SOL
FILIGRANADO I –19 FEV 2023
(Elizabeth Schwartzkopf, cantora lírica contemporânea)
relativo
é o Sol em seu longo desgaste,
fogueira
imensa de intensa morbidez,
teus
olhos ergues a cada vez que o vês,
só
não permitas que as retinas te desbaste!
cada
segundo que o astro-rei de si afaste
a
própria carne em doida insensatez,
quanto
gastou de sua fluida solidez,
quanto
de luz no vasto cosmo arraste!
e
na corona percebem-se lampejos,
quais
filigranas de ouro e de laranja,
para
onde lança seus multifários beijos?
a
nós só atingem seus vulcanosos objetos,
como
minúscula parte de sua franja,
sempre
quentes, intangíveis e inconcretos.
SOL
FILIGRANADO II
mil
vezes já apanhei raios de sol,
fechando
rápido a concha de minha mão,
para
a abrir somente sobre o coração,
apunhalando-o
com a luz desse farol,
mas
necessário é veloz ser o caracol,
o
Sol é arisco em sua perpetuação,
embora
sempre envie maior provisão,
não
se conserva inscrito em qualquer rol
e
quanto eu tente pegar de sua luxúria,
só
uma fração sobre minha mão recai,
mínima
parte do que sobre a Terra desce,
prantos
de magma para minha lamúria:
a
mão se abre e a luz que antes atrai
pinga
na terra em solitária prece.
SOL
FILIGRANADO III
mas
disso que apanhei a Terra inteira
somente
bebe a mínima fração,
para
onde irá essa imensa erupção,
enquanto
o Sol percorre sua ladeira?
não
saberia dizer, a Terra é giradeira,
contudo
o Sol só nos mostra uma feição,
mas
é redondo em sua prodigalização,
a
seu redor esparze a vasta esteira
e
mesmo a maioria dos planetas
apenas
capta só faíscas do tesouro,
que
o sistema solar em seu vasto cultivar
bem
mais atinge as pedrinhas mais secretas,
que
giram tontas para seu desdouro
para
si mesmas sequer um átimo a guardar...
FELICIDADE
FILIGRANADA I – 20 FEVEREIRO 2023
o
que eu quero é do amor sentir um canto,
mesmo
que muda se faça a melodia;
o
que eu quero é o amor que antes queria,
mesmo
que seja filigranado em pranto;
o
que eu quero é esse verso que descanto,
mesmo
que morto e que ninguém leria;
o
que eu quero é a dissonante sinfonia,
mesmo
em cacófato de refinado manto;
o
que eu quero é sentir meu interior,
mesmo
que seja oco e até vazio;
o
que eu quero é recusar-me ao exterior,
que
assim suspeito me queira devorar;
o
que eu quero é a saga do arrepio,
que
minha nuca acaricia ao maltratar.
FELICIDADE
FILIGRANADA II
felicidade
só a mim mesmo proveria,
Sören
Kirkegaard assim a contrariar;
felicidade
é coisa inútil de buscar,
elasmobrânquio
que jamais eu pescaria:
talvez
buscasse o teu amor em nostalgia,
lançando
a rede da estopa milenar
das
gerações em que te fui pescar,
na
filigrana em que tua alma voltaria;
não
que esperasse de ti alcançar felicidade,
nenhum
de nós a ela tem direito,
o
ser feliz só ao coração está sujeito,
feliz
apenas em sua casta intimidade,
enquanto
pelas veias corre os dedos,
sem
conseguir decifrar os seus segredos.
FELICIDADE
FILIGRANADA III
toda
noção de ser feliz filigranada,
mais
uma marca d’água transparente,
um
dia impressa nos círculos da mente,
em
escaninho perdido a ser deixada;
no
próprio amor a mente ensimesmada,
filtrando
o amor externo transcendente,
rede a esvaziar de seu valor subjacente,
felicidade
temporária e inesperada;
mas
algo existe igual ao mito antigo,
que
nos impele do amor a buscar canto,
que
nem nos chegue no tempo do jazigo;
felicidade
que se encontra em meigo pranto,
compartilhado
com outro choro amigo,
por
entre os furos de um desgastado manto.
PRIMAVERA
FILIGRANADA I – 21 FEV 23
cada
um de nós corre em busca de si mesmo
e
não descansa sem um dia se encontrar;
só
então descobre que está sempre a se escapar,
que
corre em vão pelos túneis do ninguém;
todo
o esforço de alcançar tentado a esmo,
para
o porvir inteiramente a escorregar,
inútil
gancho do presente a disparar,
que
já prendeu-se no antanho do também;
escorregadio
o eu deste presente,
numa
esteira onipresente a deslizar,
sem
um controle para tal velocidade;
só
por instante a se alcançar pressente,
mas
tanto de nós já se encontra a naufragar,
nessa
incumbência de toda a humanidade!
PRIMAVERA
FILIGRANADA II
a
primavera sobre nós é diluída,
nunca
podemos seus dias costurar,
nenhum
instante da filigrana a desfiar,
pelo
estio constantemente perseguida;
chega
o verão com sua fúria incontida,
cada
um de nós em si sempre a atrelar,
os
dias se amontoam sem parar,
numa
pirâmide de lama derruída;
chega
o outono a nos levar por diante:
inutilmente
a nós tentamos agarrar,
a
nossa imagem veloz a despencar,
seus
dedos a roçar em cada instante,
a
imagem nova cada mão a atravessar,
que
já outra imagem a substitui constante.
PRIMAVERA
FILIGRANADA III
não
nos quedamos no monturo do passado
e
muito menos na variância do futuro,
só
o presente em breve instante é puro,
tudo
o que fomos para trás deixado
e
o que seremos jamais sendo encontrado,
a
lamparina a espevitar no escuro,
o
reflexo do vento sobre um muro,
fantasmagórico
o coração crucificado,
nenhuma
imagem a encontrar real sossego
na
corrida incessante dessa esteira,
podemos
apenas unir-nos num abraço,
salto
na treva de um destino cego,
só
por vislumbre o presente nos inteira
e
a primavera já se foi sem deixar traço.
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