raízes da chuva I
(11/1/2009)
(LILLIAN GISH, musa do cinema mudo)
existe um porto que seduz
as almas
a andar famintas pela escuridão;
o nome desse porto é coração:
fica em meu peito nestas tardes calmas.
eu as recebo todas, uma a uma
e escuto seus queixumes como um pai;
depois redijo tudo o que me vai
na própria alma, no canto que ressuma
depois de receber mil confissões
de tantas almas que escuto e que apadrinho,
pois são suas vozes que em meu canto saem.
por isso, não estranhes as canções
a digladiar-se, em ato bem mesquinho,
das confidências que em meu porto caem.
raízes da chuva II
pensei de ódio ou de amor escreveria
ou até de indiferença anotaria,
durante instantes desta tarde fria,
em que se escoa meu feriado inútil.
mas agora me vejo atropelado
por pensamentos estranhos, afogado
na multidão de falas, imolado
sobre os altares da palavra dúctil.
dizem que frases destes meus sonetos
trazem mensagens no momento exato,
qual se escrevera para tal momento.
sabe-se lá que sonhos mal-secretos
enfrentará de meus versos o recato,
nesse futuro que esvaiu meu pensamento!
raízes da chuva III
– 1º março 2024
minhas raízes se erguem
para o alto,
por entre as nuvens a
achar inspiração,
são as raízes imemoriais
de um coração
de há muito dissolvido em
algum ressalto
e de minhas pétalas
alimenta-se o planalto,
correm as gotas em
inversa brotação,
mas quanto escrevo provém
de outro pulmão,
o meu próprio coração de
ideias falto.
raízes são obnubiladas de
algodão,
finas mortalhas que não
mais se encontrarão,
raízes formadas por ossos
ancestrais,
raízes são emplumadas de
alegria,
raízes imersas em pura
nostalgia,
enchendo os mares a
partir dos cais.
raízes da chuva IV
julgo estar claro que se me contradigo
é que estou expressando os sentimentos
dessas almas de fugidios julgamentos
que esvoaçam em torno a meu abrigo.
alguma delas dorme há anos comigo,
chegaram outras só por alguns momentos,
com seus queixumes ou consentimentos,
que redigir sem esforço já consigo.
porém não são estes versos, certamente,
a expressão apenas do que sinto,
é indubitável que alguns me contrariam,
mas todos registro equanimemente,
na galeria desses óleos em que pinto
cada tristeza que me comunicariam!
raízes da chuva V
bem raramente minhas
almas penadas
me vêm contar as suas
alegrias,
frequentemente só lastimadas
elegias ,
separadas que estão das
bem-amadas,
que já partiram para onde
destinadas
ou ainda percorrem deste
mundo as vias,
enquanto elas, em inumeráveis
romarias
a estratosfera palmilham
amortalhadas!
pois são leves demais
para descer,
em nada são criaturas do
pecado,
pois nem ao menos possuem
corações!
partidas que já foram sem
saber
que da alma o coração é o
mais pesado,
por tantos anos a coletar
desilusões!
raízes da chuva VI
mas nem todas são almas infelizes:
chegam algumas por sua livre escolha,
chuvas de lendas em brilhnte bolha,
sem sofrer julgamento de deslizes!
estas me contam seus atos mais felizes,
é seu prazer que o cérebro me molha,
no travesseiro se enxugam, como toalha,
suas coplas em mim não
causam crises!
e existem almas mais adstringentes,
que só se achegam para se gabar
de suas proezas que em chuva perseguiram,
ou me molharam como adjacentes
destinos que em nada irei julgar,
por não saber porque neles se inseriram.
raízes da chuva VII
– 2 março 2024
nem é que eu mesmo
acredite em seu castigo,
sempre julguei que o
temor do inferno
fosse um lugar de
julgamento sempiterno
ao qual consigno tão só
meu inimigo!
mas realmente nem
conceber consigo
que exista tal lugar e me
consterno
ao ver quantos acreditam
nesse averno,
lugar em que só dor
encontra abrigo!
mesmo porque, oprimidos
pelo tempo,
nossos corpos mortais e
desgastáveis,
mal podem imaginar
ordálios intermináveis
e mesmo para um deus
seria grande contratempo
ter de criar tais abismos
insondáveis
para os milhões de
pessoas sem alento!
raízes da chuva VIII
mas é tão bom pensar que vão sofrer
aqueles a quem odiamos ou que mal
nos causaram por intenção real
ou por pura indiferença ou desprazer!
assim não creio que possa se manter
um vasto império de um deus infernal,
dicotomia zoroástrica e oriental,
para assustar quem em ahriman consegue crer!
mas o problema é que algumas dessas almas
foram treinadas nessa mesma crença
para aceitarem um tal castigo eterno.
para estas eu dispenso meigas calmas,
que seus temores do pluvial fogo vença,
acolhida em que meu peito mostre
terno...
raízes da chuva IX
na maioria são as almas
de poetas
que não puderam, por um
motivo ou outro,
concluir o seu trabalho
nesta terra
(talvez conheças alguns
destes estetas)
e se por versos iguais
aos seus te afetas,
talvez recordes deste ou
daqueloutro
que morreu por doença ou
numa guerra,
suas belas obras deixadas
incompletas!
talvez em mim possas
lembrar se seu estilo,
não te surpreendes, que
plágio não é,
pois choveram em meus
ouvidos permissão
que assim continuidade desse-lhes
ao filo
e completasse as suas
paixões até
para os ouvidos daqueles
que hoje estão.
raízes da chuva X – 3 março 2024
é dessa forma que acolho esses famintos,
alguns tiveram grande reconhecimento
outros ficaram na maranha do portento
do acaso em seus caprichos mais sucintos.
mas hoje me trazem versos bem distintos,
raízes da chuva de meu entendimento,
talvez brindando o sarcasmo de um evento
ou versos sensuais pelo carnal retintos.
mas a todos eu acolho como chuva,
sem indagar quem são ou de onde vêm,
os mil fantasmas que dickens não pintou.
aos invés de correntes, os recebo como luva,
uma réstia de poemas nesse além
da noosfera que teilhard tão bem cantou!
raízes da chuva XI
por isso em chuva
escorrem meus poemas,
para matar a seca da
saudade,
pelas sarjetas da mentira
e da verdade,
talvez nefasta a
descrição de alheias penas...
mas beijo a alegre
compulsão de suas verbenas,
em sutil dote para toda a
humanidade,
muito além de minha real
capacidade,
sou veículo e enciclopédia
desses temas.
e quando chovem em mim
seus sentimentos,
eu os escolho e os posso
peneirar,
em minha bateia não cabe
tudo conservar,
que há muitos mais com
seus requerimentos,
que não abrange minha
vara de juiz,
por mais que a todos
atender eu sempre quis!
raízes da chuva XII
assim eu vejo em mim enraizadas
essas gotas de martírio no meu porto,
a meu prazer as frases delas corto,
especialmente as suas vozes apressadas
que de outras línguas chegam repassadas,
em uma dúzia às vezes as aporto,
mas como atender seu pranto morto,
se falam línguas há muito abandonadas?
com omar khayyan tenho telepatia,
mas de neruda é bem mais fácil o espanhol,
de castro alves lamento a triste sorte
que para a morte prematura o envia
e ainda outros ouço talvez de menor porte,
cujas memórias mal ondulam sob o sol.,,
raízes da chuva XIII
– 4 março 2024
sempre é mais fácil
recordar-se dos famosos,
mesmo não tendo sua obra
completada,
essa lembrança na memória
consagrada,
por versos mil de poemas
poderosos,
mas ainda existe a
multidão ignorada,
dos que jamais se tiveram
por ditosos
ou que gozaram de
prazeres portentosos,
que em toda a vida nunca
escreveram nada.
a imensidade abarrotada
das gavetas,
que ao perpassar de
quaisquer vidas secretas,
não foram abertas e não o
serão jamais,
mas simplesmente ao fogo
destinadas
por inventariantes de
mentes apressadas,
indiferentes a seus
sonhos siderais.
raízes da chuva XIV
há raízes de anjos nessas tempestades
ou de outros em nada santos imortais,
raízes frívolas de antigas bacanais,
mulheres mortas proclamando suas verdades.
há raízes de coriscos e de abades,
raízes férreas de conquistadores triunfais,
todos deitados sob pedras sepulcrais,
páginas soltas dos breviários de mil frades.
mil outras raízes nessa chuvarada,
nem toda por bocas mortas assoprada,
tomo as raízes dessa imensa multidão
das mães e avós que em minha carne se acharão,
nas sombras de meu sangue assim gerado,
suas fraldas vivas de meu corpo acalentado.
raízes da chuva XV
raízes puras ensufladas
no ninar,
esses óvulos de vento a
me chamar,
esse esperma exterminado
ao fecundar,
vulvas de sonho em cada
saga milenar,
pois recordamos tais
poetas sem pensar
de suas mães e irmãs no
acalentar,
quantas canções de amor a
improvisar,
que em mentes limpas
puderam-se gravar!
assim sou eu, fruto desse
vendaval,
dos ossos brancos
perdidos pelo mar,
de ossos escuros na terra
enraizados,
todos escuto, sem ter
mérito afinal,
filho da chuva de uma
raça milenar,
seus murchos cantos hoje em
mim ressuscitados!
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