OS QUATRO TRANSMORFOS
(Folclore norueguês, dedicado a Diego La-Bella.)
William Lagos, 04 ago 2014
(In Memoriam do Capitão Eduardo Tito Erling.)
OS QUATRO
TRANSMORFOS I
Era uma vez,
nos fjords da Noruega, (*)
uma pobre viúva
com dois filhos,
que alimentava
de sua horta e do pomar;
quando
cresceram, mandava-os caçar;
Erling, o mais
moço, sua caça à mãe não nega
e a traz para
casa inteiramente;
Aksel, o mais
velho, seguia em outros trilhos:
assava a sua e
a comia totalmente;
sua mãe soube e
apelidou Erling, de “Leal”,
porém Aksel foi
chamado “o Desleal”.
(*) Braços de mar entre altos penhascos, comuns na
Noruega.
Porém Aksel
desculpou-se e prometeu
trazer à mãe o
quanto conseguisse;
mas noutro dia,
foram os dois pescar
e novamente
Aksel quis tudo devorar
daquilo que o
mar lhe concedeu,
enquanto Erling
trazia totalmente
o seu pescado,
como a mãe lhe disse;
fingia Aksel
ter tido sorte diferente
e vorazmente,
então, ele comia
todo o alimento
que sua mãe servia...
O tempo foi
passando e esfriou;
a horta e o
pomar não davam mais,
a pesca estava
sob o mar gelado,
as aves e
animais tinham escasseado...
Então Astrid,
sua mãe, aos dois falou:
“Meus filhos, a
comida não nos dá;
comerem três da
horta já é demais
e assim de fome
a gente morrerá...
Chegou o tempo
de irem correr mundo,
lá para o sul,
onde é o frio menos profundo...”
Falou Aksel:
“Que vou comer nessa viagem?”
Disse-lhe
Astrid: “Vou preparar um bom farnel
com a comida
que na despensa nos restou
e mais as aves
que Erling nos caçou;
vão de mochilas
cheias e, com coragem,
poder-se-ão
manter no seu caminho;
levem seus
arcos, seus anzóis, mais algum mel
e se caçaram e
pescarem com jeitinho,
essa comida
lhes será o suficiente
até encontrarem
um bom emprego, certamente...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS II
E perguntou
Erling, o irmão leal:
“Mas e a
senhora, o que é que vai comer?”
“Só para mim,
chegam a horta e o pomar...”
“Mas sob a
neve, o que poderá encontrar?”
E falou Aksel,
o irmão desleal:
“Ora, há peixes
sob o gelo, realmente;
com armadilhas,
animais pode abater...”
“Porém os arcos
e anzóis seguem com a gente,
como irá a mãe
então se alimentar...?”
Respondeu
Aksel: “Ela sabe se virar...”
E a mãe
tranquilizou sua ansiedade:
“Meu filho, há
batatas sob o chão,
que eu plantei
antes de vir o inverno;
é só esperar
que o solo fique terno...
E farei sopas
de grande variedade:
não precisam se
preocupar comigo,
só que as
batatas para nós três não dão;
se ficarem
aqui, correm perigo,
por isso devem
ir para o sul mais quente
e lá acharão
trabalho com outra gente!”
E assim os dois
se puseram a caminho,
mas logo Aksel
revelou sua natureza:
“A sua mochila
pesa mais que a minha,
são as
conservas todas que a mãe tinha...”
Ele lhe mentiu,
fingindo ter carinho:
“Primeiro a sua
mochila esvaziaremos,
você carrega mais
peso, com certeza...
Depois da minha
mochila comeremos...
Sempre podemos
algum peixe pescar
e qualquer caça
ainda é possível encontrar...”
“O que não
pudermos comer, leva você,
depois que
tiver mais espaço na mochila...”
O pobre Erling concordou,
sem desconfiar
De que Aksel o
pretendia ludibriar...
Numa semana o
seu farnel, logo se vê,
já estava
esvaziado totalmente;
mas bordejavam
dos fjords longa fila,
tentar pescar
perigoso e improducente;
assim a sua
mochila se esvaziou:
mel e conservas
foi Aksel quem devorou...
OS QUATRO
TRANSMORFOS III
E como não
puderam caçar nada,
que os animais
estavam hibernando
e as aves já
haviam arribado,
o seu farnel
foi depressa terminado;
mas ao
acamparem outra vez na estrada,
Aksel não quis
a sua comida repartir:
“Da minha
mochila sua mão boba vá tirando!”
“Está
brincando, irmão? Quer me iludir?
Do meu farnel
comeu mais da metade,
chegou a hora
de pagar a sociedade...”
“Coisa
nenhuma! O caminho ainda é comprido
e caçar ou
pescar nós não podemos:
essa comida mal
chega para mim!
Nem uma migalha
eu vou-lhe dar assim!...”
Ficou Erling
totalmente confundido:
“Você me fez
proposta diferente:
‘um com o outro
tudo repartiremos!’”
“Quem o mandou
portar-se imbecilmente?
Vai
encarar? Não vê que sou mais forte?”
Tinha Aksel
realmente um grande porte...
E como Erling
não o pudesse enfrentar
e ainda
julgando que mudaria de ideia
e realmente não
lhe faria tanto mal,
contentou-se em
reclamar: “Desleal
foi nossa
própria mãe o apelidar...
E agora vejo
que é desleal de fato!...
Porém antes de
acabar nossa odisseia,
ainda o verei
sofrendo em desacato
por ter agido
com desonestidade,
pois Deus
castiga quem age com maldade!”
“Ah, é assim?”
disse Aksel zangado
e tomando uma
flecha do carcás,
furou-lhe os
olhos, inopinadamente:
“Não vai ver
nada daqui para a frente!”
E ainda riu-se
do pobre desgraçado,
enquanto o
sangue dos olhos lhe escorria,
sem qualquer
pena do infeliz rapaz,
que em dor
terrível os olhos protegia...
“Sabe o que
mais? Pois já me vou embora!
Tente encontrar
o seu caminho agora!...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS IV
Assim Aksel foi
embora, às gargalhadas,
deixando Erling
com dores e sangrando,
sem dúvida a
demonstrar ser Desleal
ao próprio
irmão, Erling o Leal,
surpreso e
faminto, nas trevas espalhadas;
mas de repente,
Aksel retornou!
Pensou Erling
que o estaria auxiliando,
mas ao
contrário, Aksel lhe falou:
“Lembrei que
dos anzóis não mais precisa,
mochila ou
arco... Mas lhe deixo sua camisa...”
E de novo foi
embora o mau irmão,
deixando Erling
totalmente despojado,
sem ao menos
mais socorro lhe pedir,
sabendo ser-lhe
inútil insistir...
Passou a noite
encolhido ali no chão,
mas de manhã
escutou uns passarinhos
e tateando, viu
seu cantil abandonado...
Lavou os olhos,
que ardiam qual se espinhos
tivesse ali
cravados... Arranjou galho quebrado
e nele se
apoiou como em cajado...
Passou o dia
errando pela mata
e acostumou-se
aos ruídos, afinal;
e ao ver o
canto dos pássaros calar
procurou ponto
para se abrigar...
De alimento
qualquer fera à cata
podê-lo-ia eleger
em refeição...
E ainda por
tato, achou carvalho triunfal,
subindo aos
galhos na maior tribulação;
e se ajeitou
sobre forquilha grossa,
embora a fome
satisfazer não possa...
Quando ouvir os passarinhos novamente,
saberei que é dia e procurarei caminho...
Umas bolotas
começou a mastigar, (*)
pobre comida
que não o podia alimentar...
E enfim dormiu,
bem incomodamente,
só acordando ao
escutar conversa...
De algum modo,
entendeu o rapazinho
aquelas vozes
de entonação diversa:
norueguês, mas
com sotaque arcano:
logo entendeu
que nenhum era ser humano!
(*) Frutos do carvalho, impróprios para consumo
humano.
OS QUATRO
TRANSMORFOS V
Erling
encolheu-se bem em sua forquilha:
Nada podia ver, porém podia ser visto!
E na conversa
prestou a máxima atenção:
eram transmorfos,
seres de transformação!
E se metera diretamente na sua trilha!...
Logo soube que
um deles era Lobisomem;
uma
Raposa-mulher, santo poder de Cristo!
A voz profunda
pertencia a um Ursomem
E um Ouriçomem
o quarteto completava: (*)
Se o descobrissem, qualquer um o devorava!...
(*) Fera europeia, semelhante ao porco-espinho.
Ficou imóvel,
quase sem respirar,
a conversa dos
quatro ainda escutando
e ouviu dizer
que era a Noite de São João,
nas terras
nórdicas, o solstício de verão, (*)
quando os seres
mágicos podiam se mudar,
sem grande
esforço, em humanos similares;
aqueles
transmorfos estava festejando,
como quatro
pessoas, assentados em lugares,
com talheres e
cálices a comer e a beber:
enquanto
animais seria impossível de o fazer!
(*) O dia mais longo do ano; o solstício de inverno é
o mais curto.
Ele escutava
dos cálices o tinido
e o barulho nos
pratos dos talheres,
sua triste fome
apertando ainda mais...
Mas o medo o
oprimia por demais:
estando cego,
caso fosse perseguido,
não teria a
menor oportunidade;
seria morto por
aqueles seres,
porque eram
perseguidos, na verdade,
pelos galgos do
rei e os batedores,
cem cavaleiros
e outros tantos caçadores!
Se o
descobrissem, quereriam se vingar
ou pensariam
que do rei fosse espião!
Mesmo subindo a
fumaça da fogueira,
prendeu espirro
e trancou tosse mais certeira,
por mais que
desejasse partilhar
desses
transmorfos a suntuosa refeição...
Se o
encontrassem, não haveria perdão
e num momento
de desesperação,
pensou em se apresentar,
buscando a morte,
melhor até que
cegueira, malfadada sorte!...
OS QUATRO
TRANSMORFOS VI
Depois de
saborearem a sobremesa,
cada um deles
um charuto foi fumar...
Subia o fumo de
Erling ao nariz:
de novo, não
espirrou só por um triz!
Disse a Raposa-mulher,
com sua vozinha tesa:
“Agora, cada um
conta uma história!...”
“Mas qual o
tema que iremos abordar?”
“Sobre o Rei da
Noruega, a triste escória
que nossa raça
vive a perseguir
e se pudesse,
todos nós iria extinguir!...”
Então Pardo, o Ursomem,
começou:
“Ora, esse Rei
da Noruega enxerga mal...
Foi só por isso
que não pôde me matar
depois da
décima flecha me atirar...
E com nenhum
dos cavaleiros concordou
que ao invés
dele o couro me alvejassem!
Foi a minha
sorte, é claro, é natural...
Mas se acaso os
olhos dele se lavassem
com a água
acumulada pelo orvalho
nestas folhas
recortadas do carvalho!...”
“Que quer
dizer?” os outros indagaram.
“Ora, se
recolhido logo de madrugada,
esse orvalho
possui a propriedade
de curar até a cegueira
de verdade!
Mas é só este
carvalho que abençoaram
as antigas
fadas que habitavam por aqui
e agora se
foram para outra morada,
fugindo aos
homens, conforme compreendi,
pois os padres
as chamavam feiticeiras
e agora prendem
até as pobres curandeiras!”
“Isso é
verdade,” disse a Raposa-mulher,
“Eles perseguem
até gente inocente,
porque ficaram
já velhas e feias...
Têm de fugir
dos fanáticos às teias;
no calabouço do
rei já não há sequer
lugar para
criminosos verdadeiros!...
Por certo, não
era assim antigamente...
Porem eu me
vinguei desses traiçoeiros:
toda a água que
eles bebem amaldiçoei
e até muitos
ribeiros eu sequei!...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS VII
“Mas se essa
gente do castelo só soubesse!
No pátio em
frente, existe um manancial
de água doce, pura
e deliciosa,
para o preparo
de remédios poderosa!...
Mas o pai do
rei, porque lama ali houvesse,
mandou calçar
todo o pátio com lajotas!
E agora todos
bebem e comem mal:
muito bem feito
para tal bando de idiotas!
Se dependesse
de mim, morriam de sede,
que é
justamente o que sua maldade pede!...”
“Ora,” disse o
Ouriçomem, “tudo isso está bem,
mas o rei ainda
manda seus galgos me caçar
e só não me
acertou por ver tão mal!...
E se demonstra
meu inimigo mais mortal,
só porque gosto
de comer frutas também;
E por querer
aproveitar as suas maçãs,
algumas vezes
entrava em seu pomar...
Suas armadilhas
se mostravam vãs,
porque eu sei
escavar por sob a terra,
e até o
presente, vou ganhando a guerra!...”
“Mas isso é
tudo uma questão de egoísmo:
eu me
contentava com as frutas pelo chão;
nem que
quisesse, nas macieiras subiria...
mas o tal rei
nem sequer isso permitia!...
Então lembrei
de um antigo cataclismo,
que fez desabar
uma certa mina de ouro...
Fui escavando e
o encontrei em profusão;
depois forjei
longa corrente com o tesouro
e em torno do
pomar eu a enterrei!...
Sequei as
árvores com a mágica que usei!...”
Mas é claro que
basta desenterrar
Essa corrente
e, logo de imediato,
todas as
árvores reflorescerão
e em abundância
maçãs produzirão...
Mas nunca que o
rei irá adivinhar
esse meu
truque, nem ninguém do seu castelo!
Maçãs não como
mais, é um triste fato,
mas não terão
sequer um fruto belo...
Muito bem feito
para aquele rei malvado:
compre comida
ou então morra de esfomeado!...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS VIII
“Todos odiamos
esse Rei da Noruega,”
falou o
Lobisomem, “pois nos persegue sem razão...
Dizem os padres
que nós somos do mal,
mas só somos de
outra espécie, no final...
O nosso povo
ele mata quando os pega,
sob o pretexto
de que é um caçador!
Pois meu castigo
foi de sua própria religião:
é meio cego
esse mau perseguidor
e numa missa,
quando o rei foi comungar,
um pedacinho da
hóstia o fiz largar!...”
“E por fresta
do chão caiu a migalha...
Sob as tábuas
uma rã estava escondida,
que engoliu a
santa hóstia bem depressa,
mas não a pôde
comer, tornou-se espessa
e ela secou-se
tal qual se fosse palha...
Mas a princesa
enfeiticei em surda-muda!
E assim será
enquanto a hóstia for perdida
nessa garganta
imunda em que se gruda!...
Só que o problema
teria fácil solução:
era só arrancar
as tábuas do chão!...”
“Encontrariam a
rã seca com a migalha
e era só
abrir-lhe a goela e retirar,
para à princesa
logo depois dar a comer,
com mais um
pouco de água benta a beber,
que a cura é
imediata, sem ter falha!
Mas para sempre
ela há de ficar assim!
Como o seu pai
iria jamais imaginar
que sua miopia
a ensurdecera, enfim?
Belo castigo
para essa má raça de bobos,
que só sabem
perseguir os pobres lobos!...”
Os quatro seres
mágicos, finalmente,
acabaram os
charutos e as histórias...
“Chegou a hora
de irmos embora;
logo chega a
madrugada e, nessa hora,
só animais
seremos novamente,
até o equinócio
de setembro, (*)
do dia e noite
idênticas suas glórias!
Depois, só no
solstício de dezembro...
Só quatro vezes
ao ano nos mostramos
igual que
humanos... Bem, para as tocas vamos!”
(*) Quando a
noite e o dia têm igual extensão.
OS QUATRO
TRANSMORFOS IX
Erling, o Leal,
esperou a madrugada,
até sentir do
orvalho a sã frescura
e foi tateando pelas
folhas, com cuidado,
deixando cada
olho bem lavado...
Mas a
princípio, não lhe adiantou nada
e já ficara
outra vez desiludido,
quando a luz do
dia brilhou pura,
sua vista igual
ao que antes havia sido!
Aos céus
agradeceu, em sincera prece
e bem depressa
de sua forquilha desce!...
E no momento em
que saiu da mata,
viu à distância
um garboso castelo:
Só pode ser o do Rei da Noruega!
Tenho fome: se alimentar-me nega,
será a história dos transmorfos bem exata!
Mas no portão,
quando foi pedir trabalho,
não precisou
demonstrar um grande zelo:
“O rei contrata
até mesmo algum paspalho,
feito você!”
disse um guarda, em zombaria,
“para ajudar
nesse canal que se abriria...”
Ora, Erling
tinha enchido o seu cantil
com o orvalho
retido no carvalho,
só não queria aquela
água beber,
que melhor
utilidade poderia ter...
Mas do castelo
era a água mesmo vil
e até a comida
tinha gosto de enlameada...
Do aqueduto foi
trabalhar no talho,
mas desde as
fontes a água era estragada,
que a
Raposa-mulher fizera feio estrago
por ser caçada,
aos homens dando o pago!
Os operários
pareciam adoentados
e mesmo os
guardas em más condições...
Erling
aplicou-se com afinco à obra,
doía-lhe o
estômago da tal água salobra;
Até do rei
estavam os passos perturbados
enquanto esse
trabalho inspecionava...
Chegaram
cozinheiros com as rações;
bando de
pássaros logo revoava,
competindo com
os pobres operários:
das refeições
conheciam já os horários...
OS QUATRO
TRANSMORFOS X
Com arco e
flechas o rei tentou-os alvejar,
mas não
conseguiu acertar ao menos um
e os
passarinhos pareciam já saber
que perigo
algum estavam a correr...
Então o rei
começou a se lastimar:
“Ai, quem me
dera recobrar a vista!
Quando eu era
moço, não havia nenhum
que eu não
atingisse em tão curta pista!...
Quem me curasse,
receberia um tesouro:
pagar-lhe-ia
até cem coroas de ouro!... (*)
(*) A coroa (krone)
é a moeda da Escandinávia.
Então Erling do
rei aproximou-se:
“Majestade,
acho que tenho sua cura...”
“Como assim,
por acaso é cirurgião?”
“Não,
Majestade, mas tenho uma poção
com que nossa
família acostumou-se,
há muitos
séculos, contra enfermidades...
Lave seus olhos
com tal tisana pura:
os carvalhos
possuem certas propriedades.”
É claro que do
Ursomem não falou,
mas o semblante
do rei se deslumbrou...
Sobre a mão
algum orvalho derramou:
“Tem bom
aspecto... Não me custa tentar...”
E nos olhos foi
esfregando com cuidado.
Em pouco tempo,
ficou maravilhado:
“A minha visão
realmente se clareou!...
O seu remédio é
até miraculoso
e o seu rosto
finalmente vou enxergar...
És um rapaz
robusto e bem formoso...
Vou mandar que
lhe dê o pagamento
o tesoureiro da
corte, num momento!”
Então Erling
aproveitou tal situação:
“Majestade, é
bem ruim a água da corte...”
“Ah, é
horrível, por isto este aqueduto,
mas até agora foi
inútil seu conduto:
desde a
nascente a água cheira a poluição!...”
“Majestade, a
falecida senhora minha avó
contava haver
um chafariz bastante belo
no pátio do
castelo; mas havia um lamaçal só
e o senhor rei,
seu pai, mandou tudo calçar...
Se me permite,
posso a laje levantar...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS XI
“Você
sozinho? Será mágico também?”
“Não,
Majestade, junto com vários operários...
Mas antes
preciso olhar bem o lugar...”
“Ora, vamos,
que é que custa experimentar?
Pegue essa
gente, que nem força têm
na escavação de
meu pobre aqueduto...
Ou são todos
vagabundos salafrários
ou é mesmo a
água ruim desse conduto!...”
Naturalmente, a
Raposa-mulher não mencionou!
Não era tolo e
outra desculpa ele inventou...
E dito e
feito! A laje foi arrancada
e a água jorrou
num chafariz!...
Água abundante,
pura e muito doce,
qual melhor
água impossível fosse!...
Toda a corte
ficou embasbacada...
“Você me saiu
melhor do que a encomenda!”
disse-lhe o
rei: “Alguém que sempre quis
para me
aconselhar em cada senda!...
Não me diga que
consegue me explicar
qual a razão
por que secou o meu pomar...?”
“Acho que sim,
só não garanto, Majestade.
Mas se me
deixar escavar a seu redor,
posso pegar o
que encontrar para mim?”
“Eu lhe
permito, mas somente se no fim
as minhas
macieiras brotarem novamente!...”
“Eu vou tentar,
Majestade, mas sozinho...
Esse trabalho
pode ser comprometedor
e causar dano a
um operário bem pertinho...”
E prontamente,
começou a escavar,
corrente de
ouro bem fácil a arrancar!...
Mas estava
preta de terra e de sujeira
e assim ninguém
percebeu que era de ouro.
O rei sorriu:
“Por mim, fique com ela,
nem que o pomar
não dê de novo maçã bela!”
Erling
desenterrou a corrente inteira
e como por
milagre, esse pomar
começou a
brotar como um tesouro!
Folhas e frutos
depressa a borbotar!...
Disse o rei:
“Ah, vou nomeá-lo meu vizir,
Pois finalmente
em paz posso dormir!...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS XII
Mais uma vez
Erling não contou
que do
Ouriçomem recebera a informação
e disse ao rei,
ar inocente, bem bisonho:
“Foi a minha
avó que numa noite teve um sonho,
em que eu
achava corrente de ouro num pomar...”
“Você achou,
mas de ferro era a corrente,”
riu-se o
rei. “Foi maior dela a imaginação:
seu nome lhe
daria riqueza, certamente!...” (*)
“Mas,
Majestade, veja a cor dessa cadeia:
não tem
qualquer ferrugem na sua veia!...”
(*) Erling significa “filho do chefe” ou “filho do
rei”.
“Sei muito bem
que o senhor já me deu,
mas não quer de
volta, se for feita de ouro?
ou pelo menos,
aceitar a sua metade...?”
E disse o rei,
com a maior sinceridade:
“Não foi por
nada que o nomeei ministro meu;
se for de ouro,
fica sendo o seu salário,
pelos próximos
dez anos, sem desdouro
para o erário
real... Se for ferro ordinário,
cem coroas por
ano lhe dará meu tesoureiro,
para vestir-se
irá gastar muito dinheiro!...”
Erling se
surpreendeu com tal generosidade,
bem diferente
do quadro antes pintado,
pelos
transmorfos que no chão vira assentados;
mas é claro que
tinham outros cuidados,
pois
perseguidos haviam sido em realidade;
com operários e
o rei foi ao aqueduto,
poupando o
fluxo doce do chafariz jorrado,
só a água ruim
empregando desse duto;
e quando foi a
corrente assim lavada,
brilhou o ouro
tal qual em luz de fada!...
Mas nem assim
se desdisse o velho rei:
“Não, meu amigo,
esse ouro é todo seu,
como falei, por
dez anos de salário,
desde que aqui
me permaneça solidário
e em todo o
reino faça cumprir a lei!...
E falando
francamente, ainda é pouco,
porque a visão
do olhar me devolveu,
trouxe água e
frutas e somente um louco
contestaria a
sua real capacidade:
governará meu
reino, na verdade!...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS XIII
“Agora que
estou a enxergar perfeitamente,
volto a passar
meus dias a caçar!...
Com água pura
melhorou nosso alimento
e já estaria
tudo a meu contento,
se minha bela
filha falasse novamente!...”
“Senhor meu
rei, minha avó teve outro sonho...”
“Não me dia que
com ela iria casar!...”
Eu não mereço
um futuro assim risonho,
meu bom rei,
mas no sonho ela assistiu
quando parte de
sua hóstia ao chão caiu...”
“Foi enquanto
Vossa Majestade comungava
e a migalha foi
correndo pelo chão,
por entre as
tábuas e numa fresta se perdeu:
havia uma velha
rã lá embaixo, que a comeu,
mas engolir não
a pôde, logo a seguir secava...
Como uma rã
impura comeria algo sagrado?”
Falou o rei,
com uma estranha inquietação:
“Então minha
filha não cometeu nenhum pecado!
Foi justamente
então que ensurdeceu:
nada nos disse,
pois também emudeceu!...”
“Mas eu achei
que fosse coincidência...
Não enxerguei
essa parte que caía...”
“Conforme o
sonho da Vovó, se Vossa Alteza
mandar tirar
essas tábuas, com presteza,
se provará mais
esta previdência...”
“O problema
será ao bispo convencer...”
“Mas então, o
senhor só lhe diria
que achou estar
o assoalho a apodrecer
e como quer
sempre bela a sua igreja,
um novo
assoalhamento assim se enseja...
“Você é muito
esperto, realmente!...
Mas qual será a
utilidade disso?...”
“É que no
sonho, essa migalha que se assenta
a vossa filha
viu comer com água benta,
passando a
falar e a ouvir perfeitamente...
Como ela é
surda, nem ficará sabendo
que saiu da rã,
nem pensará em feitiço...”
“Ora deixe, que
com o bispo assim me entendo,”
disse o rei.
“Vamos então pôr mãos à obra!...”
O bispo à
vontade do rei logo se dobra...
OS QUATRO
TRANSMORFOS XIV
Começaram por arrancar
perto do altar
e realmente uma
rã se achava ali...
Erling e o rei
nada disseram a ninguém,
Só pediram água
benta para beber também,
senão a rã até
os podia amaldiçoar...
Em segredo,
levaram a migalha à princesa,
que comeu e
bebeu sem rififi...
E logo ouvia e
falava com beleza!...
Ela abraçou-se,
então, ao salvador:
“Papai, desde
que o vi, senti amor!...”
O rei meio
relutou, mas só um pouco;
ninguém quisera
com a surda-muda se casar
e já
ultrapassara a idade costumeira,
mesmo sendo do
rei a única herdeira...
Mas discutiram
até o rei ficar rouco
e alfim, no
casamento ele assentiu...
Melhor genro
não poderia encontrar,
que ser da
antiga nobreza descobriu...
Com grande
pompa se celebrou o casamento:
com a água
doce, delicioso era o alimento...
Mas atraído
pelas festividades,
veio um mendigo
para pedir comida.
Erling logo
reconheceu o seu irmão,
Aksel Desleal,
mas estendeu-lhe a mão.
“Vejo bem que
passou dificuldades...”
“Já você está
feliz... Como a vista recobrou?”
“Fui ao carvalho
da floresta escondida,
lembrei um
sonho que nossa avó contou:
lavei os olhos
com o orvalho matutino...
E à miopia do
rei causei igual destino...”
Para Aksel,
muito menos que a ninguém,
iria contar a
real origem de sua sorte,
porque sabia
ainda ser mau e invejoso
e engendraria
qualquer jeito poderoso
de novos males
lhe causar também...
Deu-lhe comida,
roupas novas e dinheiro:
“Agora vá,
também encontre sua consorte,
mas não aqui,
porque este é o meu poleiro...
Por suas
maldade eu até o perdoarei,
mas junto a mim
nunca o tolerarei...”
OS QUATRO
TRANSMORFOS XV
Ora Aksel, ao
invés de ficar agradecido,
saiu de lá
pensando só em vingança...
Vou encontrar esse mágico carvalho,
farei grande provisão do santo orvalho;
serei um médico muito bem reconhecido
e entre o povo vou mentiras espalhar
até o ponto em que minha língua alcança!
Farei o possível para prejudicar
esse meu irmãozinho desconfiado
a quem o rei escolheu por afilhado!...
Ora, ocorria
ser a véspera do equinócio
e logo Aksel o alto
carvalho divisou:
ficava bem na
frente de sua trilha
e assim subiu e
se ajeitou numa forquilha;
comeu, bebeu e
adormeceu em ócio
até que os
transmorfos até ali chegassem...
Porém o Ursomem
de algo desconfiou
e foi falando,
antes que se transformassem:
“Ali se
encontra de novo o espião
que a nossas
vinganças causou destruição!”
“O que ele não
sabe é que a verdade
somente nos
solstícios nós falamos...
Nos equinócios
podemos dizer mentiras:
Irmã Raposa,
que na conversa insiras
o que o puder
prejudicar na realidade...
Irmão Ouriço e
também você, Irmão Lobo:
vamos mentir
enquanto conversamos,
para fazer
desse espião o nosso bobo!...”
Com o plano
todos quatro concordaram
E logo após, já
em norueguês falaram...
Mas se portaram
igual que da outra vez,
comendo bem,
tomando vinho à vontade,
depois fumando
cada um charuto Havana,
cada um
inventando a mentira mais insana...
Porém Aksel
pensou: Peguei o meu freguês!
Foi assim que descobriu os tais segredos!
Vou denunciá-lo ao bispo, na verdade!...
Mas vou escutar sem sequer mover os dedos,
descobrir como achar o meu tesouro,
depois causar a meu irmão o maior desdouro!
OS QUATRO
TRANSMORFOS XVI
Assim o Ursomem
começou a sua mentira:
“Quem pegar a
seiva desse alto carvalho
e nos olhos
passar, verá melhor
que qualquer
outra pessoa e ainda maior
será sua
inteligência, que se estira
ao ponto de
superar qualquer pessoa!...”
Disse a
Raposa-mulher: “No fim do atalho,
Se encontra uma
belíssima lagoa:
quem nela se
banhar, vira um atleta:
com mais dois
palmos sua altura se completa!”
Disse o
Ouriçomem: “Fale primeiro, Lobo!”
“Ora,” disse o
Lobisomem, “há uma fruta
que deixa cada
um em saúde perfeita...
São as bagas
negras de um arbusto que se ajeita
logo na margem
da lagoa: e até um bobo,
se as comer, se
tornará inteligente!...”
Disse o
Ouriçomem: “Ali do lado há uma gruta,
com uma
corrente de ouro inteiramente...
Quem a pegar
terá grande riqueza:
será tratado
qual verdadeira realeza!...”
De manhãzinha,
os quatro foram embora
e ficou o malvado
esperando a madrugada;
cortou a casca
do carvalho com sua faca,
passando a
seiva nos olhos, mas a laca
o deixou cego
totalmente nessa hora!...
Em desespero,
lembrou a história da lagoa
e se arrastou
até lá, sem enxergar nada,
mas a neblina o
atingiu igual garoa
e se jogou
dentro da água, acreditando
que ali a visão
estaria recobrando!...
Mas ao
contrário, quando saiu da água,
estava fraco,
todo torto e entrevado,
conservando a
escuridão de um pobre cego!
Mas não
descansou, até ter pego
aquelas bagas
do arbusto; e por sua mágoa,
perdeu o ouvido
e a fala inteiramente!...
Só conseguia
soltar grito abafado!...
Mesmo assim,
ainda crendo tolamente,
foi até a gruta
que diziam ficar perto,
mudo, cego e
surdo nesse lugar deserto!...
OS QUATRO
TRANSMORFOS XVII
Apalpando,
entrou na gruta até o fundo,
logo tocando
nos elos da corrente,
quando pensou: Encontrei o meu tesouro!
As minhas mazelas curarei a peso de ouro!
Mas logo sentiu
nos pés peso rotundo
e a seguir o
frio do ferro em cada mão
e então a cadeia
envolveu-o inteiramente!
Aksel Desleal
ficou preso e sem ação,
como castigo
pelo mal que já fizera
e mais ainda
pelo mal que pretendera!
Passou o rei
por ali, numa caçada
e ouviu do
prisioneiro os gritos roucos...
Logo arrancaram
a corrente da parede,
mas a cegueira
do infeliz não cede,
mal caminhava e
não falava nada,
além de parecer
nada escutar...
Mandou-o o rei
para o hospital dos loucos,
mas com Erling
foi a história comentar
e este foi a
examinar o prisioneiro:
que era Aksel,
reconheceu ligeiro!...
Instalou-o numa
casa da cidade,
atendido por
algumas empregadas,
contando à mãe,
que vivia em seu castelo
desde os dias
do casamento belo...
E sendo a mãe,
Astrid, com bondade,
foi cuidar de
seu filho tão enfermo;
com o orvalho
santo suas vistas já curadas,
mas continuou
surdo-mudo e por mais terno
fosse o cuidado
que mãe administrou,
do entrevamento
ele nunca se curou...
Com o bispo
Erling se mostrou um bom cristão
e muito ouro
para a igreja ofereceu,
deixando o
altar alegre e resplendente,
além de ajudar
do povo a pobre gente,
já que possuía
ouro em profusão...
Mas como o rei
tinha pontaria certeira,
para os animais
a segurança desapareceu
e os
transmorfos tomaram outra esteira:
para a Lapônia
os quatro se mudaram
e nunca mais à
Noruega retornaram...
EPÍLOGO
Ficou Aksel
Desleal entrevado até morrer,
em pagamento
por toda a sua maldade;
mas era surdo e
não podia falar;
embora visse,
nem a mão podia alcançar
qualquer pena
com que pudesse escrever
e assim a
Erling não pôde mais fazer o mal.
Já a princesa
engravidou com facilidade
e muitos filhos
tiveram, coisa natural
entre dois
esposos que se amavam
e a Noruega
inteira em breve governavam!
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