sexta-feira, 1 de agosto de 2014






BOTÕES DE GEADA
William Lagos


BOTÕES DE GEADA I (7/5/2010)

A gente se levanta, satisfeito,
com planos e projetos para o dia,
calcula com cuidado o que faria,
num esboço completo e sem defeito.

E então vem o acaso, que jazia
adormecido, tal qual é de seu jeito
e nos empurra para seu proveito,
para a nova armadilha que tecia...

E as coisas sempre ocorrem diferentes,
os planos são mandados para o lixo,
mil projetos projetados para o nada...

Pois precisamos atender a outras gentes
que nos exigem atenção ou favor micho,
pois toda a vida são botões de geada...

BOTÕES DE GEADA II

Sopro em meus dedos, a espantar o frio
e com ele se escoam meus projetos:
talvez se acoitem sob estranhos tetos,
quiçá algum contemple enquanto espio.

Mas de toda essa leveza apenas rio:
sei bem que planos são apenas fetos,
mesmo aqueles ao carinho mais diletos
e não encaro meu desejo em feroz cio.

As ideias para mim são importantes,
muito mais que qualquer realização:
se voam de meus dedos, então pousam 

nos lugares em que sejam triunfantes,
onde encontrarem sua completação
e no mundo material, enfim, repousam.

BOTÕES DE GEADA III

Livre do muco sai a inspiração
e sinto os versos tal que me assoasse
ou que saíssem sempre que espirrasse,
não importam sejam cantos de paixão

coisas horrendas de esternutação,
pérolas meigas com que me enfeitasse,
protestos secos com que me esgarçasse
ou os prazeres que vêm do coração.

Eles se espalham com a expiração,
versos impuros que nem sei quem diz
ou quem sussurra para meus ouvidos;

só sei que me não cabe a retenção
e é por isso que os comparo a meu nariz,
o mundo enchendo com mal entendidos...

BOTÕES DE GEADA IV

Talvez te enoje esta comparação,
mas por que, visto ser emunctório
e todo sangue apenas provisório,
a renovar-se em contínua mutação?

Se o suor é aceito em multidão
pulando, obstinada, em auditório,
se urina e fezes ao laboratório
são levadas para exame, em profusão?

Enquanto o muco, assim endurecido,
é tão somente o da respiração,
o protetor cuidadoso da mucosa?

Que seja então, com carinho, devolvido
ao ar que o fez, com certa devoção,
para podermos aspirar de novo a rosa...

BOTÕES DE GEADA V

Eu já risquei a palavra proibida
que havia empregado inicialmente,
já que muco é mais aceito socialmente,
enquanto o ranho é barrado de saída...

E a sociedade me leva de vencida;
à obscuridade eu sou indiferente;
vulgaridade também é deprimente,
porém o ranho tem direito à vida!

Quando se fala tanto em excluídos
e se dá tanto apoio a minorias,
por que o coitado deve ser banido?

Que sejam seus direitos concedidos
e que o ranho escorra pelas vias
respiratórias, sem que seja proibido!

BOTÕES DE GEADA VI

Porém confesso que não pretendia,
quando a esta nova série dei começo,
falar de escorrimento, a qualquer preço:
minha chocarrice bem lá atrás jazia!

Era tocaia que eu nem sequer sentia;
qualquer sintoma mesmo agora esqueço
do que é a gripe há anos e nem peço
a um resfriado surgir-me neste dia!

Eu me refiro a um muco mais domado,
que por leve alergia é provocado,
pelo pólen das flores perfumadas;

e então se vai, meio que discretamente,
com um lenço de papel, frequentemente,
sendo as provas do crime descartadas...

BOTÕES DE GEADA VII

O que eu buscava descrever, é certo,
é como as coisas florescem e derretem,
tantas tristezas que nos comprometem,
tão fáceis de apagar, quando bem perto

se encontra aquela que o coração desperto
nos traz à vida.  Ou que alegrias projetem
na atmosfera os gostos que cometem
a punição ao degredo num deserto...

Mas já expliquei o quanto me acomete:
eu não controlo nada do que escrevo,
mas antes do que escrevo sou escravo,

que algum elfo ou duende se intromete
e toma conta da esfera com que levo
a esperança de tomar do mel um favo...

BOTÕES DE GEADA VIII

Destarte sinto a geada nos meus dedos,
que se derretem em luz nesses botões.
A geada faz-se orvalho em corações
e os botões reflorescem em segredos;

tantas flores que escudam tantos medos,
capazes de aliviar tantas lesões,
flores de amor ou flores de perdões,
flores de geada nos meus sonhos ledos.

Que nem conseguem, sequer, manifestar,
porque isso que eu escrevo não é meu:
é voz estranha a me lançar sua geada;

e a cada vez que a busco contestar,
sinto na nunca um gelado sopro ateu,
que me impulsiona ao longo dessa estrada.

BOTÕES DE GEADA IX

É de meus dedos que esse muco escorre,
da carne viva sob as unhas a fonte;
é pegajoso, sim, porque faz ponte
entre a alma do poeta, quando morre

e as outras almas a que então recorre,
com as estranhas histórias que lhes conte
e vida e morte, sem cessar, remonte,
mesmo que a própria vida a morte borre.

Assim eu morrerei, por isso espero,
mas este grude que me mostrou segredos
dos que morreram antes que eu chegasse

indelével ficará no som que gero,
por esse muco que escorreu dentre meus dedos,
antes que a própria morte me alcançasse.

BOTÕES DE GEADA X

E não te iludas, leitor ou minha leitora,
alheio espírito que meus poemas lês
essas palavras que, indiferente, vês,
grudam em ti igual força impulsora;

de parte de tua mente, a cada hora,
ou nesse coração em que mais crês;
elas se firmam, em disfarçada tês,
que uma parte da alma te devora...

Essa diáspora que provoco lentamente,
não se destina a ser logo descartada,
com um irônico sorriso da razão;

o seu propósito não tem nada de inocente,
pois sua mensagem há de ficar gravada,
em algumas fibras de teu coração.

BOTÕES DE GEADA XI

Porque os botões de geada que me escorrem
são fruto e fluxo dessa fluidez
que me derrete a mente, mês a mês,
enquanto, aos poucos, meus neurônios morrem.

Este muco dos sonhos que me correm
ainda que tenha grosseira timidez,
aquelas coisas em que tu mais crês
as firo, involuntário, até que torrem

e se retorçam, numa angústia nova,
já que estes venenosos filamentos
não falam da tristeza ou da alegria

que na vida diuturna assim te mova,
mas são o efeito de estranhos corrimentos,
com que meu cérebro, aos poucos, se desfia.

BOTÕES DE GEADA XII

Porém nem sei se te peço teu perdão
por me valer de ti, desta maneira,
interferindo em tua vida corriqueira,
por minha própria ânsia de ilusão;

porque, de fato, não se trata de paixão:
é mais a mente que se faz matreira
e por meio de palavras, sorrateira,
entra na tua, na aparência sem razão;

e se te afeta, é que algo ressonou
de permeio a tuas sinapses e axônios,
ou mostrarias a mais completa indiferença;

mas se algo dentro em ti se rebelou
é que alimentas igual e estranha crença,
gravada há muito nas redes dos neurônios.





Nenhum comentário:

Postar um comentário