DESVÃOS DA ALMA I – 26 AGO 2022
(Vanessa Redgrave)
Já mencionei meus deusinhos pelos cantos,
cada um deles uma parte do que fui,
que a me fitar o seu visar se anui,
quer recobrir-me com meus antigos mantos.
São tristes deuses de fato, em nada santos,
apenas o tempo que desgastei e que me flui,
os dias mortos do antanho que me rui,
estalactites cristalinas de meus prantos.
São o que eu fui, porém não sou agora,
nas camadas do passado congeladas;
nesse monturo de memórias misturadas,
cada deusinho de mim ajuda implora,
tornar à vida ao menos por um dia,
ser extraído dessa lama que o prendia!...
DESVÃOS DA ALMA II
Só lá se encontram, nos desvãos da mente,
almas penadas de mim, pobres vampiros,
que deixei para trás em tantos giros,
erros gemendo calcinadamente.
Reviver tempos perdidos no inconsciente,
somente em sonhos, olhares como tiros,
a lastimar-se em seus últimos respiros,
seu não-viver em falso ideal premente.
Todos perdidos nas geléias do passado,
estão meus outros que não existem mais,
que nem os posso recordar com perfeição,
cada dia e cada mês sendo esmagado
por novas mágoas e novos festivais,
ali dispostos em sedimentação.
DESVÃOS DA ALMA III
Que enfim nada que lembramos é
perfeito,
vastas misturas de memórias
coletivas,
com fragmentos de lembranças
redivivas,
pequenos gólens, que nem sei se
aceito.
Os mais fortes dentre eles nesse
leito
a si agregam as fatias mais
esquivas
de realidades esmagadas mas
furtivas,
à divindade até achar terem direito.
Mas não é só comigo. Estou consciente
das tentativas e as posso
desprezar,
mas sei conseguem dominar
alheias mentes,
pequenos régulos, teu desejo a
dominar,
teu intelecto e teu espírito
impotentes,
se não souberes seus desígnios
dominar!
DESVÃOS DA MORTE I – 27 AGO 22
Não existe verde nas planícies do Hades,
todo o pasto é amarelo ou então vermelho,
não há lagoa a te servir de espelho,
verde não há adonde quer que vades.
Não existe fonte ou ribeiro no qual nades,
nem mesmo o vento a te servir de relho,
cada rosto de sombra é igual parelho
com o de outro vulto quais buréis de frades.
As sombras vagas permeio à solidão
desta planície que os Gregos conceberam;
de quando em vez, alguma estende a mão,
para colher o asfódelo infernal,
todo o alimento que aos mortos concederam,
na eternidade monótona e virtual...
DESVÃOS DA MORTE II
Pouco importa o que na vida realizaram,
desde que aos deuses não tenham ofendido;
aguarda o Tártaro aos que tenham concebido
quaisquer orgulhos com que um deus desafiaram.
Não há Gehenna de Fogo e não queimaram
sequer seus pés no caminho percorrido,
flutuam os vultos pelo solo destituído,
tampouco há frio e nunca enregelaram.
Essa é a planície em que não brilha o Sol,
cresce o asfódelo sem ter clorofila,
talvez o bafo dos mortos o sustente,
enquanto os alimenta em seu crisol;
marcham as sombras sem destino em fila,
sem a esperança de um juízo que as alente.
DESVÃOS DA MORTE III
Fui ensinado que até o Hades foi
Jesus,
realizar a chamada Anasthasia:
quem o merecesse, dali
retiraria,
por pura graça ao Paraíso então
conduz.
Foi no período em que desceu da
cruz
e igual comentam que foi ao
terceiro dia
que para o mundo vivo nos
retornaria,
da madrugada de Domingo em plena
luz!
Mas essa conta sempre achei ser
arbitrária,
das Três da tarde da Sexta-feira
Santa,
às Seis da manhã, mesmo o Sábado
inteiro,
são Trinta e Nove horas em
contagem vária,
e não Setenta e Duas qual nos
canta
a Escritura, a mencionar o dia
terceiro.
DESVÃOS DA MORTE IV
Buscou-se então certa
justificativa,
seriam dias de apenas doze
horas,
o que daria trinta e seis, mas
há demoras
de três horas escapando à conta
esquiva...
O que se esquece, permeio à
narrativa,
são os Campos Elíseos, em quais
escoras
os preferidos dos deuses, sem
desoras,
felizes andam com sua alma
sempre viva...
Sempre achei mal pensada essa
doutrina,
basicamente do tempo a depender,
pois para a Graça não há um tal
invervalo;
mas a Aristóteles libertaram
dessa sina,
no Hades sem o deixar
permanecer:
para o Tomismo seria um forte
abalo!
DESVÃOS DA MORTE V
Pois me parece ser um erro doutrinário
fazer a Graça só no tempo se exercer,
quando se afirma que o Pai tudo pode ver,
sem ordenar um mandamento atrabiliário!
Do julgamento sem haver período vário,
todos reunidos em um só amanhecer;
pensando bem, qual razão devia haver,
senão por um direito já consuetudinário,
que essa revista só se irá realizar
nesse momento do retornar final,
para miríades de gerações no mesmo instante.
Por que o Filho precisaria então baixar
ao reinado de Hades, em seu luto divinal,
de um deus pagão o enfrentamento dominante?
DESVÃOS DA MORTE VI
Se formos o Credo Niceno consultar,
da fé o resumo ali pormenorizado,
em ponto algum nele vemos registrado
que nesse Sábado Cristo fosse trabalhar!
Só no chamado Apostólico se irá encontrar,
a descida ao Hades, o que ali foi determinado
pelo papa Silvestre, algo mais interpolado
para Constantino, o Imperador se contrariar!
Muito mais justo, caso esse tempo houvesse,
que Jesus contas fosse dar de Sua missão
ao Deus Supremo e em Seu trono se assentar,
pois sendo o próprio Deus, como Ele desce
a um lugar só concebido pela imaginação
desses Helenos em sua mente singular?
DESVÃOS DO POEMA I – 28 agosto
2022
Eu vou tomar água fervente entre
minhas mãos
e a enrolar, igual se faz
bolinho,
para servir a meus amigos com
carinho,
sal e açúcar a temperar tais
ilusões...
Por que não posso aplicar estas
noções,
se dessa água desviei o caminho,
minhas mãos a criar ouro em seu
cadinho,
suor e sangue a servir como
loções?...
Em algum plano quiçá não sejam
ilusões,
tudo possível no quântico
universo,
que mal algum me provoque água
fervente!
Tenho direito a moldar mil
sensações,
sendo um poeta a descrever um
mundo inverso,
no surreal capcioso de minha
mente!
DESVÃOS DO POEMA II
Há muitos anos, os Romanos afirmaram:
Poetas pictoribusque licet
omnia!
E desse modo, em minhas noites de insônia,
os meus instintos sempre me inspiraram.
Nem o frio e nem calor me machucaram,
posso comer limalha e com amônia
encher minha taça e transpor até a Polônia,
totalmente, para os mares que a banharam.
Criar um oceano de ventos finalmente,
fazer a chuva cintilar como coriscos,
soprar os raios consoante o meu desejo
e como posso tornar tudo permanente,
eu gravarei a tua vida em finos discos
e somente para mim ouvir teu beijo!...
DESVÃOS DO POEMA III
Igual que a água fervente, a tua saliva
em mel se tornará entre meus dentes,
teus beijos a tornar-se tão frequentes
que alegremente apenas deles viva...
Igual que o vento que pelo amor se esquiva,
respirarei cada sonho que ainda sentes,
meu mundo desperto a ser nesse entrementes,
no qual minha carne se torna inteira tua cativa!
Tudo é lícito aos poestas e pintores,
mesmo perder-se nos versos que escreveram,
mesmo tomar-se a si mesmos como tela,
a noite e o dia a se tornar os meus amores,
só o impossível a criar que conceberam
de mnha deusa envelhecida e intensamente bela!
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