sábado, 2 de março de 2024


 

 

PÃO E AMOR I – 27 FEV 2024

(Dee Turnell , atriz hollywoodiana em escala cinza)

 

Quando se busca apenas fazer pão,

toma-se a água e um tanto de farinha,

sal e açúcar também e a ladainha

das repetidas  espécies de pressão,

mas é o fermento que nos dá a gestação,

como se fosse a semente, tal qual linha

que costura os ingredientes e que aninha

o crescimento, a vida e a geração.

 

Também o vento é que nos faz crescer,

as sementes airando em plena graça

e sacudindo das hastes seu pendão,

pois seu agito é que faz amadurecer,

torna a haste em caule e quando passa

deixa o fermento da saudade pelo chão.         

 

PÃO E AMOR II

 

Ou se busca dar amor ou receber,

são atitudes bastante diferentes,

os doadores são bem mais complacentes

e se surpreendem até ao perceber

que igual amor lhes venham devolver,

coisa que às vezes até os deixa descontentes,

caso recebam em pagas contingentes

o mesmo amor que deram com prazer.

 

Muitos preferem apenas se doar,

amavelmente, com os outros compartir,

tanto seus bens como seu empreendimento

e ao verem que lhes vão reciprocar,

tem o prazer perverso de sentir

razões escusas para seu ressentimento.

 

PÃO E AMOR III

 

Assim o amor do pão reciprocado

por esse esforço de reunir os condimentos,

por esses gestos em constantes movimentos,

melhor se aceita, sem condições é dado,

mas esse amor que se recebe partilhado

fica envolvido em multidão de sentimentos,

todo amor de um padecer tem elementos,

todo amor traz consigo o inesperado.

 

Melhor fora, quiçá, o amor egoísta,

que quanto  dá igual almeja receber ,

ao invés deste amor tão conventual,

de regras e breviário a seguir pistas,

só em imagem seu deus a perceber,

numa recíproca tão somente imaterial.

 

EPITÁFIO I – 28 FEV 2024

 

Há quem escreva o próprio  necrológio,

por humildade ou por convencimento,

decerto há edição em cada assento,

na ampliação ou redução desse horológio;

mais do que necro, tende a ser um cardiológio,

suas emoções a influenciar o julgamento

ou as racionalizações de algum momento,

tornado em texto de cunho semiológio.

 

Há frequente sugestão da além-verdade,

os ancestrais buscando ser lembrados,

os descendentes um tanto constrangidos,

na mais sincera e enviesada falsidade,

são só os momentos que deseja recordados,

concisa a voz de seus ideais perdidos.

 

EPITÁFIO II

 

Se foi algum necrológio verdadeiro

foi esse escrito pelo bom Rei Salomão,

“vaidade das vaidades” a afirmar em tal noção,

no Eclesiastes a revelar-se  por inteiro;

toda a paixão de seu peito altaneiro

no Cântico dos Cânticos achou sua preleção

e nos Provérbios desenvolveu a sua razão,

só no Eclesiastes se revelou primeiro.

 

Louvor irônico ás constantes repetições,

não somente das mil ações humanas,

mas das coisas materiais que as envolveram;

e depois disto, qual louvor ou negação

nos restará para necrologias mais profanas

de nossos atos apagados que ocorreram?

 

EPITÁFIO III

 

Certamente não escreverei  meu necrológio:

há bons jornais que já os costumam redigir,

para  pesoas afamadas se exibir,

na realidade sendo mais um mitológio,

coisa tétrica e macabra em apológio,

pois toda fama e louvor irão sumir

e ali reúnem os factóides do existir,

enquanto encaram os ponteiros de um relógio.

 

Sempre há esperança em cada redator

de que irá sobreviver ao homenageado,

com suas palavras a fechar o seu baralho:

ganha o cassino de cada apostador...

Pouco me importa ser ofendido ou ser louvado,

a vida humana grãos de areia e de cascalho.

 

MARIA FERREIRA I – 29 FEVEREIRO 24

 

Os ossos de minha avó eu descartei,

depois de décadas a pagar sua sepultura,

restos humanos são de impureza pura,

na mente apenas sua memória  conservei.

“De mortuis nisi bonum” – ainda direi.

À sua maneira, tratou-me com doçura,

embora visse em mim, com amargura,

bem menos que seu filho, dom e rei.

 

Casou-se tarde com o viúvo meu avô,

a essa altura por filhos já rodeado,

por muitos mais que já o haviam precedido;

deste casamento um filho só restou,

Antonio Joaquim, como tal foi batizado,

alvo superno de seu amor entretecido.

 

MARIA FERREIRA II

 

“Pequeno príncipe” por ela consagrado,

”Príncipe Nico” o chamavam os irmãos,

sem qualquer inveja em tal conotações,

por nenhum deles jamais foi maltratado;

morreu meu avô antes de ser encontrado

o motivo do diabetes e suas manifestações,

a insulina só iria proteger as multidões,

anos depois de algum fígado afetado.

 

Não meu avô, três anos a sofrer,

cada pedaço cortado sem que a chaga

jamais chegasse assim a ser curada.

Com meios próprios por herança receber,

deixou aos filhos adotivos, santa maga,

o que era de seu pai, em seu orgulho empoderada.

 

MARIA FERREIRA III

 

Seu filho o alvo de um violento amor,

com mulher alguma o queria partilhar,

a contragosto, após vê-lo se casar,

agiu de modo a demonstrar seu desfavor.

Tal como em conto de fadas esse ardor,

na lua-de-mel insistiu em acompanhar,

no leito de núpcias chegando a se deitar,

a pobre nora de sua cama em despudor.

 

Mas fui o filho, enfim, do casamento,

quando em mim via o filho arrebatado

pela mulher com que insistira em se casar.

Custou muito a demonstrar bom sentimento

para comigo – não era o filho idolatrado,

de sua própria carne a vê-lo se afastar.

 

MARIA FERREIRA IV

 

Mas na verdade, não posso me queixar.

Quando nenê, minhas fezes até limpava,

com paninhos de algodão que reservava

para esse fim, que depois iria lavar.

À padaria iria mais tarde me enviar

e com os níqueis do troco  me brindava,

mas não sorria enquanto me encarava,

era o rosto de minha mãe a contemplar!

 

Nunca me maltratou.  Minha mãe, porém,

se dedicava ao piano e outros deveres,

minha tia-avó, Maria Clara, me adotou;

dela escutei as mil histórias que provêm

dos ancestrais, em seus arcanos quefazeres:

foi mãe e avó... e aqui a saga terminou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário