MAMÃE TERRA (Mat Zemlya)
(Folclore russo, recolhido e atualizado por Mary Catherine
Koroloff [M. K. Hobson],
A lenda original se referia ao tzar Ivan Grozny [o Terrível
ou o Admirável],
versão poética William Lagos, 21 dez
14)
MAMÃE TERRA I – Primeira Parte
(Na ilustração, Nastassiya Kinski)
Três soldados andavam pela neve
no ano de Mil Novecentos e Vinte
e Dois,
durante a guerra civil, terrível
como não houve nem antes, nem
depois;
terrível mais o inverno e, muito
em breve,
morreriam todos três da dura fome
que suas entranhas a mastigar
consome,
no frio tornada ainda mais
terrível.
Haviam
recebido apenas as rações
para sete
dias e duas semanas já passavam:
a sua
missão era encontrar o Inferno!
Algumas
pílulas de energia também levavam,
mas para o
Cabo Pudovkin más impressões
causavam,
tornando os homens violentos
e
incapazes de mostrar bons sentimentos:
não as
tomara, apesar do frio do inverno...
Dois dos
soldados, porém, que o acompanhavam,
as suas
haviam consumido inteiramente
e ao
Camarada Gavorkian tinham matado
para
tomar-lhe as que guardava finalmente.
No outro
dia, os dois o interrogaram
e aoTovaritch Ivanov a sua latinha (*)
ele
entregara, com as pílulas que continha,
que pelo
solo se haviam espalhado
(*)
Camarada
enquanto com o Tovaritch Blotski ele lutava,
para depois as engolirem com a
neve;
já era episódio há quatro dias
transcorrido...
A dormir Pudovkin mal se atreve,
pois da maldade dos outros
desconfiava
e os ameaçara com a ira de
Tchernov,
seu comandante, cujo temor ainda
os comove,
mas disciplina, certamente,
haviam perdido.
MAMÃE TERRA II
Pudovkin, agachado, descansava,
por sob os galhos das árvores
despidas,
com os braços bem cruzados contra
o peito,
indiferente às discussões
renhidas,
com que Blotski a Ivanov
reprovava;
segundo ele, o outro errara na
leitura
da bússola e os levara àquela
agrura,
mas Ivanov garantia haver defeito
causado
pelo frio. Pudovkin só pensava
no antigo
campo de seu avô Nikolai
e nas
histórias que o velho lhe contara...
Por
possuir granja, como Kulak vai
ser
fuzilado pela milícia que o acusava,
do grave
crime de ser um latifundiário;
mas
trabalhara igual que um operário
na fértil
terra negra que ele amara...
Pudovkin
bastante lamentara
não ter
podido vir e defendê-lo,
mas era
longe o colégio de Kiev,
em que
estudara com o maior zelo
e ao
Partido há tempos se ligara...
Mas se
pudesse vir, que serviria?
Aquela
gente também o fuzilaria,
sem
discutir, mediante uma ordem breve...
Com toda a fome que agora ele
sentia
e que enganava com casca de
vidoeiro,
Pudovkin até sentia falta das
rações,
duras, sem gosto, mas que
aqueciam ligeiro,
que algum produto químico
garantia
dentro do invólucro de folha de
estanho,
que normalmente lhe davam enjoo
tamanho
e que trocava nas primeiras
ocasiões...
MAMÃE TERRA III
Eram uma invenção do Comandante
Tchernov, que cursara
universidade
e como engenheiro químico se
formara,
coisas criando com regularidade,
novos artigos, conforme achava
interessante:
cobertas de borracha, em vez de
cobertores,
botas gigantes com amortecedores
–
porém que a marcha a ninguém
facilitara...
As botas e
as cobertas somente os afastavam
do contato
amigo com sua velha terra
e até
mesmo a branca neve derretiam,
mas depois
se endurecia e, nessa guerra,
muitos de
seus camaradas congelavam...
Não podiam
parar em um só lugar,
constantemente
precisavam de mudar
e dessa
forma, muito mal dormiam...
Mas
Tchernov os queria mesmo aborrecidos,
para
abafar os seus melhores sentimentos
e quando
entravam numa aldeia imperial,
segundo
classificava, em tais momentos,
fazia
matarem a todos os vencidos,
juntar as
provisões e então queimar
a aldeia
inteira, para nada mais sobrar
aos
adversários, a quem culpava por tal mal.
Mas agora, haviam as pílulas
terminado
e lhes restava tão só ferocidade,
mas precisava completar a sua
missão
e ao ver que Blotski, por
animalidade,
espancava a Ivanov, num prazer
descontrolado,
usando um galho que acabara de
quebrar,
Pudovkin então lembrou-se de
tocar
A sua zhaleika, que esculpira com paixão. (*)
(*) Pequena flauta de madeira.
MAMÃE TERRA IV
Já outras vezes aos soldados
acalmara,
tocando a flauta em suave
melodia;
logo Blotski seus golpes
suspendeu;
Ivanov, ainda agachado, igual
ouvia...
Graças a Lênin! – Pudovkin pensara.
Vamos ao menos os três morrer em paz...
A música a alma eslava satisfaz;
seguiu tocando e então se
surpreendeu.
Surgira
ante eles uma velha mulher,
bastante
gorda ou então, bem enroupada;
somente
podia lhe ver as mãos e a face,
em um tom
negro profundo revelada;
nas mãos o
sal e o pão que se requer,
khleba a oferecer aos visitantes,
mais o sali para descansar os viajantes,
se bem
cansaço em seu todo se estampasse...
Vestida
estava igual que camponesa:
um
sarafano vermelho a recobria,
um cinto
negro da mais pura lã,
uma kopashnik de pérolas vestia, (*)
o pão e o
sal sobre toalha de nobreza...
Ivanov e
Blotski sobre ela se jogaram,
com mãos
em garra o pão preto disputaram...
“Bem-vindos
ao Inferno!” – disse ela, nesse afã.
(*) Estola
bordada com joias ou bijuterias.
Os três a seguiram sob a luz da
lua,
as árvores ao redor em
esqueletos,
por uma estrada de terra bem
batida,
com a neve recoberta por
gravetos...
Mas quem mantinha aquela senda nua?
Todo o gado fora morto nessas guerras,
Gamos e renas haviam fugido para as serras,
Mas estava a trilha claramente definida!...
MAMÃE TERRA V
“São meus filhos que conservam
esta estrada,”
disse a velha. E assim os três a acompanharam;
ficou Pudovkin um pouco para
trás;
alguns ramos sob seus dedos se
dobraram,
em outros pontos deixou casca
marcada:
queria saber o caminho de
retorno!...
Talvez o Inferno fosse até um
pouco morno,
mas lá ficar não pretendia o bom
rapaz...
Toparam
finalmente com árvore gigantesca,
a maior
que Pudovkin já encontrara:
tinha a
envergadura de um navio de guerra
e sua
ramada contra o céu já se espalhara;
só umas
estrelas entre os galhos a vista pesca,
crescendo
livre sobre o cume de um outeiro,
mais longe
ainda a parecer o paradeiro
daqueles
ramos que se alteavam como serra...
Sob o outeiro,
abria-se caverna:
igual a
piche surgia o seu negror,
mais larga
que os portões do Kremlin;
indagou
Blotski, tomado de pavor:
“Será
segura essa escuridão interna?”
Pudovkin,
com desdém, lhe respondeu:
“O que é
seguro, quando a luz do céu
se abre para
um túnel negro assim...?”
“Tchernov nos mandou achar o
Inferno
e aqui estamos nós... Vamos entrar.”
“Será que existe aqui qualquer
comida?”
“Quem sabe, camarada, se ajoelha
e vai rezar?
Não quer perder o Paraíso
eterno?...”
“Rezar é proibido. Eu sou um comunista!”
Blotski encarou a escuridão que
avista:
“O Inferno dos padres eu levo de
vencida!”
MAMÃE TERRA VI
A velha os encarou com
impaciência:
“Querem ou não chegar até o
Inferno?”
“Você é Baba Makosh?” – indagou Pudovkin.
“Vejo que me conhece, subalterno...”
“Mamãe Papoula – semente de
potência...”
“Seu avô Nikolai foi meu amigo;
não o lamente – agora está
comigo...
Mas esses dois não pensam bem de
mim...”
“Desculpe,
Mamãe, mas não são povo de aldeia...”
“Mesmo
assim, muito sangue me plantaram...
Recorde,
filho, em toda morte há alegria...”
Assim os
quatro na caverna penetraram;
Pudovkin,
na retaguarda, ainda receia,
com a faca
a riscar cada parede;
não
pretendia permanecer naquela rede,
um tanto
inquieto com o que a velha lhe dizia...
Desceram
por um túnel muito escuro,
no fim do
qual, finalmente, havia luz,
desembocando
em uma bela aldeia,
com isbás pintadas de um vermelho que reluz
(*)
ou azul
profundo, o ar límpido e puro;
porém não
via qualquer pessoa ou animal...
Foram
levados até o ponto mais central,
onde, em
geral, a igreja é que se alteia...
(*)
Cabanas de madeira.
Não estava frio e nem quente
demais
e os três soldados caminhavam
facilmente;
mas o edifício no lugar da igreja
deixou inquieto Pudovkin
novamente:
era formado pelas raízes naturais
da enorme árvore que se erguia lá
fora;
tarde demais, porém, para ir
embora,
por mais que um templo a deus
antigo ali esteja!
MAMÃE TERRA VII
Lembrou-se bem das histórias que
contara
o seu avô e sentiu um calafrio...
“Esta é a casa em que mora meu marido,
o Deus do Inverno, meu esposo
para o frio,
que doze filhos comigo um dia
gerara...”
À carne assada o ar dentro
recendia,
a queijo, peras e cereais, como
sentia
nos celeiros que antes havia
conhecido...
Mas ao
redor de si havia riqueza
qual nunca
vira, desde o início da guerra!
Em ouro e
joias você decerto pensaria,
mas bem
diversa a que o salão encerra...
Mais de
mil sacos de trigo... Em sua magreza,
Pudovkin
com cem presuntos se encantava,
carne
salgada e batatas contemplava,
beterrabas
e nabos gordos ainda via!...
Nos
últimos anos, só couves consumira,
em
ensopados, com uma colher de aveia
e a vodka habitual de sua ração...
Até de
olhar o alimento se arreceia:
era comida
que ele nunca produzira!
E se o acusassem de roubar do
povo...?
Mas se
perdia, no encanto do renovo,
com um
respeito que era quase religião!
Mas Ivanov e Blotski não sentiam
o menor escrúpulo perante a
situação;
os dois saltaram sobre um vasto
queijo,
mordendo a cera, sem a menor
hesitação;
enormes nacos desprendiam e
comiam,
até caírem ambos, estufados,
num estupor de estômagos
recheados...
Mas Pudovkin se guardou de tal
ensejo...
MAMÃE TERRA VIII
Já ia indagar alguma coisa à boa
velha,
que bem depressa lhe pediu
silêncio.
“Meus filhos chegam,” disse
simplesmente.
Abriram-se as portas, com fragor
imenso
e doze criaturas contemplou de
esguelha,
negras de piche, visíveis e
invisíveis,
gamos e homens, figuras
incompreensíveis,
que não podia fitar
abertamente...
Não
entendia se caminhavam ou troteavam
e seu
olhar se perdia através delas;
contudo,
falavam russo como gente,
não a
linguagem dos palácios ou favelas,
mas as
palavras que no campo ainda usavam...
Algumas
delas, nem os popes conheciam. (*)
Bem no
centro do salão já se reuniam
e no meio
deles se ergueu figura diferente...
(*) Padres
da Igreja Ortodoxa.
Era um
gigante, vestido em grande luxo,
em prata e
verde, mantos numerosos...
Só depois
percebeu que era a sua pele!
Vastas
camadas de tegumentos escamosos,
na testa
chifres, como um velho bruxo...
Era o Deus Veles!... Seu coração quase parou.
O Deus do
Inverno, que o comércio dominou
e o gado
ampara, embora o mundo gele!...
Mamãe Makosh em seu ombro lhe tocou
e os dois, prontamente, se
ajoelharam;
Ivanov e Blotski no chão
permaneceram,
quais ratos gordos, dormindo se embolaram...
Veles em trono esmaltado se
assentou
e os doze filhos trouxeram-lhe
presentes,
que eram aceitos, com acenos
imponentes
e um a um para os cantos se
moveram...
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