GRANEL I
[20-8-1979]
(Lillian Roth, atriz do cinema mudo)
A
flama ardente que de amor sentia,
De tanto crepitar-se,
em labareda,
Brotou centelhas verdes
como seda,
No
teu olhar de espanto e nostalgia.
A
flama ardente fez-se em melodia,
Teu coração tocou de
ideal discreto,
Mui destramente, em
gesto bem secreto,
Até
fazer brilhar toda a harmonia...
Qual
brilho quente, em teu olhar luzia,
Mas recoberta, como em
almotolia,
De
uma camada fina de receio...
E ao
sorver deste azeite no teu seio,
Bebi todo o temor que
ali jazia,
Plantando em troca amor no teu gorjeio.
GRANEL II
Que
pensarão de mim as mulheres que não tive?
As que possuir eu quis,
mas nunca me quiseram,
Aquelas que queriam a
mim e não disseram
E
aquelas que quiseram, enquanto eu me contive?
Que
pensarão de mim, essas mulheres todas
Que sentiram pousado em
seus ombros, o adejo,
O desejo incontido,
brutal, desse meu beijo,
Condor alcandorado e alçado em novas bodas...?
Que
pensarão de mim, bem fundo aos corações?
Que tive medo ou antes,
fugi às emoções
Bem
fundo registradas no âmago do peito...?
Que
pensarão de mim, às vezes, no seu leito,
Num devaneio azul
bordado de ilusões
Ou
antes num desprezo do mais total despeito...?
GRANEL III
Há sonhos e há sonhos... Os
primeiros
Nos chegam cada noite, sem memória,
Somente vívidos enquanto dura a glória,
Porém se esquecem os maus e os
lisonjeiros.
Os segundos... São os sonhos
corriqueiros,
Compartilhados por toda a humana história,
Sonhos sublimes, sonhos mais de escória,
São esses sonhos que nos deixam
derradeiros.
Mas sonhos, sonhos são... Ou
viram planos,
Ou permanecem no plano da ilusão,
Pois muita vez os planos são
quimeras...
Só se conservam os planos dos humanos
Se projetados forem com razão,
Mesmo que durem só por poucas eras...
GRANEL IV
Já os meus sonhos... Tendem a
esvair-se.
São devorados por essa ânsia inútil
De tudo registrar, valioso ou fútil,
Nas costas de cartões a destruir-se
Depois que tenham tempo de imiscuir-se
Na digital incerteza do inconsútil,
Retransmitidos num esforço inútil,
De alcançar corações onde homiziar-se.
Que não importa que um sonho eu
realize,
Desde que em mentes alheias se introduza,
Que então o possam firmemente
realizar.
Alguém que em chão mais sólido assim
pise
E o sonho em plano e num projeto cruza,
Para que o possa enfim concretizar...
GRANEL V – 07 julho 1980
Talvez não
entendam quando afirmo isto,
Mas não guardo ciúme das ideias,
Nem mesmo das mais perfeitas epopeias
Que na mente me
surgem e em que eu insisto.
O que eu almejo
é que o sonho seja visto,
Não importa por quem, por que plateias
E que as imagens, em longas alcateias,
Sejam impostas
às mentes em que as enquisto.
Quanto a meu
nome... A glória da autoria,
O louvor dos aplausos e galeras,
A garantia da
fama... lauréis e recompensas
Realmente não
importam. O que eu queria
É que estes versos transpassassem as esferas,
As mil demoras
das esperas tensas...
GRANEL VI
Sinto de fato
que meu nome não importa,
Nem que jamais venha a ser reconhecido,
Basta que saibam aqueles com quem lido
E que conhecem
o ardor de minha retorta.
Mas que as
ideias e os ideais matéria morta
Não se tornem, porque isso é imerecido,
Bem mais que eu valho é o meu verso desnutrido,
Só lhes lastimo
uma esquecida sorte.
Pois que outros
me plagiem tais ideias
E que as façam difundir pelo universo!
Que as imprimam
sob outra assinatura!
Mas que corram
por aí as odisseias,
Dessa maré de inesgotável verso
De que minha
pena é apenas tessitura!
GRANEL VII – 3 agosto 2022
De forma igual,
pouco importam os conceitos
Que outros façam de mim.
Integridade
Sempre mostrei em meu trato da verdade,
Inda que os
gestos fossem algures imperfeitos.
Sobre desejos,
não há autorais direitos:
Eles saltam por aí e a humanidade
É recoberta por tal teia.
Opacidade
Bem pouco se
refere a tais sujeitos.
Quantos
fantasmas projetei de mim
Sobre fantasmas que tão só eu via!
Quantos
fantasmas eu nem cheguei a ver!
Quantas
suspeitas projetaram seu porfim
Nessa farândula que em nuvem pressentia
E que por isso
nunca vim a ter!...
GRANEL VIII
Porém desejos
são sementes em granel,
São milhares de raízes sem terreiro,
Estames em pólen no vento derradeiro
E que se
arraigam nas mentes como gel!
São muito mais
que o feromônio cor de mel,
Que nas narinas penetra sorrateiro,
Não a visão de um mundéu assim certeiro,
São milhares de
grãos sem ter farnel.
E como as
plantas espalham louros pós,
Que nos pulmões penetram em primavera,
Assim vivemos
entre nuvens de desejo
E nem sequer
percebemos os seus nós,
Enrodilhados nesse museu de cera
Que mumifica
cada abortado beijo!
GRANEL IX
Porém quando
meus olhos entrefecho
E então contemplo pelas frestas das pestanas,
Ali percebo essas figuras quase insanas,
Configuradas
nos fulgores de seu sexo.
Mil desejos são
sem óvulo e sem nexo,
Sem sêmen derramado, sem roldanas
Que os possam erguer, com que te irmanas
Em seu sonar
melífluo como um plectro.
Mas que andam
nas paredes apoiadas
E percorrem as calçadas pisoteadas,
Essas figuras
de brumas perseguidas,
Lençóis de
vento à luz crepuscular,
Tristezas inconscientes e sem lar,
Que nem sequer
se sabem esquecidas...
GRANEL X
Assim vagueiam
em sua inconsútil rede
Os desejos de homens por mulheres,
Os desejos de mulheres por haveres,
Sem lar, sem
vida, em permanente sede.
E somente o meu
olhar é quem os mede,
Pois meus próprios desejos têm misteres,
Abandonados na pressão dos quefazeres
E sua visão
meio súplice me pede.
Mas se envolvem
nesse mesmo esvoaçar,
Redemoinhos sementais, brisas fogosas,
Zéfiros
fúlgidos que nada podem fecundar,
Desencadeados
em novos estertores,
A se mesclar em quimeras portentosas,
Ansiosas por
amar sem ter amores.
GRANEL XI
Às vezes deles
me vem a inspiração,
Ao me envolverem incauto em seu abraço,
Introduzidos no pulmão, no róseo espaço
De cada
brônquio, fugindo à expiração.
Então surge lá
do fundo uma canção,
Nessa visão fugaz de um brando traço,
Ou brotam versos de um fulgor mais baço,
Sem que se
saiba sequer qual sua razão.
Ou então ardem
em peito apaixonado,
Como a flecha do deusinho, inesperada,
Por qualquer
rosto humano contemplado.
E aquela sombra
de sementes contraídas
Quase usufrui dessa emoção airada,
Nas cicatrizes
de suas múltiplas feridas.
GRANEL XII
Mas eu que
penso tais visões reconhecer,
Me deixo abeberar, sou penetrado,
Sou possuído em seu consumo demorado,
Deixo que as
brumas me venham percorrer.
O brilho quente
do passado a preencher
Cada instante macio e desvairado
E escorre o verso sob a pena, descuidado,
Sem que sua
origem mesmo eu possa perceber.
Assim correm
tais poemas a granel,
Poemas das sementes dos fantasmas,
Das mulheres
que não foram nem geradas
E dos homens
embrulhados no xairel (*)
De mil ejaculações que em sonhos pasmas
Numa colheita
de rimas assombradas.
(*) Pano que recobre as
costas de cavalos.
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