MELOPEIA I – 10 MARÇO 2024
(CLÁUDIA OHANA)
Por mais me reconheça no fundo ser feliz,
não o é por consequência dos feitos de minha vida,
nem de cada mentira, cada ilusão perdida,
com tudo o que alcancei ou o que perder me fiz.
A vida não me deu a saga que mais quis,
bem ao contrário o pasmar de longa lida,
a que sempre me apliquei na devoção devida,
mas sempre que voei, esbarrei-me nos gradis.
Destarte não fui ave, talvez apenas colibri,
pousando em cada flor por seu sumo colorido,
sem guardar o que ganhei, um pouco só retido;
apenas adejei entre as flores por aqui,
cheirando cada flor, sem beijo recebido,
por mais que o próprio beijo deixasse por ali.
MELOPEIA II
Na verdade, a música conforma o meu
encanto:
escuto diariamente os mestres do
passado;
em minha juventude,busquei-os
imitado,
mas sem de fato pingar na partitura o
pranto.
Esse jardim contemplo sem ter olhr de
santo,
percebo em cada flor um suspiro
compassado,
a natureza ali em seu labor pesado,
um momento de vida, um momento de
canto.
Para depois murchar, qual murcha a
vida humana.
A flor só é virente enquanto pode
transmitir
a semente de sua vida para nova
primavera
e mesmo da mulher penhor igual
reclama,
abandonando aos poucos quem não mais
puder agir
para formar a geração que lhe preencha
nova era.
MELOPEIA III
Mas um jardim encanta e a alma
apazigua:
regado diariamente, é o fruto do
labor,
se for abandonado, perderá o seu
frescor,
a alma do canteiro amarelada e crua.
A música também no seu fervor estua,
escutada diariamente, em sua calma ou
estridor,
se não for escutada, vira mofo em seu
palor
a alma amarfanhada de qualquer
compositor.
Melhor guardar o sonho a trazer
felicidade,
pois não exige de mim qualquer labor,
basta nele pensar e se revivifica,
que então meus sonhos se renovam com
vaidade,
enquanto as esperanças vão perdendo
seu fragor,
que o dia passa que a noite em breve
indica.
ENTRONIZAÇÃO I – 11 MARÇO 24
No jardim de minha casa, a musa se emudece,
seus olhos de cimento a contemplar-me a frio,
sem qualquer emoção, sem qualquer calafrio,
envolta nesse manto em que verdura cresce.
A musa só me encara, o seu olhar não desce
a contemplar o meu, sem de frescor um fio,
seu olhos bem abertos não mostram qualquer cio,
sua boca imóvel, sem maldição nem prece.
Mas como posso julgar se apenas a sua presença,
sem mármore ou basalto, a resultar de cal,
é a fada protetora das flores do jardim?
Às noites a contemplo, cruzando a grade tensa...
Será que nesse escuro se mostra mais regal,
em toda a majestade que nega para mim?
ENTRONIZAÇÃO II
“O jardim é meu senhor e também meu
escravo”,
parece-me dizer em tais palavras
mudas.
“Ante as dobras de meu peplo, com teu
olhar desnudas,
mas eu não sou assim, bem firme ao
solo cravo.
“Não me podes desnudar com teu olhar
mais bravo,
nem seduzir me podem esperanças mais
agudas,
sei bem que dia e noite com teu olhar
me estudas,
mas somente para o solo meu esplendor
eu lavro.
“Não me tentes assim com pueril
desejo,
eu sou feita de cal, não tenho
coração
e não esperes de mim a lágrima
furtiva,
porém quando me esqueces, tua própria
alma beijo
e envio para ti nova e gentil canção,
tua mente a penetrar da forma mais
esquiva.”
ENTRONIZAÇÃO III
“Recolho da manhã do dia a juventude,
do meio-dia não quero qualquer pingo
de sol,
nem me volto para o alto qual faria
um girassol,
nem a força de teus olhos de forma
alguma ilude.
“Quero o canto dos pássaros, canoro
que me escude,
vou transmitir ao jardim toda a força
de um farol,
não renego realmente o teu sonhar de
escol,
mas a mensagem noturna queres talvez
a mude?
“Só minha presença aqui já é forma de
oração,
da Flora e Fauna ampliando a duração
e alguma coisa assim espero te
transmito,
embora saiba bem que meu sonhar
risonho
tropeça de tua mente em algum rincão tristonho,
cada poema gerado a perder-se em som
aflito.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário