BORRASCA – WILLIAM LAGOS
BORRASCA I – 2009
Pode até ser que
queira retornar
à musa de meus
sonhos... Seminua,
ela me acena do pátio,
sob a lua.
sem se importar
ou lastimar
pelo frio desse
inverno antecipado,
neste estio que
somente está calado,
pois não me inspira
o que sentira,
o que escrevera nas
laudas do passado,
quando subia e chegava
do meu lado,
e até cruzava,
se dissipava
pelas grades da janela
imaterial,
cortava as venezianas,
irreal,
a minha quimera,
amor e fera,
que exigia lealdade
assim total,
em troca de mil
versos, à porfia,
ah, musa antiga, de
geada e nostalgia!...
BORRASCA II
Reis me pediram
escrevesse sobre o sul:
quem sabe sobre as
lendas de minha terra
ou sobre os ossos que
o cemitério encerra
ou a catedral,
Páscoa e Natal,
de tantos mortos
sarabando em procissão,
cantando loas, uma
vela em cada mão,
Aves-marias,
das romarias;
ou quem sabe sobre o vento
é que desejam,
soprando uivos,
em que lanceiros vejam
ou a prece das ovelhas,
pelas charqueadas velhas,
degoladas em qualquer
revolução,
muito mais do que
proclama a tradição,
pelas mateadas,
ou emboscadas,
que tenham sido mortos
os guerreiros,
que então passaram
mais em cavalgadas
do que espetados na
ponta das espadas...
BORRASCA III
O vento ruge e cintila
no silêncio
e, nos galpões, no
meio dos pelegos,
os peões se distraem,
em seus sossegos...
mais inventando
do que contando
as peripécias rubras
das coxilhas
com o sangue
respingando pelas trilhas,
sobre os lanceiros
e seus banderilheiros,
os lenços rubros ao
minuano sacudidos,
na chuva e no relento perseguidos
por saraivadas,
por chicotadas,
mais do pampeano que
das balas do inimigo,
segundo dizem, desse
inverno antigo,
que era outrora,
bem mais que agora,
rigoroso de
rachar as corunilhas,
morrendo não de lutas,
mas de agruras,
esses lanceiros que
nos veem das sepulturas.
BORRASCA IV – 23 JAN
2010
Mas quando o sol
cintila em atropelos
que somente alivia a
chuva escassa
e quando a brisa leve
que perpassa
é mais buscada
do que esperada
no galope do crioulo
se faz vento,
as crinas são um leque
em rebeldia,
mas com o suor do
animal nas coxas crias
um empapamento
meio nojento
que lembra sonhos
pouco confessados
com as coxas da china
misturados
mesmo que ausente
ou indiferente,
encharcada a bombacha
desse sangue,
que escorre puro, sem
deixar exangue
pelos lombos e flancos
na poeira e nos trancos
enquanto as pernas se
refrescam nesse luxo
pela água morna que
recobre o bucho,
na dupla sina
que me aproxima
dessa montada mansa e
mal domada,
enquanto vento criamos
pela estrada,
impelindo o rebanho ao
matadouro...
BORRASCA V
O sol brilha amarelo
no horizonte,
porém as nuvens sobre
minha cabeça
são chumbo e açúcar,
enquanto o céu não cessa
de altaneirar
fofos castelos,
nesse preteor que nem
parece triste,
mas antes protetor que
nos assiste
na tarde lenta
que desalenta;
há retalhos de laranja
sobre o negro,
sobre a tapera algum
azul eu regro
e vêm os raios,
cavalos baios,
conjuminando do oeste
até o leste,
o pasto iluminando
como veste,
até que estoura,
no corpo a fora
uma trovoada de
acordar defunto!
O pingo empina e corre
até um capão,
enquanto a chuva me
derrete a escuridão...
BORRASCA VI
A chuva de verão, na
sesmaria
cai como sangue quente
de punhais,
são mil adagas que me
furam mais
a cada instante
mas sigo avante
dessa enxurrada que
devora o prado,
que me desbota a lenço
do encarnado
que herdei de meus
avós, os maragatos;
não é o mesmo,
mas geme igual,
nessa delícia da
herança natural,
tal como lhes abrisse
as sepulturas;
junto às caveiras,
os lenços brilham,
restos escuros de mais
antigo sangue,
marchetados da farinha
de seus ossos;
olhos abertos,
acusatórios,
pelo abandono do
sonhar federalista,
pela traição do ideal
parlamentarista.
Rio Grande só,
do meu avô,
que me contempla sorridente
pelos dentes,
por mais que na cidade
a vida esteia,
sem matar os pica-paus
numa peleia!... (*)
(*) Os soldados ou os
partidários do governo central.
BORRASCA VII
Mas afinal, por que
esse passado
que nunca foi o meu me
deveria
inspirar no sonhar da
fantasia
de outros portos,
de tantos mortos,
já de há muito
sepultados na campina
ou em túmulos
quebrados que calcina
o mesmo sol que os viu
correr um dia?
Que fancaria
nem me iludia
fingir ideal de que
não compartilhei,
só por seguir a velha
senda que trilhei,
ainda escorrendo
dolente pela estrada!
Na poeira torta
lembrança morta
disso que para mim foi
só visão,
nessa lindeza da
antiga tradição,
com todos os seus
lustros e favores...
Não canto eu mesmo
trovas a esmo,
mas me limito a
escutar no lar
alguns registros do
velho cantar,
manipulados por novéis
artistas
suas vozes pasmas
fantasmas de fantasmas,
almas penadas das
vozes que já foram,
assombrações dos vivos
que percorrem
as mesmas velhas
estradas vicinais;
há muitos ossos
nos matadouros
que nunca foram mortos
nas peleias,
apenas descarnados de
suas veias
para os fogos de verão
dos farroupilhas.
BORRASCA VIII
No fim das contas, na
prosa, prosa vem:
são esses ossos que
sofrem mais também
do pobre gado sempre
assassinado,
sempre abatido,
sempre ferido,
durante o tempo das
revoluções,
durante a atual
pasmaceira sem paixões,
na paz e guerra as
mortes derradeiras
que nunca falham
e sempre os talham;
abatem rezes para um
casamento.
degolam gado após um
passamento,
sempre é preciso obsequiar
os convidados:
cruzam pastagens
para homenagens;
matam-se ovelhas em
todas as carreiras,
fazem churrascos
durante aniversários,
nos saraus
farroupilhas perdulários,
porque é preciso
que haja sangue:
comer os mortos dos
índios tradição;
carne de ovelha
conforma o carreteiro
e muita gente não
deita em travesseiro
sem comer carne,
insatisfeitos,
comer cereais ou ovos
não lhes basta;
é só a carne que lhes
dá maior sustância,
moços e velhos na
mesma manigância...
E ainda falam
de espécie ameaçada,
quando é o gado vacum
o massacrado,
em seus potreiros
criado com cuidado,
somente para a carne
ter nos dentes!...
BORRASCA IX
Tampouco vejo razão
para endeusar
as virtudes da china
tão louvada,
pois é mulher do mesmo
comportar
que noutras terras
ou em outras guerras;
umas defendem sua
virtude a fundo,
outras promíscuas no
ventre fecundo,
umas são belas e de
menear jocundo,
outras são feias
e outras alheias
a qualquer graça que
não a juventude,
que se confunde tanto
com beleza
e por dez anos apenas
nos ilude;
existe graça
nesta desgraça,
nessa pura adolescente
insegurança,
desengonçada menina
que se afirma
depressa ou devagar na
antiga dança;
as que são belas,
brilhantes velas,
conservam sua atração
quando maduras,
são elegantes na
surpresa da velhice,
guardando os dotes de
belezas puras,
e na inconstância,
mantêm constância:
por mais sejam fiéis,
mudam de humor,
mesmo fingindo, sempre
insatisfeitas,
condescendentes ao
demonstrar amor,
porém as chinas,
doces meninas,
não são nem mais
fiéis, nem mais constantes,
que em tudo são
mulheres, femininas,
porém graciosas para
os seus amantes...
BORRASCA X
Há sempre espaço para
estupidez
em cada ato simples
que empreendemos,
basta não dar atenção
ao que se fez;
a distração,
golpe de mão,
nos coloca facilmente
em situação
a que depois iremos
lamentar;
tudo provoca uma
impensada ação;
automatismos,
rasos abismos,
que até a morte de
muitos já causaram,
porém nos tempos de
digital computação
provavelmente esses
tantos lamentaram
a perda do trabalho,
o brando malho,
como um súbito reguaço
pelos dedos,
igual nos davam os
antigos professores,
nessa didática posta
hoje em degredos...
mas pela vida
arrependida
já ficou muita gente
por um toque
que enviou para alheio
recipiente,
qualquer mensagem de
estranho enfoque
que fiz também;
errei, porém,
tenho de hoje a
benfazeja sorte
de corrigir meus erros
computados,
sem sofrer no meu
viver mais longo corte;
mas pela vida
mal sucedida
foi cada ingente
tentativa de ajeitar
erros mais sérios para
os quais borracha
jamais teve sucesso em
apagar...
BORRASCA XI
Contudo, quando eu
olho essa esmeralda
que a maioria costuma
chamar vida,
retirada de cada monte
à falda
no diário corte
que chamam morte,
eu a vejo rebrilhante
entre meus dedos
e então me deixo
invadir por maravilha,
que me queira
transmitir tantos segredos
enquanto pura
na mão perdura
essa jóia magnífica e
completa
a que tão poucos sabem
dar valor,
até que se aproximem
dessa meta
que afinal há-de,
contra a vontade,
ser atingida por todos
os corredores
e ao invés de prêmio,
cobra seu pedágio,
talvez com ágio,
talvez em mil temores
mas em que todos
pisam nos lodos
e sempre sofrem o
final escorregão,
quando a esmeralda vai
pulando pelo chão
e em vão as mãos dela
buscam proteção;
em puro engaste
encastoei a minha,
não porque tema a
morte, minha vizinha,
mas porque sei o valor
que tem a vida,
ainda quando se
demonstra mais mesquinha,
porque, afinal,
é um carnaval,
puro baile em que
usamos fantasia
perante os outros e
perante a própria mente,
até que as máscara
escorrega ao fim do dia.
BORRASCA XII
Por entre as ráfagas
da estranha tempestade
que não engole naves
ou navios,
porém deglute trovões
à saciedade
e chega então,
sem furacão,
mui mansamente, até
mesmo carinhosa,
numa carícia que nos
pega de surpresa,
despetalando nossos
dias como rosa;
num malmequer,
sabe o que quer
a nossa velha e boa
dama antiga,
a camponesa senhora da
gadanha,
cortando os fios com
precisão amiga...
“Vem para mim!
Quero-te assim
No seio de meus braços
receber!
É a vida que se mostra
dolorosa
e verei que ponho um
fim ao padecer;
toda a doença
e malquerença
só te afligirão
enquanto eu não chegar,
porque dou fim a todo
o malefício
e até o medo teme me
encontrar...
E dessa forma,
para tua mão retorna
essa esmeralda que
pensaste ires perder;
eu sou o fim de todas
as borrascas,
no puro véu da calma a
te envolver...”
E o mundo gira
nessa mentira,
que a morte mesma tu
não verás jamais
e se isto pode te dar
consolação,
quando ela chega, cá
não te encontras mais...
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