quinta-feira, 14 de agosto de 2014






O CORCUNDINHA DO SULTÃO
(Original das Mil e uma Noites, recontado no Thesouro da Juventude, versão poética de
(Dedicado a Alayde Lagos Guedes).
William Lagos – 15 ago 2014


O CORCUNDINHA DO SULTÃO I

Era uma vez, no Sultanato de Kazigar,
lá no Planalto de Khorazm, Ásia Central,
havia grande cidade,
com um sultão justo e bondoso em seu reinar,
numa mistura da civilização ocidental
com o Islamismo.

Eram sobrados nos estilos europeus,
intercalados com palácios e mesquitas
da verdadeira fé;
em paz a conviver com cristãos e judeus,
não toleradas tão só as crenças malditas
adotadas por pagãos!...

Mahmud, o sultão, tinha um corcunda
como seu Bobo, deveras engraçado
em piadas e historietas;
tinha também habilidade bem jocunda
no alaúde e no cantar bem afinado
das velhas melodias... 

Desse modo, a ninguém causará espanto
que fosse do Sultão muito apreciado
e tido em alta estima!
quando queria, também sabia causar pranto
com suas histórias e era bem recompensado
por toda a corte...

Apesar de ser corcunda, Kashnaz
tinha sucesso com o gênero oposto,
por ser cantor,
pela emoção que aos corações se traz,
afastando a melancolia e o desgosto
com seu tamborim.

Ora, nem sempre o Sultão o requeria
e o Corcundinha passeava na cidade,
montado na sua mula;
quando cantava, o povo todo o ouvia,
benquisto com real veracidade
por toda parte...

Por pirraça, ao voltar para o castelo
montava a mula a segurar-lhe o rabo:
bem a treinara!...
E na ponta da cola havia um sincelo
e ele cantava do princípio ao cabo,
ao toque do sininho...

Muitos amigos assim granjeara Kashnaz
e aos poucos, já estava enriquecendo,
com mil presentes
e até na proteção das línguas más,
pois auxiliava, sempre que podendo,
quem lhe pedisse...

Meio brincando, nos ouvidos do Sultão,
ele falava o que lhe haviam pedido
e Mahmud concordava;
mas evitava transmitir má petição,
só escutando dos pobres o gemido
e dos injustiçados.

Usava sempre um cafetã bordado,
lavava os pés antes de ir à mesquita,
nas horas de oração;
pelos Cinco Pilares tinha o maior cuidado, (*)
bom muçulmano, que o pecado nunca agita
seu coração fiel.
(*) Os cinco preceitos fundamentais do Islamismo.

O CORCUNDINHA DO SULTÃO II

Morava em Kazigar um alfaiate
que uma mulher muito bela desposara
e os dois se amavam;
ela apreciava os dotes desse vate
e em sua casa Kashnaz se apresentara
para tocar e cantar.

Mas em geral, ele cantava junto à porta
da alfaiataria, a atrair mais clientela
para a lojinha;
os concorrentes faziam cara torta,
mas o alfaiate costurava roupa bela
e ao freguês satisfazia...

Certo dia, já para o entardecer,
a esposa do alfaiate, bem discreta,
afastou a cortina;
as cem contas tilintaram ao bater
e fez ao ouvido do marido uma completa
e bem-aceita sugestão.

“Meu caro Kashnaz,” disse o alfaiate,
“não quer hoje ficar para o jantar?
é refeição de pobre,
mas a amizade ao sabor traz acicate
e a seu amigo iria muito honrar,
caso aceitasse...”

Kashnaz de rogado não se fez,
pois não tinha compromisso de ocasião
para essa noite;
reunido o divan, fumando narguilês, (*)
tratavam temas da maior significação,
em grande seriedade...
(*) Nome dado ao Conselho do Sultão.

Mas Kashnaz era também muito guloso
e costumava comer sem mastigar
e assim engasgou-se!...
Sentiu o alfaiate um medo tenebroso,
vendo o rosto do Corcunda se arroxear,
pois parou de respirar!...

“Mulher, o que nós fomos fazer!
Logo o Bobo predileto do Sultão,
que todos apreciam!...
Por essa morte também vamos perecer,
mesmo inocentes de toda a má intenção!
Não vão me acreditar!...”

Então a esposa do alfaiate recordou
que ao lado morava um médico judeu,
muito afamado!...
O alfaiate com a esposa conversou
e logo a ideia a ambos ocorreu
de lhe levar o morto!

Carregaram o Corcunda bem depressa
e então subiram as escadas do doutor,
batendo à porta;
veio uma escrava, envolta em roupa espessa,
indagando o que queriam do senhor,
que já se recolhera...

O alfaiate entregou-lhe uma moeda:
dinar de prata de bem alto valor:
“Não é de graça!”
Tomou a escrava a sua moeda leda
e apressou-se a ir chamar o bom doutor,
fechando a porta!...

O CORCUNDINHA DO SULTÃO III

Mas a esposa do alfaiate, horrorizada
gritou à escrava que não demorasse:
“O assunto é importante!”
Não obstante, trancou a porta a criada,
sem se importar que no escuro ali deixasse
os consulentes...

“É um doente em muito mau estado!”
gritou a escrava ao patrão já recolhido,
sobre seu leito.
Ela voltara para dar o seu recado
e o casal deixou o Corcunda ali estendido
no patamar da escada...

O médico levantou-se, estremunhado,
abriu a porta, pedindo à escrava luz,
mas tropeçou!...
E Kashnaz foi assim precipitado,
escada abaixo, seus braços em cruz,
frouxo e desamparado!...

Só então a escrava trouxe a luz;
com a lamparina, o doente apareceu
junto da porta!...
Desceram às pressas, naquele lusco-fus-
co e o doutor logo o reconheceu:
era o corcunda Kashnaz!

Meu bom Jeová, o que é que eu fui fazer?
Matei o Bobo favorito do Sultão
por um descuido!
Mas sou judeu e não vão reconhecer!
Vão achar que o matei por má intenção!
Estou perdido!

Examinou o corpo, perturbado;
disse à escrava que fechasse a porta
e o carregou
(afinal, não tinha peso demasiado)
escada acima, até uma comporta
que tinha no telhado...

Como o vizinho tinha uma chaminé,
passou o turbante do morto sob os braços,
depois de o desenrolar;
e o foi baixando devagar, até
que na lareira o largou, tirando os laços,
em pé, como um ladrão!

Ora, aquela casa era do confeiteiro
que fornecia o palácio do Sultão
com doces e pastéis...
Tinha muito açúcar e manteiga no celeiro
e atraía assim dos ratos multidão
sempre faminta...

O Corcundinha, pois, ficou em pé,
bem encostado nas paredes da lareira,
sem se mexer...
Chegou o confeiteiro, de volta do café;
num castiçal acendeu flama ligeira,
assim que entrou...

Mas assim que na sua sala penetrou,
percebeu um par de pernas na lareira,
entre a fuligem...
E sem mais dúvida, o atiçador pegou;
deu nesse intruso pancada bem ligeira
e o derrubou!...

O CORCUNDINHA DO SULTÃO IV

“Ah, agora te peguei, velho ladrão!...
O tempo todo eu pensava serem ratos
que me roubavam!...
E era você o autor da espoliação!
Manteiga e açúcar também comem gatos
de duas pernas só!...”

Vendo o assaltante no assoalho estendido,
já um outro golpe dar-lhe pretendia,
mas se conteve...
Esse ladrão não está apenas ferido...
Dei-lhe um golpe e só com isso já morria...
Mas que desgraça!...

E reparando bem nas suas feições,
do castiçal na luz tão clara e fina,
levou um susto!
Por Alá, que me rogaram maldições!
Esse é o Bobo do Sultão, que triste sina!
Mas por que viria roubar?

Decerto peça é que vinha me pregar,
mas com o atiçador me precipitei
e a cabeça lhe quebrei!
Mas como dessa vou agora me livrar?
De um bom castigo não escaparei!
Que faço agora?

O pior é que esse Bobo brincalhão
deve ter dito a alguém que aqui viria!
Irão me denunciar!...
Mas Alá sabe que não tive má intenção
e tão somente uma sova lhe daria,
para que não voltasse!...

Ora, até amigo eu fui do Corcundinha...
Nunca pensei em lhe causar a morte,
sequer por acidente!...
Pois vou levá-lo até a casa seguinte!
Que meu vizinho tenha a pior sorte!
Dessa me escapo!

E assim pensando, agarrou em Kashnaz
e o carregou até a sua calçada,
escuro ainda...
E então à casa do vizinho o traz,
firme a figura no batente recostada,
e logo se escapou...

Ora, acontece que na casa ao lado
morava um mercador que era cristão,
mas tolerado...
O Povo do Livro, diz o Alcorão Sagrado,
cristão ou judeu, se demonstra devoção,
deverá ser respeitado...

A conversão nunca é obrigatória;
só a exigem desses maus pagãos,
que adoram ídolos...
Não obstante, há taxa peremptória,
que é paga por judeus e por cristãos
aos cofres do Califa!

Mas certa coisa não toleram muçulmanos;
Foi proibida pelo Profeta claramente:
bebida alcoólica!
Se alguém a bebe, deve sofrer danos
de um castigo, que é imposto firmemente
pela Shariya!... (*)
(*) A Lei Islâmica, criada e imposta pelos xeques.

O CORCUNDINHA DO SULTÃO V

Aconteceu voltar de festa o mercador,
que se encontrava bastante embriagado
com vinho de palmeira!
E assim andava com um certo temor,
de ser na rua encontrado em tal estado
pela guarda do Sultão!...

Já era madrugada e ele chegou,
para encontrar um vulto no portal,
sem enxergar bem...
E quando sobre a porta se apoiou,
perdeu o Corcunda seu apoio original,
caindo para a frente!

Assim contra o calçamento derrubou
o mercador, que já estava alcoolizado...
E mal das pernas!...
Era um assaltante! – o infeliz pensou,
julgando estar a ser por ele atacado
para roubar!...

Então a soco e pontapés se defendeu,
logo ficando do lado superior,
batendo ainda mais!
Porém, quando o agressor não se mexeu,
olhou-o à luz da Lua e, com horror,
viu que era Kashnaz!

Na confusão de sua embriaguez,
achou que o matara com as pancadas
e era cristão!
A lei previa, sem a menor dobrez,
penas ferozes a serem aplicadas
por matar um muçulmano!...

Se eles se matassem entre si
ou se um cristão matasse outro cristão,
havia menor castigo;
mas o muçulmano assassinado ali
seria vingado com a forca na ocasião,
até por acidente!...

A embriaguez passou-lhe toda nessa hora!
Meu vizinho, o açougueiro, é muçulmano:
Ele que leve a culpa!
Havia poça de sangue do lado de fora
e ali o enfiou, em ato desumano,
pois queria se livrar!...

Mais que depressa, fugiu para sua casa,
mas o açougueiro algum barulho ouviu
e saiu a ver o que era.
Viu o cadáver ali, vermelho como brasa...
Naquele sangue de gado que o cobriu
pensou que se afogara!...

Por Alá, é o Corcundinha do Sultão!
Foi-se afogar logo na poça de sangue
que eu deixei juntar!...
Por certo vou sofrer a punição!...
pensou o infeliz, de medo quase exangue...
Mas não tive culpa!

Nem teve dúvida!... Foi até a padaria
e enfiou-lhe, em um saco de farinha
toda a cabeça,
para o sangue disfarçar que a recobria!
Por preguiça, o padeiro ainda ali tinha
um saco aberto!...

O CORCUNDINHA DO SULTÃO VI

O açougueiro trancou-se, bem depressa,
mas o padeiro acordou-se com o ruído
e abriu a porta...
O corpo levantou, na maior pressa!
Pensou que na farinha havia caído
e morrera sufocado!...

Não viu o sangue, naquela escuridão;
só a cabeça branca de fantasma...
Foi culpa minha!...
Vão me levar de manhã para a prisão!
Com o medo, sua cabeça quase pasma:
O que faço com o infeliz?

Mas bem ao lado, morava um aguadeiro
que do rio trazia água e a distribuía
e havia um tonel!
Ali enfiou o corpo bem ligeiro:
que se afogara o povo pensaria,
tonto no escuro!...

Foi o padeiro depressa se lavar;
já era hora de assar seu pão
e não se atrasaria!
Mesmo porque, em breve, iria soar
o chamado para a primeira oração,
lá na mesquita!...

Mas o aguadeiro acordou logo a seguir;
depressa tirou o corpo do tonel:
já estava claro!
Mas esse era o Bobo que costumava ouvir,
do alfaiate à sombra do dossel,
cantando alegre!...

Sentiu o cheiro do sangue e da farinha:
Decerto veio tropeçando pela rua
para morrer logo aqui!
Pior, sujou toda a água que continha
o meu tonel, que enxergou à luz da Lua
e veio se lavar!...

Bem rápido, esvaziou seu recipiente
e colocou-o em cima da carroça,
com o corpo dentro!
Vou bem depressa ao rio e na corrente
atiro o morto ou dentro de uma poça
e encho o meu tonel!...

Vão pensar que por lá mesmo se afogou!
Volto bem rápido, sem ninguém saber de nada,
se eu tiver sorte!
Contudo, a guarda da manhã o encontrou,
viu a figura no tonel bem apertada
e o prendeu!...

Lá na cadeia, ele foi interrogado
e ninguém o tomou por inocente:
“Por que o tonel cheio?
De madrugada, era para tê-lo esvaziado,
sem constituir perigo para a gente...
A culpa é sua!...”

Quando ao Corcunda se reconheceu,
lavrou o Cádi logo a sua sentença:
enforcamento!
Em vão o aguadeiro prometeu
que nunca mais repetiria a ofensa:
o verdugo foi chamado!

O CORCUNDINHA DO SULTÃO VII

Pela cidade proclamaram a execução:
seria em público, às nove horas da manhã!
e o povo se reuniu.
O Corcundinha foi colocado nun caixão,
já envolvido em um lençol de lã,
à espera do Sultão!...

Ao patíbulo subiu o aguadeiro,
mas no momento de a sentença executar,
escutaram uma voz!...
Tomado de remorsos, o padeiro
viera correndo para a culpa confessar:
“Meu vizinho é inocente!”

Mandou o Cádi suspender a execução
para escutar toda a história do padeiro,
sem muita crença...
“Então enforquem a este mandrião,
que quis jogar a culpa num terceiro
de seu terrível crime!...”

Não adiantou o padeiro se explicar
que fora acidente e não assassinato:
a culpa era grave!
Mandou o aguadeiro sua sentença aguardar,
enquanto o padeiro encontrava o triste trato
do enforcamento!...

Mas quando o algoz lhe colocou o baraço
ao redor do pescoço e o ia enforcar,
uma voz se escutou!...
“Em nome de Alá, retirem esse laço!
É inocente esse que vão castigar!...
Eu sou o culpado!...”

Por entre a multidão, o açougueiro
foi perante o juiz apresentar-se
e contou sua história;
“Não foi por mal, mas o matei primeiro;
em uma poça de sangue o vi afogar-se,
em frente ao açougue!...”

“Por toda a vida fui um bom muçulmano
e o gado abato conforme a Lei do Islã:
sigo os preceitos!...
Mas deixei correr o sangue por um cano
e a limpeza adiei para a manhã:
nem via no escuro!...”

“Pensei que fosse uma poça bem menor
e nem ao menos me passou pela cabeça
que nela alguém caísse!...
Mas estou disposto ao castigo maior:
que um inocente por mim não pereça!
Seria vasta injustiça!...”

Ouviu-o com paciência o magistrado
para depois prolatar a sua sentença:
“Será enforcado!...
Talvez na morte não tenha pecado,
contudo é contra a nossa santa crença
culpar os outros!...”

“Embora diga estar arrependido,
no meu patíbulo quase morreu um inocente
por culpa dele!...
Seja portanto, à execução submetido!
Eia, carrasco!  Seja diligente
e cumpra a sua função!...

O CORCUNDINHA DO SULTÃO VIII

O açougueiro subiu à plataforma,
depois de dar adeus à sua mulher
e aos cinco filhos...
Todos chorando pela terrível forma
de sua morte, tal qual fosse qualquer
vulgar bandido!...

Mas no momento de baixar o alçapão,
que o derrubaria, sufocando, no vazio,
uma outra voz se ouviu!
“Não matem esse inocente sem razão!”
Mesmo já estando com a vida por um fio,
ao condenado ele salvou!...

Levaram o açougueiro até a prisão,
em que já estavam o padeiro e o aguadeiro,
mais aliviados...
“Fui eu!... Fui eu!... Mas sou cristão!...
Pensei, com medo, ser torturado primeiro!”
confessou o mercador...

“É gravíssimo crime quando um infiel
conduz à morte um bom muçulmano,
até por acidente!
Porém tortura sem pena ou quartel
merecerá pelo ato desumano
de outrem culpar!...”

“Senhor juiz, meus impostos sempre pago
e respeito os preceitos que o Islã
requer dos bons cristãos!...”
O mercador já estava quase gago
por tudo o que ocorrera essa manhã,
pois nem dormira!...

“Mas eu chegava de um aniversário
e estava muito escura a madrugada,
quando ele me atacou!
Eu lhe faço um julgamento multifário
sobre toda a Escritura que é sagrada:
não o pretendia matar!”

“Pensei que fosse algum pérfido assaltante,
pois se jogou para cima de mim!...
Eu só me defendi!...
Porém só vi quem era nesse instante
em que notei estar já morto assim,
por culpa minha!...”

“Mas eu lhe juro que só lhe dei um pontapé
e mais umas três ou quatro bofetadas!
Não era coisa de matar!
Mas era o Corcunda do Sultão e, por minha fé!
Iria sofrer mil torturas agoniadas
antes de morrer!...”

“Provavelmente, também confiscariam
todos os meus bens e à escravidão
reduziriam meus filhos!
A um muçulmano menos mal fariam
e foi por isso que o levei, nessa ocasião,
até o açougue!...”

“Mas reconheço do crime a gravidade!
Que não pereça esse infeliz por mim,
pois nada fez!...
Porém suplico, em nome da piedade,
que nada façam a meus filhos, enfim,
nem à minha esposa!...”

O CORCUNDINHA DO SULTÃO IX

Já estava confundido o magistrado:
“Eu jamais vi um caso semelhante
em meu Tribunal!...”
Porém o povo já estava revoltado:
queriam um enforcamento nesse instante,
sem a menor pena!...

Falou o Cádi: “Reconheço a situação.
Não determino seus bens confiscar,
salvo uma multa;
sua família não sofrerá uma punição;
mas a você preciso hoje enforcar
ou haverá uma revolta!...”

E disse humildemente o mercador:
“Eu agradeço a sua misericórdia
para com os meus...”
E foi subindo à plataforma, sem temor,
satisfazendo da turba a sua discórdia:
pois morte eles queriam!...

O carrasco o amarrou de pés e mãos
e lhe passou o baraço no pescoço,
firmando-o bem,
porque o povo tinha ódio dos cristãos:
queria vê-lo balançando sobre o fosso,
só de maldade!...

Mas no momento em que seria acionado
O trinco frouxo que soltaria o alçapão,
nova voz se fez ouvir!...
“Por Alá, não executem o coitado!
Mesmo que seja apenas um cristão,
Sou eu o culpado!...”

O Cádi não conseguia acreditar.
“Não é possível!   Jamais vi uma coisa assim
em toda a vida!...”
Mas novamente a execução mandou parar...
“Que gritaria é toda essa, enfim?
Que quer você...?”

Havia chegado agora o confeiteiro
que golpeara Kashnaz com o atiçador,
ao vê-lo na lareira!
“Senhor, fui eu que o matei primeiro!
Levei-o à rua, tomado de pavor,
ao ver quem era!...”

“Kashnaz estava em pé, na minha lareira,
e pensei que o infeliz fosse um ladrão
e assim o agredi!...
Levei-o à rua e encostei-o na primeira
porta que achei, firmei-o bem com a mão
e então fugi!...”

“Não pretendia dar a Kashnaz a morte!
Ele era muito dado a brincadeiras:
foi pura troça...
Mas era escuro, que terrível sorte!
Dei-lhe pancadas com o atiçador certeiras!
Foi assim que o matei...”

“Mas não tem culpa o pobre mercador...
Ele é cristão, porém um bom vizinho
e a ninguém faz mal!
Mas juro por Maomé, ó meu senhor!...
Pensei que a guarda acharia o pobrezinho
e o retirariam...”

O CORCUNDINHA DO SULTÃO X

“Não era minha intenção culpar ninguém!
Isso é contra nossa sagrada religião,
mas tive medo!
Ou algum passante o acharia ali também...
Não me fariam qualquer acusação
e nem ao mercador!...”

“Mas agora que ele vai ser enforcado
o remorso me subiu ao coração,
pois não tem culpa!...
Que seja eu, então, o castigado,
segundo os bons preceitos do Alcorão
e do Profeta!...”

O magistrado fez liberar o mercador,
ainda que ululasse a multidão,
que queria sangue!...
No ergástulo prendeu mais esse senhor,
determinando a imediata execução
do confeiteiro...

A sua família surgiu então, chorando,
pedindo ao Cádi a bênção da piedade,
mas se negou...
Foi o carrasco mais um amarrando,
já irritado com essa alternidade
tão desusada!... 

Já tudo pronto, aguardando só o sinal
mediante o qual seria a morte autorizada,
pegou a alavanca...
Mas no momento de seu gesto fatal,
mais uma voz chegou, inesperada:
“Ele é inocente!...”

Era o médico judeu, que sendo velho,
caminhava com cuidado e devagar
e só agora chegava!...
“Senhor Cádi, castigue-me com relho
e depois me torture sem parar,
antes da forca!...”

“Não é culpado o pobre confeiteiro:
fui eu que derrubei escada abaixo
o pobre do Corcunda!
Não acendi a lâmpada primeiro
e derrubei o desgraçado como um cacho
de bananas em saco!...”

“Certo casal o veio trazer, por estar doente
e até mesmo me pagaram com um dinar!
Então, me levantei!
Mas nem cheguei a ver a pobre gente...
Acho que a queda os acabou por assustar
e então fugiram!...”

“E quando fui ao pobre examinar,
percebi que a queda o liquidara:
foi acidente!...
Mas estou velho, disposto hoje a pagar;
a vida para mim não é mais cara,
nem tenho filhos!...”

“Contudo eu, inspirado por Sheitã,
o diabo que nos dá maus sentimentos,
busquei livrar-me...
Levei o cadáver, cedinho de manhã,
até o telhado do vizinho, nos momentos
em que ninguém veria!...”

O CORCUNDINHA DO SULTÃO XI

Ele não quis mencionar a pobre escrava,
que afinal, somente ordens obedecera:
fingiu ter agido só;
mentira piedosa que o Talmude desculpava: (*)
Nenhum pecado a coitada cometera:
por que acusá-la...?
(*) Livro sagrado dos judeus, que complementa a Torá e a Bíblia.

“Desenrolei o turbante do doente
e o amarrei por debaixo de seus braços,
para o puxar...
Do confeiteiro a casa fica rente
e o baixei, dando pequenos passos,
pela larga chaminé...”

“Assumo a culpa, eu que seja castigado
e não esse infeliz de meu vizinho;
pensei que chamaria a guarda
e ao encontrarem o corcunda ali esticado
achariam ter morrido o coitadinho
por fuligem sufocado...”

“Do turbante iria depois me desfazer,
mas aqui o trago, guardei-o num pacote:
do crime a prova!
Faça comigo o que quer que pretender!
Ao confeiteiro não pendure do congote:
enforque o meu!...”

E lá se foi o confeiteiro para a cela,
acompanhando o mercador e o açougueiro,
antes já presos...
Ponderava o juiz se não era uma balela,
como pensara do aguadeiro e do padeiro
e realmente assassinato...

Porque, afinal, era um médico judeu
e não devia tratar de um muçulmano:
estranha a história!
Nunca entre tantos culpados se escolheu
o autor de um só ato desumano...
Queria pensar!...

Mas o povo já fazia barulheira
e o carrasco até furioso parecia!...
E decidiu-se...
“Enforque o médico pela bandalheira!
Se não matou, pelo menos se omitia:
um crente quis culpar!...”

A multidão a aplaudir já começava,
pois tampouco eram amigos de judeus!...
Que esse caísse
pela tampa do alçapão em que pisava,
pois só queriam os divertimentos seus
por morte alheia!...

Encomendou-se o médico a Jeová,
perfeitamente de acordo com o destino:
melhor que o sofrimento!
Mas ouviu-se um grito: “Em nome de Alá!
Não cometam esse terrível desatino:
o médico é inocente!...”

O alfaiate chegara, finalmente,
para impedir mais outra execução...
“A culpa é minha!...
Eu o conduzi, pretendendo estar doente,
em grande abuso de sua nobre profissão,
mas já era cadáver!...”

O CORCUNDINHA DO SULTÃO XII

Urrou o povo, em seu desapontamento,
mas o magistrado de novo suspendeu
outro suplício!...
“Kashnaz estava vivo num momento
e no seguinte, eu o vi morrer
na minha casa!...”

“Ele fora até lá para jantar,
o que fazia com muita frequência,
pois éramos amigos!
Estávamos os três a conversar,
trocando ideias, na maior decência,
quando arroxeou!...”

“Com um pedaço de peixe se engasgou
e de imediato parou de respirar!
Ai, que tragédia!...
Logo a seguir, o temor nos dominou
e o levamos depressa a consultar
com o bom doutor!...”

“Fingimos que ele estava só doente
e o deixamos assim no patamar,
em pleno escuro!
O tropeção foi só culpa da gente:
não esperamos até o doutor chegar
e os dois fugimos!”

“Porém não foi nenhum assassinato:
ele engoliu sem mastigar direito:
esse é o motivo!
Não merecemos morrer por esse fato,
mas enganar o doutor foi um malfeito
e o castigo aceitarei!”

“Porém perdoe, senhor, a minha mulher,
que é tão bonita!... Foi tudo ideia minha!
Então, me enforque!...
Mas sem nela tocar em fio sequer
de seus cabelos!  Sofreu muito a pobrezinha
com o acidente!...”

A esta altura, já ao Sultão haviam avisado
sobre a morte do seu Corcundinha,
de forma misteriosa;
Ele chegou de liteira, acompanhado
por cem soldados... E a multidão mesquinha
começou a dispersar...

Contou-lhe o Cádi, com respeito, toda a trama,
deixando o bom Sultão de boca aberta
pelo acontecido...
“Hoje o remorso em Kazigar se inflama,
salvo se for uma mentira muito esperta
que os sete combinaram!...”

“Já nem sei se isto é coisa de castigo,
de recompensa ou de simples perdão:
que Alá me guie!...
Mas controlar essa gente não consigo,”
disse o Cádi.  “Querem ver execução
de um jeito ou de outro!”

“Com meus soldados, eu os controlarei!
Quero em minha frente os sete condenados
agora mesmo!...”
Puseram-se os sete enfileirados ante o rei,
cada um deles a confessar os seus pecados,
à sua maneira...

O CORCUNDINHA DO SULTÃO XIII

Até o Sultão se demonstrou perplexo:
“A culpa deles é só circunstancial:
Tiveram medo!
Nesse conjunto mal e mal encontro nexo
e acabaria achando graça, no final,
mas Kashnaz morreu!...”

Mas no séquito do Sultão havia um barbeiro,
muito esperto nos ardis da profissão
e então pediu:
“Majestade, só me deixe ver primeiro
o corpo desse Bobo, meu irmão
de tão amigo!...”

“Eu o examino e lhe digo se é verdade
toda essa história assim embaralhada,
olhando os ferimentos
e se essa gente fala com sinceridade...”
Pois o ataúde trouxeram até a calçada,
sem mais delongas!...

Mal o barbeiro o corpo examinou,
abriu a bolsa de seus instrumentos
e tirou um alicate!...
Do Corcundinha a boca ele agarrou,
abriu-a e a estudou por uns momentos
e então sorriu...

Enfiou bem lá no fundo o alicate
e assim a espinha de peixe retirou,
bem facilmente,
que ele engolira na casa do alfaiate
e que na sua garganta se trancou
por acidente!...

Então lhe apertou bem a barriga
e nas suas costas lhe deu só um tapinha,
mas bem de leve!...
Provocou-lhe assim a tosse amiga
e logo a inspiração aos pulmões vinha
e abriu os olhos!...

O barbeiro o fez beber licor
(sendo remédio, não era proibido!)
e Kashnaz sentou!
“Mas o que foi que aconteceu?  Ai, que pavor!
Pensei ter sido pela morte recolhido...
Foi só um sonho...?”

E a seguir, o Corcundinha caminhou,
fazendo ante o Sultão a reverência
de seu costume...
A multidão o assistiu, maravilhada,
pelo milagre a louvar a onipotência
do grande Alá!...

Deu o Sultão ao barbeiro recompensa,
por ter salvo a vida do coitado,
já por um triz!...
Disse o barbeiro, com expressão tensa:
“Não fui eu!  Pelo Profeta foi perdoado!
Que seja grato!...”

Olhou o Sultão para os sete enfileirados,
esperando qual castigo lhes daria
e soltou uma gargalhada!
“Sabem o que mais?  Vão ser recompensados!
Por seu remorso, Deus os absolveria!...
E assim o faço eu!...”

EPÍLOGO

A cada um mandou dar trajo de gala
mas que em paz para suas casas voltassem,
e que nunca discutissem!
E dirigiu a seu povo longa fala:
que nunca mais a morte alheia desejassem,
por pura diversão!...

Kashnaz só estivera desacordado,
a lhe bater bem devagar o coração:
nada sentia!
E por estar assim todo afrouxado,
praticamente nem sentiu a agressão
das suas pancadas!...

E assim, a nossa história acaba bem:
Grande é Alá, clemente e misericordioso
e o Livro é Santo!...
Muito fiel era o Sultão, também;
com justiça demonstrou que era bondoso,
como devem ser os reis...

Mas nem sempre são assim os muçulmanos,
alguns são maus, infiéis no coração,
só pretendendo!...
Afinal, são tão só seres humanos...
Mas tu, ó crente, obedece ao Alcorão
com a mente pura!...



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