sábado, 9 de agosto de 2014





TROMBAS DE FOGO
(Duodecaneto de William Lagos)

trombas de fogo I  (2008)

às vezes basta um sonho no papel.
podemos descrever quanto se quer,
com todos atributos que qualquer
ente real não traz em seu farnel.

em verso é fácil pingar gota de mel
e se tornar em ideal qualquer mulher,
enquanto se ama e enquanto se puder
(ou se acrescenta grama ou duas de fel,

e assim parece um pouco mais real).
ou recortamos pedaços de jornal:
aqui uma boca, um olhar, ali uma estrela.

e eis que a temos, no estranho festival
da perfeita entidade, a maravilha tal
que não existe, por mais que seja bela.

trombas de fogo II   (14 abr 11)

o sonho definido pela mente,
por sua própria condição imaterial,
é tão somente um ato espiritual,
todo intangível, por mais seja premente.

porque esse sonho, no coração da gente,
é apenas a centelha de um fanal
e não consegue tornar-se mais real,
por mais que tenha repetição frequente.

é tão só uma intocável fantasia,
alimentada, talvez, com muito amor,
ou contemplada somente em timidez.

nada mais que uma quimera que se cria:
vive flutuando, sem real pendor,
adejando entre os fantasmas que se fez.

trombas de fogo III

porém, se no papel é registrado,
ja adquire bem mais solidez:
letras azuis ou em sua negra tez,
são materiais em seu lugar marcado.

são visíveis para olhar desanuviado
ou descartadas com desfaçatez,
mas quando escrito da primeira vez,
o sonho mais difuso já é fixado.

mesmo esse amor unidimensional,
já conquistou certa carne e solidez,
tornou-se coisa viva e permanente.

enquanto o sonho apenas fantasmal,
tão logo se dilui, em sua nudez,
já dá lugar a uma ideia mais pungente.

trombas de fogo IV

e quando o sonho se transforma em verso,
nessa sutil cadência do poema,
se coalesce em mais completo lema,
mais do que um sonho pelo ar disperso.

o sonho redigido é assim converso
na entidade mágica do sema,
aos poucos se transforma num morfema,
e já se espalha no sentido inverso.

que no papel mais vida ele adquire
quando em métrica e rima destacado:
seus ossos com mais força se articulam.

e quando lido, talvez em sonho vire
um outro anseio há muito descartado
por outras mentes em que sonhos se acumulam.

trombas de fogo V

que existe isso, de uma ideia imaterial
encontrar outra ideia já encadeada
e de serem atraídas, na encantada
psíquica visão do espiritual.

quando completa a ligação virtual,
uma ideia pela outra enamorada,
terceira ideia será então gerada,
numa explosão de gozo natural...

e ainda que pareça fantasia,
em outra mente a tua ideia cria
um vendaval, igual tromba de fogo.

quer sendo amor, quer sonho de tristeza;
e em mim ressurge a saudade da beleza,
formando um turbilhão em que me afogo.

trombas de fogo VI

em cada mente há ideia assim gerada:
tromba de fogo, em vasto turbilhão,
maelstrom que arrasta em confusão
o quanto encontra em sua marcha airada.

por um poema assim articulada
muito mais força tem essa invasão:
são lágrimas de sangue e da paixão
que corta dentro dalma como espada.

assim o sonho, escrito em tinta preta,
atinge a mente, numa explosão secreta
e tudo pede, sem se expor em nada,

pois não te assalta em pura linha reta,
mas em manto de veludo disfarçada,
deixando a mente grávida e esfaimada.

trombas de fogo VII

possuíam mais poder antigamente
esses versos que a alma te alcançavam;
bastava abrir a mente e te assaltavam,
sem qualquer decifração de esforço ingente.

depois meus versos saíram digitalmente;
já bem mais perigosos, que não mais delimitavam
o seu campo de ação aos que os buscavam,
a um só por vez e deliberadamente.

dentro da rede viraram pixels e estruturas
que invadem facilmente cada espaço,
bastando um leve toque de botão,

reproduzidos assim em mil torturas,
na imitação mais pérfida do abraço,
tal qual perfume que te morde o coração.

trombas de fogo VIII

com quantas outras combatem essas mimas!
mil unidades de cada imitação,
a martelar fragmentos de ilusão,
a desgastar-te, constantes como limas.

não são somente generosas rimas:
trombas de fogo de perversidade são,
querem-se impor na força da ocasião,
substituindo o quanto mais estimas...

são frases formadoras de opinião,
são percussão despida de harmonia,
são letras cruas de vulgaridade,

mas que se impõem pela repetição,
posta de lado toda a melodia
por esse pérfido véu de opacidade!

trombas de fogo IX

são esses jingles que toca o celular,
as propagandas de tua televisão,
são os spams em informe multidão,
são esses rádios de carros ao passar.

cada vitrine suas tolices a mostrar
e que jornais e revistas buscarão
vender-te no roldão de uma paixão;
mil comerciais que te forçam a escutar.

essas chamadas que recebes diariamente,
as mil ofertas compondo um turbilhão,
que te ensurdece, no zumbir dos gritos,

até que chega a modorra, finalmente,
em que as novelas despertam tua paixão,
e não escutas mais sequer mosquitos!

trombas de fogo X

e vão assim transformando a sociedade,
os costumes revolvem, mudam nomes,
são novas fés que despontam, novas fomes
no consumismo do luxo e da vaidade...

e a pouco e pouco enviesam tua verdade;
a propaganda até muda o quanto comes
e por mais que suas fagulhas hoje domes,
amanhã voltam ao encalço sem piedade.

algumas mimas plenamente arrasadoras
são as trombas de fogo em maremotos,
atrás de si rastros de mágoa e destruição,

enquanto outras são sutis devastadoras,
que te envenenam, descolorem, tornam rotos
teus sentimentos à força de abrasão!...

trombas de fogo XI

mas também eu trago fogo, que te envio,
porém encontra pouca aceitação,
das mimas deste mundo há reação,
no abafamento do sonho que assim crio.

mas em nada de vulgar assim me alio,
eu amo o amor e não falsa paixão,
em violências não levanto a mão,
porém meus versos estão em pleno cio

e têm poder assim para gerar
os mesmos sentimentos do passado,
quando o viver era mais morigerado,

minhas ideias com as tuas a bailar,
numa tranquila e lenta sedução,
que a lira canta e plange em tua ilusão.

trombas de fogo XII

mas não te nego possuir versos de fogo:
podem fazer os teus dedos empolar,
um redemoinho na alma a provocar,
lástima certa a que criar me arrogo.

ardem teus olhos e a lágrima vem logo,
mas essa tromba é teu próprio palpitar;
somente anseio em tua mente despertar
o que já estava, por meu manso rogo.

quero tocar a tua própria sinfonia,
da qual tu mesma olvidaste a partitura,
coberta pelo entulho mais nefando.

aceita, pois, esta minha flama fria,
de que cada labareda, em graça pura,
não te destrói, porque meu fogo é brando...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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