PÃO E AMOR I – 27 FEV 2024
(Dee Turnell , atriz hollywoodiana em escala cinza)
Quando
se busca apenas fazer pão,
toma-se
a água e um tanto de farinha,
sal e
açúcar também e a ladainha
das
repetidas espécies de pressão,
mas é o
fermento que nos dá a gestação,
como se
fosse a semente, tal qual linha
que
costura os ingredientes e que aninha
o
crescimento, a vida e a geração.
Também o
vento é que nos faz crescer,
as
sementes airando em plena graça
e
sacudindo das hastes seu pendão,
pois seu
agito é que faz amadurecer,
torna a
haste em caule e quando passa
deixa o
fermento da saudade pelo chão.
PÃO E AMOR II
Ou se busca dar amor ou receber,
são atitudes bastante diferentes,
os doadores são bem mais complacentes
e se surpreendem até ao perceber
que igual amor lhes venham devolver,
coisa que às vezes até os deixa descontentes,
caso recebam em pagas contingentes
o mesmo amor que deram com prazer.
Muitos preferem apenas se doar,
amavelmente, com os outros compartir,
tanto seus bens como seu empreendimento
e ao verem que lhes vão reciprocar,
tem o prazer perverso de sentir
razões escusas para seu ressentimento.
PÃO E AMOR III
Assim o amor do pão reciprocado
por esse esforço de reunir os condimentos,
por esses gestos em constantes movimentos,
melhor se aceita, sem condições é dado,
mas esse amor que se recebe partilhado
fica envolvido em multidão de sentimentos,
todo amor de um padecer tem elementos,
todo amor traz consigo o inesperado.
Melhor fora, quiçá, o amor egoísta,
que quanto dá igual
almeja receber ,
ao invés deste amor tão conventual,
de regras e breviário a seguir pistas,
só em imagem seu deus a perceber,
numa recíproca tão somente imaterial.
EPITÁFIO
I – 28 FEV 2024
Há quem
escreva o próprio necrológio,
por
humildade ou por convencimento,
decerto
há edição em cada assento,
na
ampliação ou redução desse horológio;
mais do
que necro, tende a ser um cardiológio,
suas
emoções a influenciar o julgamento
ou as
racionalizações de algum momento,
tornado
em texto de cunho semiológio.
Há
frequente sugestão da além-verdade,
os
ancestrais buscando ser lembrados,
os
descendentes um tanto constrangidos,
na mais
sincera e enviesada falsidade,
são só
os momentos que deseja recordados,
concisa
a voz de seus ideais perdidos.
EPITÁFIO II
Se foi algum necrológio verdadeiro
foi esse escrito pelo bom Rei Salomão,
“vaidade das vaidades” a afirmar em tal noção,
no Eclesiastes a revelar-se
por inteiro;
toda a paixão de seu peito altaneiro
no Cântico dos Cânticos achou sua preleção
e nos Provérbios desenvolveu a sua razão,
só no Eclesiastes se revelou primeiro.
Louvor irônico ás constantes repetições,
não somente das mil ações humanas,
mas das coisas materiais que as envolveram;
e depois disto, qual louvor ou negação
nos restará para necrologias mais profanas
de nossos atos apagados que ocorreram?
EPITÁFIO III
Certamente não escreverei
meu necrológio:
há bons jornais que já os costumam redigir,
para pesoas afamadas se
exibir,
na realidade sendo mais um mitológio,
coisa tétrica e macabra em apológio,
pois toda fama e louvor irão sumir
e ali reúnem os factóides do existir,
enquanto encaram os ponteiros de um relógio.
Sempre há esperança em cada redator
de que irá sobreviver ao homenageado,
com suas palavras a fechar o seu baralho:
ganha o cassino de cada apostador...
Pouco me importa ser ofendido ou ser louvado,
a vida humana grãos de areia e de cascalho.
MARIA
FERREIRA I – 29 FEVEREIRO 24
Os ossos
de minha avó eu descartei,
depois
de décadas a pagar sua sepultura,
restos
humanos são de impureza pura,
na mente
apenas sua memória conservei.
“De
mortuis nisi bonum” – ainda direi.
À sua
maneira, tratou-me com doçura,
embora visse
em mim, com amargura,
bem
menos que seu filho, dom e rei.
Casou-se
tarde com o viúvo meu avô,
a essa
altura por filhos já rodeado,
por
muitos mais que já o haviam precedido;
deste
casamento um filho só restou,
Antonio
Joaquim, como tal foi batizado,
alvo
superno de seu amor entretecido.
MARIA FERREIRA II
“Pequeno príncipe” por ela consagrado,
”Príncipe Nico” o chamavam os irmãos,
sem qualquer inveja em tal conotações,
por nenhum deles jamais foi maltratado;
morreu meu avô antes de ser encontrado
o motivo do diabetes e suas manifestações,
a insulina só iria proteger as multidões,
anos depois de algum fígado afetado.
Não meu avô, três anos a sofrer,
cada pedaço cortado sem que a chaga
jamais chegasse assim a ser curada.
Com meios próprios por herança receber,
deixou aos filhos adotivos, santa maga,
o que era de seu pai, em seu orgulho empoderada.
MARIA FERREIRA III
Seu filho o alvo de um violento amor,
com mulher alguma o queria partilhar,
a contragosto, após vê-lo se casar,
agiu de modo a demonstrar seu desfavor.
Tal como em conto de fadas esse ardor,
na lua-de-mel insistiu em acompanhar,
no leito de núpcias chegando a se deitar,
a pobre nora de sua cama em despudor.
Mas fui o filho, enfim, do casamento,
quando em mim via o filho arrebatado
pela mulher com que insistira em se casar.
Custou muito a demonstrar bom sentimento
para comigo – não era o filho idolatrado,
de sua própria carne a vê-lo se afastar.
MARIA FERREIRA IV
Mas na verdade, não posso me queixar.
Quando nenê, minhas fezes até limpava,
com paninhos de algodão que reservava
para esse fim, que depois iria lavar.
À padaria iria mais tarde me enviar
e com os níqueis do troco
me brindava,
mas não sorria enquanto me encarava,
era o rosto de minha mãe a contemplar!
Nunca me maltratou. Minha
mãe, porém,
se dedicava ao piano e outros deveres,
minha tia-avó, Maria Clara, me adotou;
dela escutei as mil histórias que provêm
dos ancestrais, em seus arcanos quefazeres:
foi mãe e avó... e aqui a saga terminou.
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