quarta-feira, 10 de agosto de 2022


 

MAMÃE TERRA 2ª PARTE (FINAL)

(Na ilustração, Constance Talmadge, 

atriz do cinema mudo)

MAMÃE TERRA IX

 

Cada um deles com alguns sacos saía

e Pudovkin indagou o que faziam.

“Levam a mercadores encomendas

em troca das oferendas que traziam.

Dez vezes o preço cada um deles cobraria...”

“Mas o povo tem fome, ele não sabe?”

“Todos os animais lutam pelo que lhes cabe,

morrem muitos, outros seguem em suas sendas...”

 

“Mas não são animais, são seres humanos...”

“As criaturas vivas gozam de felicidade

enquanto são vivas; em seu morrer, porém,

dão a outras a vida em sua bondade;

felicidade há assim todos os anos...”

Veles em longos pergaminhos anotava,

enquanto os filhos depressa despachava...

Logo a velhinha adormeceu também...

 

Só depois disso, ele notou Pudovkin...

“Há muito tempo que hóspedes não temos.”

Ergueu-se diante dele, um ser imenso,

com quatro metros ou mais em seus extremos,

sem contar os chifres ou a longa causa assim.

Bateu com ela no chão, em grande estrondo;

Blotski e Ivanov de pé se foram pondo...

“Quem é você?” – indagou Blotski, já tenso.

 

“Será possível que vocês já me esqueceram?

Estão perdidos a adorar o Cristo Branco?”

“Não esquecemos,” falou rápido Pudovkin.

“Sois o grande dragão deste barranco,

o Deus do Inverno, que os mercadores adoraram.”

“Deuses não há no mundo pós-Revolução!”

disse Ivanov.  “E tampouco algum dragão,”

falou Blotski, que era atrevido até o fim...

 

MAMÃE TERRA X

 

Veles os fitou, com grande intensidade

e os dois de imediato se encolheram.

“Vocês adoram o Deus Lênin e o Deus Marx.”

Fez um sinal e os dois adormeceram.

“Já esqueceram o seu Cristo, na verdade,

contudo a senda encontraram até o Inferno...

Passam os deuses e permanece o Inverno:

cubro de branco suas cidades e seus parques...”

 

“Agora acorde, mulher, quero jantar!”

A Mãe Papoula se ergueu, rapidamente,

e foi aos fundos, decerto até a cozinha,

trazendo logo um grande assado quente

e uma mesa, nos próprios pés a caminhar...

O Inverno engoliu tudo, com prazer,

a Pudovkin nem migalha a oferecer,

que até da mão o esticar ele continha...

 

E com a ponta da cauda ele espancava

a pobre velha, para que andasse mais depressa.

Pudovkin a interceder por ela se atreveu.

“Este é meu reino, filho, não se esqueça!

Seu avô a suas macieiras não podava?

Agora toque a sua zhaleika para mim;

o deus dos músicos esqueceu que sou assim?”

Pudovkin, muito depressa, obedeceu...

 

Depois que o Inverno sentiu-se satisfeito

e escutara sua música à vontade,

quis seu hóspede faminto interrogar:

“A que vieram aqui?  Fale a verdade!...”

“Nosso Comandante achou ter o direito

a alguma coisa que à nossa Causa ajudará

e que somente por aqui encontrará...”

“E qual é a Causa que pretendem implantar?

 

MAMÃE TERRA XI

 

“Nossa Causa é a justiça da Revolução,

para os egoístas e autoritários derrubar,

a fim de dar a todos parte igual:

toda a riqueza redistribuir após juntar!”

“Mas que há de novo em tal redistribuição?

Eu redistribuo a riqueza todo o tempo...”

“O senhor comercia, desculpe o atrevimento,

nós redistribuiremos, de uma forma natural...”

 

“Isso é impossível,” afirmou o Inverno.

“Será como plantar trigo sem ter sol;

o que a terra me dá, eu dou à Terra;

o camponês trabalha desde o arrebol

e dá seu corpo, após o descanso eterno;

com a Terra eternamente comerciamos;

nada nos dá, se a ela nada damos;

mesmo seu sangue, vocês dão durante a guerra.”

 

“O que queremos, com todo o respeito,

é dar a cada um o quanto precisa

e tomar dele só o que pode produzir...”

“Cada boi come a erva da terra em que pisa;

por que o boi parado poderia ter direito

ao mesmo pasto que o boi trabalhador?”

“Porém falamos de homens, meu senhor:

Todos iguais com igual direito a se nutrir...”

 

“De forma alguma!” – protestou Veles Inverno.

“Os homens são, muito ao contrário, diferentes.

Há grandes homens e uma vasta maioria

que não vale mais do que ratos descontentes,

como seus dois companheiros em meu Inferno!”

Ivanov e Blotski, em grandes ratos transformados,

dormiam no chão, a roncar, bem abraçados...

“Cansei, Mamãe!... Dê ao flautista hospedaria!”

 

MAMÃE TERRA XII

 

A velha o conduziu, muito cansada,

até uma alcova, à beira do salão

e lhe indicou uma cama e cobertores;

sentindo a fome a lhe roer o coração,

deu-lhe um pacote, Folha de Flandres estanhada: (*)

“Meus filhos o encontraram no outro inverno;

você fez bem em não comer nada no Inferno,

coma a ração de seu Tchernov sem temores...”

(*) Folha metálica de estanho, hoje substituída por alumínio.

 

Logo a fome se foi e um vasto calor

percorreu-lhe todo o corpo de repente.

A velha o acariciou.  “Você recorda...

Seu avô me tratou sempre fielmente.

Não lamente sua morte.  Seu amor

está comigo e me traz felicidade;

nunca se esqueça de que só eu sou a verdade;

logo virá a primavera, que me acorda...”

 

Tocou-lhe a testa, com grande carinho:

“Vocês hoje têm estranhos pensamentos...”

“O que pensamos é acabar com a opressão

dos pobres por esses ricos sem lamentos...”

“Vocês inverteram todo o meu caminho:

são os pobres que aos ricos mais oprimem...”

“Como assim?”  “São os que mais consomem.

Os ricos guardam para sua manutenção...”

 

Pudovkin já não mais podia entender,

porém lembrou de que seu avô guardava

a produção de toda a aldeia nos celeiros

e nos invernos, pouco a pouco, ele a entregava;

e os mercadores de longe iam trazer...

Se não houvesse alguém para guardar,

nem existisse quem quisesse comerciar...

E adormeceu, entre sonhos lisonjeiros...

 

MAMÃE TERRA XIII

 

Quando acordou, já no meio da manhã,

ouviu o barulho de tanques e soldados;

a tropa inteira o negro túnel já cruzara.

Mamãe Papoula, com passos apressados,

lhes trazia o pão e o sal, em grande afã;

Tchernov, com um tapa, virou a sua bandeja.

“Não somos tontos em comer o que se enseja

aqui no Inferno, que a estes dois tolos transformara!”

 

Mandou agarrar a Blotski e a Ivanov,

enquanto tirava uma seringa de um estojo,

aplicando em cada um deles injeção...

“Viraram ratos!  Vocês dois só me dão nojo!”

De novo humanos, cada um deles se move.

“Vou os dois guardar para meu julgamento;

em breve teremos um bom fuzilamento...

Vimos um morto... E do flautista, a situação?”

 

“Aqui, Camarada!” – falou Pudovkin.

“Pelo visto, recusou-lhes a comida...

E foi vocês que nos marcou o caminho?”

“Sim, Comandante!  Marquei a senda devida,

a sua missão eu cumpri até o fim...”

“E onde se esconde, afinal, essa serpente?

Se não a matar, para mim é indiferente,

foi a você que vim buscar, Velha do Ancinho!”

 

Pudovkin se encolheu com o tratamento:

Era o que os popes para a Mãe Terra usavam!

Mas Mat Zyra Zemlya em nada protestou

(Mamãe Terra Úmida, os muzhiks a chamavam) (*)

e Tchernov a segurou, com atrevimento...

Só então a caverna iniciou a tremer

e cem cobras começaram a aparecer:

do chão e do teto cada uma ali chegou!...

(*) Camponeses.

 

MAMÃE TERRA XIV

 

E se reuniram no centro do salão,

compondo novamente o Deus Inverno,

com quatro metros de altura a se mostrar,

escamas verdes e prata em seu externo,

os soldados já a recuar, em confusão.

Mas Tchernov, ao contrário, lhe mostrou

um amuleto, que do capote retirou,

com o símbolo do raio a rebrilhar!...

 

“Você ousa mostrar aqui esse sinal!?

Justamente no interior do meu salão?...”

“Eu não apenas trago este amuleto,

estou, de fato, sob a sua proteção

e vim buscar a sua esposa natural.”

“Ela é minha durante todo o inverno;

há entre nós antigo pacto eterno,

na primavera a entregarei a seu afeto!”

 

“Primavera ou outono, pouco importa,

eu vou levá-la para fazer verão;

o ano inteiro irá crescer o alimento

e nunca mais virá a neve em profusão,

pois seu poder o meu amuleto corta!...”

“Perum não tem qualquer poder aqui;

sob as raízes do mundo me escondi:

só a entregarei ao chegar o seu momento!”

 

“Hoje as coisas mudaram, deus antigo!

Vou criar a vida sem o seu consentimento

e não poderá impedir-me mais agora!...

Não percebeu o meu procedimento:

forte herbicida eu carreguei comigo

e ao redor das raízes derramamos

da árvore mágica que no alto encontramos,

que já estará bem morta, sem demora!...”

 

MAMÃE TERRA XV

 

Tchernov tirou do bolso uma bateria

que havia inventado, em formato de maçã,

e num instante, apertou ali um botão:

Veles Inverno encolheu-se como rã.

“Que fez comigo?”  Sob a descarga ele gemia

e logo em seguida começou a desmanchar,

cem serpentes no assoalho a agonizar.

“Mulher!” – ainda gritou, em confusão.

 

Mas Mat Zemlya dormia... E Veles se desfez,

enquanto o grande salão apodrecia...

Tchernov acordou a Mamãe Terra

e logo com ela na alcova se escondia.

A soldadesca inquieta, por sua vez,

ao verem as paredes a rachar,

mas tinham ordens e precisavam de esperar:

Tchernov os comandava nessa guerra!...

 

Após algumas horas, retornaram

Tchernov e uma linda moça nua,

verde na pele, nos olhos e cabelos,

que de energia e força então estua.

Todos os olhos se arregalaram,

mas ela chegou até Pudovkin.

“O que ele fez, para deixá-la assim?”

“Nada importa!  Retomei os meus desvelos...”

 

“Ele me diz que posso ficar com meu Perum

o ano inteiro e assim será sempre verão!”

“Mas quando, então, a senhora irá dormir?”

“Ele me disse que não terei mais precisão:

Verão e Inverno serão apenas um

e as colheitas nos kolkhozes crescerão (*)

eternamente e com sangue as regarão,

para que a Terra sempre possa se nutrir!”

(*) Granjas coletivas.

 

MAMÃE TERRA XVI

 

Tchernov então mandou aos três prender:

“Começaremos com um breve julgamento;

para à Terra fornecer rega inicial,

precisaremos de um bom fuzilamento!”

“Não!” – disse a Terra – “primeiro dança vou ter

E meu flautista irá tocar a melodia!

Sem essa dança, a primavera não se cria!”

“Dance, então!” – disse Tchernov, afinal...

 

“Então toque, volynshtchik, de uma vez!” (*)

E Pudovkin então pôs-se a tocar

a melodia suave do degelo,

as notas simples do primeiro despertar;

mas ao poucos, métrica mais rápida fez

e a Primavera batia os pés no chão,

vasto tremor a percorrer todo o salão,

dançando a jovem no ritmo mais belo...

(*) Flautista

 

Mas quanto mais depressa ela dançava,

surgindo no ar aroma a trigo e flores,

o largo teto começou a desabar,

os soldados a gritar, em seus temores.

Tchernov em vão para a interromper gritava,

Pudovkin em ainda mais rápida melodia

e logo o salão totalmente derruía,

Tchernov e a tropa inteira a sepultar!...

 

Pudovkin acordou-se num relvado,

por sob a sombra de árvores em flor;

numa tontura, ergueu-se lentamente...

Mas quanto tempo transcorreu daquele horror?

Não enxergava a colina em qualquer lado.

Assim terminam esses sonhos de conquista...

Ora, Tchernov nunca foi um bom comunista!

A um deus antigo ele adorava, realmente!...

 

EPÍLOGO

 

Começou a caminhar, sem ter destino:

vestia-se agora como um simples camponês

e a jovem nua apareceu-lhe ao lado...

“Seus companheiros morreram, como vês,

mas a você eu salvei, meu pequenino...

Vá para longe e fuja desta guerra,

procure o leste, a Rússia é vasta terra,

na primavera você será abençoado...”

 

“De fato, Veles se encontra satisfeito:

tem muitos espíritos para seus escravos...”

“Quer dizer, então, que não morreu?”

“Claro que não.  Os velhos deuses eslavos

à eterna vida conservam seu direito...

Mas este ano eu terei longa primavera

e um longo verão também me espera:

Lá nos céus, já meu Perum me recebeu...”

 

“Contudo, um dia, voltará o Deus Inverno;

sempre haverá esta alternativa,

para que a Terra trabalhe e adormeça;

santo é o Inverno; também santo é o Verão.

Vá para o leste, onde o labor é eterno

e lá achará boa terra em que plantar...”

Partiu dançando. Igual que o avô, a hei de desposar,

pensou Pudovkin, no breve dia em que eu pereça!...

 

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