domingo, 10 de março de 2024


 

 

AMOR PARA LYDIA I – 5 março 2024

(CONSTANCE TALMADGE, atriz do cinema mudo)

 

Minha Tia Lydia nunca se casou,

muito demorado foi seu nascimento,

quase vinte e quatro horas sem alento,

a falta de ar seu pobre cérebro afetou,

mas nem por isso na real se retardou,

lia e e escrevia sem grande esquecimento,

para as continhas tendo mais impedimento,

mas quanto à vida, melhor se adaptou.

 

Não a deixavam chegar perto do fogão,

sua função principal servir a mesa,

bem raramente algum prato ela quebrou.

Era uma forma gentil de proteção

e ao mesmo tempo, sem causar despesa,

na chapa quente suas mãos nunca queimou.

 

AMOR PARA LYDIA II

 

Ficava em casa quase o tempo todo,

não ia a bailes ou coisas semelhantes,

com poucas chances de encontrar amantes,

só da janela do carnaval vigiava o rodo.

Que eu soube, nunca teve namorado,

seu amor era Tonita, o irmãozinho,

com quem brincava, igual que um amiguinho

e permanecia muito tempo do seu lado.

 

Foi o filho único de sua boa madrasta,

bem mais tarde nasci eu e seu amor

para mim transferiu com igual ardor.

Suas próprias ânsias de si mesma assim afasta,

por não ter filho real, virou titia:

“ficou para semente”, como se dizia...

 

AMOR PARA LYDIA III

 

Para comigo foi bastante carinhosa,

sempre levava pelas tardes meu café

numa bandeja, pão e queijo, até

pão de centeio, com margarina mais gostosa,

mas esquecia ter trazido... e prestimosa

enchia outra bandeja e me trazia

houve ocasião em que tanto se esquecia

que três bandejas me serviu, toda amorosa!

 

Mais tarde, teve câncer, triste sorte!

Igual que sua madrasta e outra tia,

seu frágil corpo consumiu-lhe inteiro...

minha mãe a cuidou até sua morte,

com o desvelo que tão bem possuía,

foi o Amor para Lydia derradeiro!

 

O RIO QUE PASSA I – 6 MARÇO 24

 

A minha própria morte não me assombra.

O que me assombra são esse mil destroços

que guardamos ao redor, crânios e ossos

em qualquer canto das cidades, triste sombra!

Um cemitério me recorda alfombra

além de um cortinado, talvez fossos...

os campos de cultivo que eram nossos

apenas lápide de sepultura ensombra.

 

Fico a cismar nas vastas catacumbas

de ossos anônimos nas cidades mais antigas,

por que guardá-las como assombrações?

Só os monumentos de tais antigas tumbas

sobre a terra a distribuir sombras amigas

e mais as sombras dessas longas orações.

 

O RIO QUE PASSA II

 

Mas não é isso que me assombra, na verdade:

é a minha consciência de tantas gerações

de que derivam as minhas gestações...

Reencarnação a igreja diz ser falsidade.

Por que heresia para a religiosidade?

Que os mortos ressuscitem não tenho objeções,

mas não os corpos dessas vasta multidões,

tão mais que os vivos de nossa hodiernidade.

 

O que me assombra é saber quantos milhões

deixamos para trás em nossa esteira,

dia após dia a reabastecer essa ampulheta...

E os animais, esquecidos aos bilhões?

A Natureza os devora, hospitaleira,

salvo em museus, em qualquer câmara secreta.

 

O RIO QUE PASSA III

 

Sei bem que o rio da vida permanece,

que minhas hemácias vêm dos antepassados,

que em minha células se encontram bem guardados,

dentro em minha mente e mesmo em cada prece.

Tantos milhões, contudo, a gente esquece,

somente os reis e os guerreiros são lembrados,

poucos nomes de mulheres recordados,

mas cada herói ou santo delas desce.

 

O que me assombra é dos óvulos multidão

que nas trompas se perderam por acaso,

sem que em qualquer esperma se banhassem.

E desse esperma também sinto compaixão:

quantos secaram em tal túmulo raso,

para que um só em algum útero me gerassem?

 

O RIO QUE PASSA IV

 

E a cada vez que vejo mulher nua,

em sua opulência de forte geradora,

meu coração se aperta nesse embora,

trinta anos talvez à luz da Lua,

de amor e sedução pisando nessa rua,

nessa sua trilha de mãe reprodutora

e depois a Natureza, vil traidora,

já a descarta, qual desnecessária grua.

 

Pois já cumpriu ou descumpriu a sua função

e então me assombra essa transitoriedade

de tantas vidas de tão só setenta anos,

só a proteger o primaveril botão,

em que essas flores perfumam a cidade

e então ressecam à luz dos desenganos.

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