sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023


 

 

SOL FILIGRANADO I –19 FEV 2023

(Elizabeth Schwartzkopf, cantora lírica contemporânea)

 

relativo é o Sol em seu longo desgaste,

fogueira imensa de intensa morbidez,

teus olhos ergues a cada vez que o vês,

só não permitas que as retinas te desbaste!

cada segundo que o astro-rei de si afaste

a própria carne em doida insensatez,

quanto gastou de sua fluida solidez,

quanto de luz no vasto cosmo arraste!

e na corona percebem-se lampejos,

quais filigranas de ouro e de laranja,

para onde lança seus multifários beijos?

a nós só atingem seus vulcanosos objetos,

como minúscula parte de sua franja,

sempre quentes, intangíveis e inconcretos.

 

SOL FILIGRANADO II

 

mil vezes já apanhei raios de sol,

fechando rápido a concha de minha mão,

para a abrir somente sobre o coração,

apunhalando-o com a luz desse farol,

mas necessário é veloz ser o caracol,

o Sol é arisco em sua perpetuação,

embora sempre envie maior provisão,

não se conserva inscrito em qualquer rol

e quanto eu tente pegar de sua luxúria,

só uma fração sobre minha mão recai,

mínima parte do que sobre a Terra desce,

prantos de magma para minha lamúria:

a mão se abre e a luz que antes atrai

pinga na terra em solitária prece.

 

SOL FILIGRANADO III

 

mas disso que apanhei a Terra inteira

somente bebe a mínima fração,

para onde irá essa imensa erupção,

enquanto o Sol percorre sua ladeira?

não saberia dizer, a Terra é giradeira,

contudo o Sol só nos mostra uma feição,

mas é redondo em sua prodigalização,

a seu redor esparze a vasta esteira

e mesmo a maioria dos planetas

apenas capta só faíscas do tesouro,

que o sistema solar em seu vasto cultivar

bem mais atinge as pedrinhas mais secretas,

que giram tontas para seu desdouro

para si mesmas sequer um átimo a guardar...

 

FELICIDADE FILIGRANADA I – 20 FEVEREIRO 2023

 

o que eu quero é do amor sentir um canto,

mesmo que muda se faça a melodia;

o que eu quero é o amor que antes queria,

mesmo que seja filigranado em pranto;

o que eu quero é esse verso que descanto,

mesmo que morto e que ninguém leria;

o que eu quero é a dissonante sinfonia,

mesmo em cacófato de refinado manto;

o que eu quero é sentir meu interior,

mesmo que seja oco e até vazio;

o que eu quero é recusar-me ao exterior,

que assim suspeito  me queira devorar;

o que eu quero é a saga do arrepio,

que minha nuca acaricia ao maltratar.

 

FELICIDADE FILIGRANADA II

 

felicidade só a mim mesmo proveria,

Sören Kirkegaard assim a contrariar;

felicidade é coisa inútil de buscar,

elasmobrânquio que jamais eu pescaria:

talvez buscasse o teu amor em nostalgia,

lançando a rede da estopa milenar

das gerações em que te fui pescar,

na filigrana em que tua alma voltaria;

não que esperasse de ti alcançar felicidade,

nenhum de nós a ela tem direito,

o ser feliz só ao coração está sujeito,

feliz apenas em sua casta intimidade,

enquanto pelas veias corre os dedos,

sem conseguir decifrar os seus segredos.

 

FELICIDADE FILIGRANADA III

 

toda noção de ser feliz filigranada,

mais uma marca d’água transparente,

um dia impressa nos círculos da mente,

em escaninho perdido a ser deixada;

no próprio amor a mente ensimesmada,

filtrando o amor externo transcendente,

 rede a esvaziar de seu valor subjacente,

felicidade temporária e inesperada;

mas algo existe igual ao mito antigo,

que nos impele do amor a buscar canto,

que nem nos chegue no tempo do jazigo;

felicidade que se encontra em meigo pranto,

compartilhado com outro choro amigo,

por entre os furos de um desgastado manto.

 

PRIMAVERA FILIGRANADA I – 21 FEV 23

 

cada um de nós corre em busca de si mesmo

e não descansa sem um dia se encontrar;

só então descobre que está sempre a se escapar,

que corre em vão pelos túneis do ninguém;

todo o esforço de alcançar tentado a esmo,

para o porvir inteiramente a escorregar,

inútil gancho do presente a disparar,

que já prendeu-se no antanho do também;

escorregadio o eu deste presente,

numa esteira onipresente a deslizar,

sem um controle para tal velocidade;

só por instante a se alcançar pressente,

mas tanto de nós já se encontra a naufragar,

nessa incumbência de toda a humanidade!

 

PRIMAVERA FILIGRANADA II

 

a primavera sobre nós é diluída,

nunca podemos seus dias costurar,

nenhum instante da filigrana a desfiar,

pelo estio constantemente perseguida;

chega o verão com sua fúria incontida,

cada um de nós em si sempre a atrelar,

os dias se amontoam sem parar,

numa pirâmide de lama derruída;

chega o outono a nos levar por diante:

inutilmente a nós tentamos agarrar,

a nossa imagem veloz a despencar,

seus dedos a roçar em cada instante,

a imagem nova cada mão a atravessar,

que já outra imagem a substitui constante.

 

PRIMAVERA FILIGRANADA III

 

não nos quedamos no monturo do passado

e muito menos na variância do futuro,

só o presente em breve instante é puro,

tudo o que fomos para trás deixado

e o que seremos jamais sendo encontrado,

a lamparina a espevitar no escuro,

o reflexo do vento sobre um muro,

fantasmagórico o coração crucificado,

nenhuma imagem a encontrar real sossego

na corrida incessante dessa esteira,

podemos apenas unir-nos num abraço,

salto na treva de um destino cego,

só por vislumbre o presente nos inteira

e a primavera já se foi sem deixar traço.

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