOMPLETAS II
Durante
o sono, saio a cumprimentar
os
tristes planos e projetos do passado,
cada
prurido que não foi coçado,
mas
sob a pele acabou por se afogar.
Alguns
desejos se fazem ressaltar,
em
seu tom dominante e compassado,
cobrindo
em manto fugaz e aveludado
essas
vontades que não chegam a medrar.
Tarefa
árdua será enfim classificar
o
vasto mar das ilusões perdidas,
quente
deserto dos ideais desfeitos;
em
escaninhos os ponho a hibernar
ou
quem diria? – em estivações compridas,
nos
receptáculos imperfeitos de conceitos.
GUILDAS
INCOMPLETAS III
Porém
não sinto nestas miúdas linhas
a
presença de Dyoniso inspirador,
nem
tampouco de um Apollo criador:
estranhas
musas me criam ladainhas;
são
tão só monotonias de minhas vinhas,
que
não produzem mais uvas de sabor,
não
me dirigem e nem sou seu diretor,
amareladas
já percebo suas gavinhas.
Embora
os versos se encaixem facilmente,
são
aprendizes a compor palimpsextos,
com
a poeira das galáxias ausentes;
mas
onde o fogo encontro no presente?
Tão
numerosos meus antigos textos,
que
até meus dedos se fizeram descontentes.
GUILDAS
INCOMPLETAS IV
Em
meu olhar os vejo quais flanelas
a
espanar o pó de minhas entranhas;
de
cada canto se erguem novas manhas,
sem
que consigam passar pelas janelas;
com
o tato perfuro minhas costelas
e
delas tiro composições estranhas
das
agonias e das vontades ganhas,
algumas
mesmo que ouso chamar belas.
Mas
de algum modo, é como começasse
e
ainda andasse pela poesia a tropeçar,
sem
nela ver qual seja o meu lugar,
tal
como a alma inteira se espalhasse
na
imensa rede de mágoas ao luar,
sem
que do sol qualquer luz a amedalhasse.
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