sábado, 9 de março de 2024


 

 

raízes da chuva I (11/1/2009)

(LILLIAN GISH, musa do cinema mudo)

 

existe um porto que seduz as almas

a andar famintas pela escuridão;

o nome desse porto é coração:

fica em meu peito nestas tardes calmas.

 

eu as recebo todas, uma a uma

e escuto seus queixumes como um pai;

depois redijo tudo o que me vai

na própria alma, no canto que ressuma

 

depois de receber mil confissões

de tantas almas que escuto e que apadrinho,

pois são suas vozes que em meu canto saem.

 

por isso, não estranhes as canções

a digladiar-se, em ato bem mesquinho,

das confidências que em meu porto caem.

 

raízes da chuva II

 

pensei de ódio ou de amor escreveria

ou até de indiferença anotaria,

durante instantes desta tarde fria,

em que se escoa meu feriado inútil.

 

mas agora me vejo atropelado

por pensamentos estranhos, afogado

na multidão de falas, imolado

sobre os altares da palavra dúctil.

 

dizem que frases destes meus sonetos

trazem mensagens no momento exato,

qual se escrevera para tal momento.

 

sabe-se lá que sonhos mal-secretos

enfrentará de meus versos o recato,

nesse futuro que esvaiu meu pensamento!

  

raízes da chuva III – 1º março 2024

 

minhas raízes se erguem para o alto,

por entre as nuvens a achar inspiração,

são as raízes imemoriais de um coração

de há muito dissolvido em algum ressalto

 

e de minhas pétalas alimenta-se o planalto,

correm as gotas em inversa brotação,

mas quanto escrevo provém de outro pulmão,

o meu próprio coração de ideias falto.

 

raízes são obnubiladas de algodão,

finas mortalhas que não mais se encontrarão,

raízes formadas por ossos ancestrais,

 

raízes são emplumadas de alegria,

raízes imersas em pura nostalgia,

enchendo os mares a partir dos cais.

 

raízes da chuva IV

 

julgo estar claro que se me contradigo

é que estou expressando os sentimentos

dessas almas de fugidios julgamentos

que esvoaçam em torno a meu abrigo.

 

alguma delas dorme há anos comigo,

chegaram outras só por alguns momentos,

com seus queixumes ou consentimentos,

que redigir sem esforço já consigo.

 

porém não são estes versos, certamente,

a expressão apenas do que sinto,

é indubitável que alguns me contrariam,

 

mas todos registro equanimemente,

na galeria desses óleos em que pinto

cada tristeza que me comunicariam!

 

raízes da chuva V

 

bem raramente minhas almas penadas

me vêm contar as suas alegrias,

frequentemente só lastimadas elegias ,

separadas que estão das bem-amadas,

 

que já partiram para onde destinadas

ou ainda percorrem deste mundo as vias,

enquanto elas, em inumeráveis romarias

a estratosfera palmilham amortalhadas!

 

pois são leves demais para descer,

em nada são criaturas do pecado,

pois nem ao menos possuem corações!

 

partidas que já foram sem saber

que da alma o coração é o mais pesado,

por tantos anos a coletar desilusões!

 

raízes da chuva VI

 

mas nem todas são almas infelizes:

chegam algumas por sua livre escolha,

chuvas de lendas em brilhnte bolha,

sem sofrer julgamento de deslizes!

 

estas me contam seus atos mais felizes,

é seu prazer que o cérebro me molha,

no travesseiro se enxugam, como toalha,

 suas coplas em mim não causam crises!

 

e existem almas mais adstringentes,

que só se achegam para se gabar

de suas proezas que em chuva perseguiram,

 

ou me molharam como adjacentes

destinos que em nada irei julgar,

por não saber porque neles se inseriram.

 

raízes da chuva VII – 2 março 2024

 

nem é que eu mesmo acredite em seu castigo,

sempre julguei que o temor do inferno

fosse um lugar de julgamento sempiterno

ao qual consigno tão só meu inimigo!

 

mas realmente nem conceber consigo

que exista tal lugar e me consterno

ao ver quantos acreditam nesse averno,

lugar em que só dor encontra abrigo!

 

mesmo porque, oprimidos pelo tempo,

nossos corpos mortais e desgastáveis,

mal podem imaginar ordálios intermináveis

 

e mesmo para um deus seria grande contratempo

ter de criar tais abismos insondáveis

para os milhões de pessoas sem alento!

 

raízes da chuva VIII

 

mas é tão bom pensar que vão sofrer

aqueles a quem odiamos ou que mal

nos causaram por intenção real

ou por pura indiferença ou desprazer!

 

assim não creio que possa se manter

um vasto império de um deus infernal,

dicotomia zoroástrica e oriental,

para assustar quem em ahriman consegue crer!

 

mas o problema é que algumas dessas almas

foram treinadas nessa mesma crença

para aceitarem um tal castigo eterno.

 

para estas eu dispenso meigas calmas,

que seus temores do pluvial fogo vença,

 acolhida em que meu peito mostre terno...

 

raízes da chuva IX

 

na maioria são as almas de poetas

que não puderam, por um motivo ou outro,

concluir o seu trabalho nesta terra

(talvez conheças alguns destes estetas)

 

e se por versos iguais aos seus te afetas,

talvez recordes deste ou daqueloutro

que morreu por doença ou numa guerra,

suas belas obras deixadas incompletas!

 

talvez em mim possas lembrar se seu estilo,

não te surpreendes, que plágio não é,

pois choveram em meus ouvidos permissão

 

que assim continuidade desse-lhes ao filo

e completasse as suas paixões até

para os ouvidos daqueles que hoje estão.

 

raízes da chuva X – 3 março 2024

 

é dessa forma que acolho esses famintos,

alguns tiveram grande reconhecimento

outros ficaram na maranha do portento

do acaso em seus caprichos mais sucintos.

 

mas hoje me trazem versos bem distintos,

raízes da chuva de meu entendimento,

talvez brindando o sarcasmo de um evento

ou versos sensuais pelo carnal retintos.

 

mas a todos eu acolho como chuva,

sem indagar quem são ou de onde vêm,

os mil fantasmas que dickens não pintou.

 

aos invés de correntes, os recebo como luva,

uma réstia de poemas nesse além

da noosfera que teilhard tão bem cantou!

 

raízes da chuva XI

 

por isso em chuva escorrem meus poemas,

para matar a seca da saudade,

pelas sarjetas da mentira e da verdade,

talvez nefasta a descrição de alheias penas...

 

mas beijo a alegre compulsão de suas verbenas,

em sutil dote para toda a humanidade,

muito além de minha real capacidade,

sou veículo e enciclopédia desses temas.

 

e quando chovem em mim seus sentimentos,

eu os escolho e os posso peneirar,

em minha bateia não cabe tudo conservar,

 

que há muitos mais com seus requerimentos,

que não abrange minha vara de juiz,

por mais que a todos atender eu sempre quis!

 

raízes da chuva XII

 

assim eu vejo em mim enraizadas

essas gotas de martírio no meu porto,

a meu prazer as frases delas corto,

especialmente as suas vozes apressadas

 

que de outras línguas chegam repassadas,

em uma dúzia às vezes as aporto,

mas como atender seu pranto morto,

se falam línguas há muito abandonadas?

 

com omar khayyan tenho telepatia,

mas de neruda é bem mais fácil o espanhol,

de castro alves lamento a triste sorte

 

que para a morte prematura o envia

e ainda outros ouço talvez de menor porte,

cujas memórias mal ondulam sob o sol.,,

 

raízes da chuva XIII – 4 março 2024

 

sempre é mais fácil recordar-se dos famosos,

mesmo não tendo sua obra completada,

essa lembrança na memória consagrada,

por versos mil de poemas poderosos,

 

mas ainda existe a multidão ignorada,

dos que jamais se tiveram por ditosos

ou que gozaram de prazeres portentosos,

que em toda a vida nunca escreveram nada.

 

a imensidade abarrotada das gavetas,

que ao perpassar de quaisquer vidas secretas,

não foram abertas e não o serão jamais,

 

mas simplesmente ao fogo destinadas

por inventariantes de mentes apressadas,

indiferentes a seus sonhos siderais.

 

raízes da chuva XIV

 

há raízes de anjos nessas tempestades

ou de outros em nada santos imortais,

raízes frívolas de antigas bacanais,

mulheres mortas proclamando suas verdades.

 

há raízes de coriscos e de abades,

raízes férreas de conquistadores triunfais,

todos deitados sob pedras sepulcrais,

páginas soltas dos breviários de mil frades.

 

mil outras raízes nessa chuvarada,

nem toda por bocas mortas assoprada,

tomo as raízes dessa imensa multidão

 

das mães e avós que em minha carne se acharão,

nas sombras de meu sangue assim gerado,

suas fraldas vivas de meu corpo acalentado.

 

raízes da chuva XV

 

raízes puras ensufladas no ninar,

esses óvulos de vento a me chamar,

esse esperma exterminado ao fecundar,

vulvas de sonho em cada saga milenar,

 

pois recordamos tais poetas sem pensar

de suas mães e irmãs no acalentar,

quantas canções de amor a improvisar,

que em mentes limpas puderam-se gravar!

 

assim sou eu, fruto desse vendaval,

dos ossos brancos perdidos pelo mar,

de ossos escuros na terra enraizados,

 

todos escuto, sem ter mérito afinal,

filho da chuva de uma raça milenar,

seus murchos cantos hoje em mim ressuscitados!

 

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