Duodecaneto de William
Lagos (20 fev 11)
NEQUÍCIA I
Um beija-flor perdeu-se
no telheiro
laranja e azul da garagem
de minha casa.
Batia assim o par de asas
de gaze,
sem descobrir o caminho
mais certeiro.
Fica a garagem ao lado do
banheiro
e eu contemplava esse
ruflar de asa
minúscula e veloz, a
ponto quase
de invisível ser, de tão
ligeiro!...
A garagem se dispõe entre
paredes;
ao fundo, há um portão
que dá acesso
à entrada de serviço e,
do outro lado,
é inteiramente
aberta... E fácil medes
a confusão do passarinho,
em seu processo
de alcançar o alimento assim
burlado...
NEQUÍCIA II
Existem muitas flores no
jardim
e beija-flores já ali
fizeram ninho;
é gostoso de ver o
passarinho,
qual helicóptero
natural, assim
a pairar sobre corolas
de jasmim,
ou bela-emília, hibisco,
rosmaninho,
para beber um pouco, de
mansinho,
do néctar que o embriaga
como gim...
Contudo, alguns entram
pela porta,
a despertar a cupidez
dos gatos,
(cujo esforço os leva,
às vezes, a alcançar)
presos na luz que o
forro assim recorte,
na claraboia de vidros
mais compactos,
mas que um tornado já
pôde rebentar!
NEQUÍCIA III
O telheiro que protege
essa garagem
é recoberto por chapas
marteladas,
de acrílico, em armações
arredondadas,
que revestem, bicolores
em roupagem.
Veio a saraiva, certa
vez, feito mensagem
da cólera dos
deuses... E a pancadas,
rachou as chapas que ali
foram aplicadas:
abriu o telheiro e em
cacos fez passagem...
Contudo, o toldo dos
carros, protegido
por esta linha de
frente, só de leve
sofreu os danos, em
pequenos arranhões
e o granizo se foi,
ainda impelido,
arrebanhado por um vento
breve,
sem nos causar mais do
que escoriações...
NEQUÍCIA IV
Já se vê que os assaltos
da maldade
foram assim facilmente
repelidos;
em outros pontos, bem
pior foram sofridos
os efeitos cruéis da
tempestade!
No cemitério, a nequícia,
de verdade,
provocou danos reais e
incontidos,
os antigos ciprestes
combalidos,
tombaram às dezenas, a
sua idade
revelando na fraqueza das
raízes...
Mas alguns, impelidos
para o alto,
invadiram as tranquilas
sepulturas,
sem provocar nos
inquilinos crises...
Mas outros foram lançadas
sobre o asfalto,
amarfanhando algumas
viaturas...
NEQUÍCIA V
Também houve ocasião em
que chuva forte
foi rebentar do
cemitério os muros;
muitos ossos se
espalharam, em monturos,
pobres e ricos
partilhando a mesma sorte...
Depois não houve
inundação do mesmo porte,
tanto quanto me
recorde. Só obscuros
relatos dos mais velhos
(ou perjuros),
descrevendo ocasiões em
que houve morte.
Teria então jorrado
tanta água
que o campo santo inteiro
se inundou;
a enchente foi subindo e
até chegou
à metade desta
quadra... Mas que frágua
provocariam os trovões
nessa ocasião!
Nem me parece natural em
minha região!...
NEQUÍCIA VI
O que é mais certo que
ocorra por aqui
são as secas... A
nequícia mais frequente,
que nos assola até
periodicamente,
com nossos rios sendo
estreitos já de si.
E a pior seca até parece
que assisti
há vinte anos ou
mais. Calor pungente,
torneiras secas...
E mesmo muita gente
ir tomar banho em Dom
Pedrito eu vi!...
Durante as noites,
poucas gotas nos chegavam
e eu me dispunha, ao pé
da caixa d’água,
para colhê-las em
garrafas, quanto dava...
Algumas vezes, até meus
filhos ajudavam;
época boa para olvidar a
mágoa,
que dos olhos nem as
lágrimas brotavam!...
NEQUÍCIA VII
Cavaram poços, com
resultado vário:
os mais ricos abriram
artesianos;
outros chegaram a enfiar
os canos,
mas toparam com massa de
calcário
que aqui chamam de tosca,
atrabiliário
material, que aos
esforços dos humanos
resiste bem e chega a
causar danos
nas brocas mais potentes
do inventário...
E ainda se afirma que,
por pior nequícia,
por baixo dessa tosca há
uma pedreira,
melhor frustrando
perfuração certeira...
Surge o granito em sua
final malícia,
rasgando as mãos e os
calos se arrebentam,
e as gotas de água em
nada nos contentam...
NEQUÍCIA VIII
Mas a nequícia pior é
essa causada
pela maldade e
má-vontade humanas,
nem tanto que nos matem
em suas ganas,
mas por palavra malévola
ou impensada
dessa gente que prefere
derrubada
a alegria alheia...
Os muquiranas
que prosperam em
corrupção ou nas insanas
calúnias densas de
pérfida cilada...
Mais que a saraiva,
destroem os telhados;
mais que a enxurrada,
reputações afogam;
mais do que a seca,
causam morte e fome,
nesse rancor que têm a
afortunados,
porejando rios de ódio,
nos quais vogam
e enfim naufragam na
maldade que os consome.
NEQUÍCIA IX
Mas tu também és fonte
de nequícia
e dentro dela a ti mesmo
te envenenas;
pelo rancor, a pouco e
pouco te condenas
a te afogar no próprio
rio de tua malícia,
quando trocas o pudor
por impudicícia,
quando exageras o ferrão
das próprias penas,
quando uma vida de
penúria encenas
ou quando trocas
sensatez por estultícia.
Ou simplesmente se te
deixas seduzir
pela opinião dos outros
e descuras,
no interior de ti mesmo
as fontes puras;
ou quando vais a ti
mesmo coagir,
para esquecer a
persecução de teu ideal
em simples troca por
conforto material...
NEQUÍCIA X
Também já tive de
nequícia meus momentos,
em muitas ocasiões, por
covardia,
quando deixei de fazer
quanto queria,
só por temor de alheios
julgamentos;
criado eu fui entre
terrores agourentos,
sem confiança em mim
mesmo e sem valia,
a vítima natural, que
assim fazia
o fanfarrão da classe em
mil eventos...
E por temor, muita coisa
não tentei
e por temor, da vitória
me impedi
e por temor, rasguei meu
coração;
e por temer, nem sequer
eu te beijei
e por temer, eu muito
mais sofri,
com vergonha de roubar
meu próprio pão!
NEQUÍCIA XI
Por todo o mal que os
outros me causaram,
meu pai, colegas, o
geral da sociedade,
assumo toda a culpa, na
verdade,
pois não cortei os nós
com que me ataram...
Foram os anos, tão só,
que transformaram
esse círculo vicioso da
maldade,
quebrando os elos de tal
perversidade
na medida em que meus
músculos incharam.
Quebrei os meus grilhões
dentro da mente,
mas ainda tenho do que
me envergonhar
e me surpreende fazer
esta confissão...
Será a nequícia ainda
remanescente
que me leva, deste modo,
a me acusar
ou é uma forma de
alcançar libertação?
NEQUÍCIA XII
Mas a quem mais poderia
interessar
essa nequícia que em mim
mesmo despejei?
Os vícios e a maldade
que aceitei,
só por saber que os
demais os iam louvar?
E se hoje, pessoalmente,
despojei
esse coágulo, na alma a
negregar,
não foi na espera de
alguém se me apiadar.
mas a mim mesmo tão só
justifiquei.
Porque não sou só
eu. Sei que também
introduziram em ti
outras nequícias
ou te obrigaram em ti
mesmo as cultivar.
E quem sabe, ao revelar
o mal que vem
dentro de mim, por efeito
de malícias,
te inspire um modo de
das tuas te livrar!...
William
Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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