sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023


 

 

HORAS ATRELADAS I – 10 FEVEREIRO 2003

(Farrah Fawcett e Cher)

 

Vejo minhas horas passando de vestido,

de salto alto, bem emperiquitadas,

caras ao alto, de batom e maquiadas,

da mais recente moda o orgulho tido,

bolsas de griffe, um ombro desvestido,

outras com alças, meio desmazeladas,

dos sutiãs a aparecer, desembragadas,

satisfeitas em seu andar descontraído.

 

Como são tolas essas hors do meu dia!

Umas às outras querendo superar,

já que a hora só se veste para as horas,

não para o homem que curioso espia,

enquanto vê a sua vida se escoar

e as horas todas partem sem demora!

 

HORAS ATRELADAS II – 10 fevereiro 2023

 

Passam as horas por mim dia após dia

e inutilmente as busco acariciar,

mas calmamente se vão desnovelar,

como se um gato as cortasse em cirurgia,

parte a hora atrás de hora em correria,

mais do que eu ela corre ao terminar,

no seu instante final busco-a agarrar,

mas já é uma hora nova que surgia.

 

Iguais mulheres sedutoras de vaidade,

as horas me contemplam de passagem,

pelo canto de seus olhos a burlar;

por mais ousado seja eu em ansiedade,

elas se escoam como água de barragem,

quando a comporta se permite devassar.

 

HORAS ATRELADAS III

 

Contudo as horas se dão inteiramente,

em um ato de amor ilimitado,

nada me negam de seu corpo oureado,

porém se entregam de forma impermanente

e então se esgotam de maneira permanente,

de cada hora o pleno beijo desgastado,

cedem seu ventre por instante aferventado

e então se vão, sem fervor mais persistente.

 

Mas enquanto aqui estão, são amorosas,

bem mais do que me foi qualquer amante,

que só me deram, afinal, parte de si,

com sua higiene e cuidados caprichosas,

trocas de roupa a renovar constante,

cortes do tempo que com elas convivi.

 

HORAS ATRELADAS IV

 

Porém as horas não conversam com amigas

e nem sequer adquirem celular,

não vão às compras indumentária a renovar,

nem se aprimoram na rede das intrigas;

são horas nuas, sem usar meias nem ligas,

cada minuto em que perduram a me ofertar,

mesmo que em sono eu as vá desperdiçar,

mesmo que a vida as transforme em inimigas.

 

Mas como a eclusa aberta em algum canal,

as horas sobem a um nível superior

durante os fiéis minutos que me afagam

e depois descem para algum local,

sem que eu possa saber qual o valor,

do que roubaram de mim quando se apagam.

 

TATUAGENS ATRELADAS I – 11 fevereiro 2003

 

Eu vi a borboleta aprisionada

no ombro belo de tola mulher,

tatuada a borboleta, que sequer

pode mover as asas, condenada

apenas a viver meio afogueada

pelo suor e calor desse mister,

de ser adorno, só porque a outra quer

ter um enfeite nessa ilusão tatuada!

 

Como dever suspirar a borboleta,

só ao mover de outro corpo condenada,

dessa que a aprisionou em desatino!

Inconsciente de se tornar prisão secreta,

que a mantenha num grilhão aprisionada,

como tatuagens nos ombros do destino!...

 

TATUAGENS ATRELADAS II – 11 fevereiro 2023

 

Talvez seja porque já sou velho demais

e tatuagens fossem só coisas de piratas

ou de marinheiros ou as marcas ingratas

dos condenados em presídios federais.

Em mulheres não eram coisas naturais,

esse talhos de facas caricatas,

sobre a epiderme demarcando datas,

como em fazendas as marcas de animais.

 

Mesmo em homens, são coisa de selvagens,

características de tribos primitivas,

estranha a moda de tão estranho adorno,

relho marcado em medíocres personagens,

sem melhor forma de afirmações esquivas,

quais cicatrizes de incêndios sem retorno.

 

TATUAGENS ATRELADAS III

 

Essas marcas na carne das mulheres

honestamente apenas me repelem,

que algum desejo sobre mim congelem,

por que se mutilar em tais misteres?

Será que julgam que com esses quefazeres

alguns parceiros para o amor apelem,

ou que suas individualidades então selem,

como se fossem anúncios de prazeres?

 

É claro que os costumes... acostumam.

Com tal frequência a se encontrar tatuagens,

muitos homens até pensam que apreciam

esses espectros que sobre elas se esfumam,

suas exigências de sacrificiais visagens,

mas na verdade só com eles se viciam.

 

TATUAGENS ATRELADAS IV

 

De certo modo a pobre borboleta,

sobre a epiderme assim agrilhoada,

alguma vida tem da derme transportada,

cruzando os poros em dotação secreta.

Mas sendo assim, percebe-se incompleta,

pois nada era, antes de ser tatuada,

mas agora que se encontra assim atuada,

não pode alçar-se para a luz dileta.

 

Só o suficiente para ser consciente

de que não passa de um borrão de tinta,

seu movimento tão só o do muscular,

um tanto viva, sem se tornar vivente,

sem entre flores esvoaçar em finta,

nascida morta e sem poder voar.

 

AURORAS ATRELADAS I – 12 FEVEREIRO 2003

 

Morna é a Aurora quando chega o estio,

vem aquecer-nos contra a negra chama

que crepita para o oeste como lama,

na qual o sol pareça estar com frio;

eu contemplo tal Aurora e então me rio,

onde os dedos cor-de-rosa dessa dama,

são filetes de luz só que derrama,

entremedos de negro, fio a fio...

 

Depois a noite aos poucos vai recuando,

as estrelas assopra, uma a uma,

algumas bruxuleiam, mas retornam,

enquanto a Aurora, num impulso, vai silvando,

de toda a luz de prata então se esfuma,

dourados brincos com que os céus adornam.

 

AURORAS ATRELADAS II – 12 fevereiro 2023

 

Mais fria é a Aurora, após a longa madrugada

dos dias do inverno em flébil desconsolo,

nossa expectativa a dispensar em dolo,

pálido o sol que então brilha na alvorada

e que se aquece com medo, um quase nada,

durante as horas que correm em rebolo,

um sol meio sub-aquático, com seu motivo tolo,

no qual a Aurora treme, um tanto enregelada.

 

Mas é apenas o mais breve esse dilúculo,

logo se expande, mas sem nos dar calor,

o Sol tirita e busca o seu crepúsculo,

que ao invés de aquecer, suga da terra

qualquer resquício mais cálido em vigor

e logo se esconde para além da serra.

 

AURORAS ATRELADAS III

 

Eu pessoalmente amo mais o frio

e quando me surge a Aurora de verão

já me vou encolhendo de antemão,

sou atormentado por qualquer estio;

durante o inverno, exerço pleno brio

e até me sinto de melhor coloração,

para o Sol dolente estendo braço e mão,

no corpo e cérebro a me crescer em cio.

 

Enquanto no verão me escondo mais,

evitando de expor pernas e braços;

já o fazia, mesmo antes de saber

de suas ações e seu queimor fatais,

da radiação que calcinaria meus traços,

toda a minha pele a torturar com seu poder.

 

AURORAS ATRELADAS IV

 

Diante da Aurora de outono me prosterno,

ou reverente ante o fulgor primaveril,

nada de estranho, afinal, é bem viril

amar os períodos em que o calor é terno,

que parta a Aurora do estio a seu inferno,

que não me queime aguda em seu buril,

que não dilacere minha pele de esmeril,

porém que o frio não me pareça eterno.

 

E que provoca espanto, se busco achar virtude

no termo médio, aqui e em tudo o mais?

Essa Aurora de verão nunca me ilude,

triste a mostrar-me seu efeito derradeiro,

se me dissolve quase por inteiro,

chegado a Sol a seus pináculos fatais!

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