sábado, 20 de agosto de 2022


 

 

REAÇÕES I – 14 AGO 2022

(Sarah Bernhardt, teatro clássico)

Um idiota qualquer quis comparar

Os seus cabelos a um esfregão de aço!

Cabelos brancos, mas de mimoso traço:

Quem direito lhe deu de assim falar?

Por un amigo de infância se tratar,

Nem por isso que se porte qual madraço,

Somente a mim pertence tal espaço

E certamente não me canso de a elogiar.

Falou-me ela que não foi nada romântico,

Mas o romantismo deve ser apenas meu;

Esse infeliz assim se intrometeu

No que devia ser meu exclusivo cântico!

E logo quem nessa tolice peca:

Tem a cabeça qual uma espuma seca!

 

REAÇÕES II

Um outro idiota, num dia de verão,

Quando cobriu seus cabelos com chapéu,

Chamou-a de bruxa, numa ofensa ao léu,

Sem ter qualquer motivo e sem razão!

Tais desabonos nos vêm e já se vão,

Mas de ofendê-la jamais eu fui o réu,

Não há quem queira mais sob este céu,

É a feiticeira do meu coração!

Reconheço que um certo tempo houve,

Em que fazia as lâmpadas estourar

E até a certos aparelhos mal causou,

Mas sobre isso há um poder que louve:

Soube minha própria mente acariciar,

No amor irrequieto com que me conquistou...

 

REAÇÕES III

Os anos se passaram e no entretanto

Ainda a vejo deitada nua no sofá:

Melhor lembrança para mim não há

Que esta esquiva memória que ainda canto.

A sua própria nudez era seu manto,

Envolta assim num véu de Xangrilá,

O Paraíso Achado no seu corpo está,

Mulher completa e senhora de meu pranto,

Que não costumo chorar pela tristeza,

Antes por coisas que me permeiem de doçura

E assim desfilo os instantes do passado,

Não porque se me escaparam com presteza

Mas por lembrança que é santa e quase pura,

Nesse imenso turbilhão do relembrado!

DEVOÇÕES I – 15 AGO 2022

Ela sempre é mostrada bem coberta,

Somente pintam o seu rosto e suas mãos;

Não se menciona tivesse alguns irmãos,

Nem que se apresentasse em hora incerta;

Contudo a veste deveria ter aberta,

A fim de amamentar nos peitos sãos

Esse criança sem ter desejos vãos,

Porém que recebeu de mente alerta.

Poucos de fato na ocasião reconheceram

De que forma originou-se o nascimento,

Julgaram antes que fosse algo normal;

Somente aos poucos é que alguns o perceberam,

Justamente por ser impossível esse evento,

Que só por fé se reconhece virginal.

 

DEVOÇÕES II

Mas quando o Filho a Jerusalém subiu,

Bendizeram os peitos que O amamentaram:

“Bendito o ventre e o corpo que o gestaram,

Bendita seja a vagina em que surgiu!”

Esse canal macio que o conduziu

Quando no mundo dons Seus depositaram,

Muito mais que uma criança O revelaram,

Foi o Verbo feito carne que se viu!

Não obstante, dos homens a malícia,

Com a qual corromperam o sacerdócio,

Sentiu temor de um parto assim sagrado,

Vendo no corpo da mulher a impudicícia,

Nas litanias a disfarçar seu ócio

E o dom viril que a eles foi negado!...

 

DEVOÇÕES III

Mas que tremenda coisa é a Encarnação!

Não que virginal pudesse ser o nascimento:

Vezes frequentes um semelhante evento

Entre os antigos mesmerizou a imaginação.

Mas o milagre dessa arcana concepção

Era um mistério de carnal conhecimento,

De origem física manava esse portento,

Marduk ou Zeus ordenavam tal paixão!

Mas essa mulher foi tomada por Palavra,

Não por carne ou por sêmen, mas por som

E nas suas trompas tocou ária semelhante;

Na partitura dessa sidérea lavra,

Deus criou o Verbo e viu que era bom,

Mais do que a luz que forjara em prévio instante.

 

DEVOÇÕES IV

Ela é a mãe, mas não pode ser mulher!...

Tomás de Aquino, em sua misoginia,

Se contradiz no divino que anuncia,

Pois não tem ventre, nem umbigo tem sequer.

Tão grande a mágoa que seu temor requer,

Que qualquer forma corporal lhe negaria

E pelos séculos permanece essa agoria,

De uma virgem, mas que mãe deverá ser.

E no entretanto, esse vulto sobre a cruz

É apresentado quase em total nudez,

Por ser a epítome do humano masculino!

Mesmo de tanga, esculpem a Jesus,

Nos crucifixos que em toda parte vês,

Com certa gana de partilhar igual destino!

CANÇÕES I – 16 AGO 22

Falou Gardel sobre a mulher vencida...

Teriam então validade as Argentinas?

Formam suas peles tais camadas finas

Que se desgastam ao longo de sua vida?

Será têm bula com sua data requerida,

Limitando em poucos anos as suas sinas.

Duas ou três décadas após serem meninas,

Marcado o tempo da mulher ser consumida?

Gardel, é claro, se referia à derrota,

A essa perda lamentável da esperança,

Enquanto as ondas de novas gerações

Trazem a graça que nela já se embota;

Que se renova, talvez, numa criança,

Mas quantas passam ser dar luz a embriões?

 

CANÇÕES II

Já é lugar comum se mencionar

A luz difusa de qualquer bordel,

As rugas a disfarçar em tom de mel,

No meretrício mais triste e singular;

Gardel, à sua maneira de cantar,

Nos compassos de um tango mais rebel,

Quase sempre em conclusão de fel,

Com tal mulher queria simpatizar,

Rechiflao en su tristeza, lamentando

Que tão veloz se passasse a juventude

E já os homens não a buscassem mais,

Nesses versos de amargura contemplando

Igual destino que a todos nos ilude

E que ninguém pode iludir jamais!

 

CANÇÕES III

Porém percebo, através da simpatia,

Certo desprezo por aquela que baseou

A sua vida em festas, que tantos conquistou,

Enquanto de seu próprio sangue se nutria,

Que certamente a menarca lhe traria

Essa atenção para o que lhe determinou

A Natureza, que de fato a destinou,

Para trazer novos humanos, aos quais cria;

Mas após a menopausa, ela igualmente,

Descarta essa mulher, por transitória

Capacidade de manter reprodução,

Só lhe demosntra um pequeno dom clemente,

Sua descendência e sua família um ostensório

E a validade de mais longa duração...

 

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