quinta-feira, 21 de agosto de 2014





MEIA-NOITE & MAIS
William Lagos

MEIA-NOITE I (16 AGO 14)

Dez para a meia-noite eles chegaram
e Meia-Noite os recebeu em casa;
os dez chegaram juntos, noite rasa,
sem um sinal de lua a visitaram...

Meia-Noite era bela e eles tiraram
a sorte entre os dez, que lhes embasa
a ordem desse amor como uma vaza,
em um carteado que todos aceitaram...

E Meia-Noite recebeu os dez,
com as devidas práticas de higiene;
e retiraram-se todos, encantados

com o amor de Meia-Noite, estranhas fés
de uma memória a continuar perene
por dez minutos logo desgastados...

MEIA-NOITE II

Meia-Noite descansou de madrugada.
Afinal, à meia-noite havia morrido
e os dez minutos que havia recebido
se desgastaram até não ser mais nada...

Meia-Noite lançou os olhos para a estrada
pela janela, contemplando enlanguescida
o Meio-Dia, que esperava em incontida
impaciência a missão já lhe aprazada...

Pois não seria visitado por minutos
porém, após a vinda da alvorada,
por quatro horas ou seis horas de fadas,

a demandar seus amores mais argutos,
todas ansiosas pelo seu favor,
até o meio-dia a distribuir calor...

MEIA-NOITE III

Meia-Noite foi depressa recolher-se,
pois em seguida passaria a madrugada,
no máximo umas horas, na encantada
modorra altiva do seu enfeitar-se...

Pois Meio-Dia costumava demorar-se
entre os quartos de hora da alvorada
e Meia-Noite assim seria visitada
bem antes de seu tempo dissipar-se...

Sim, Meia-Noite amava Meio-Dia
e Meio-Dia com ela se encantava,
mas só em instantes podiam se encontrar.

Enquanto a teia do escuro ela tecia,
Meio-Dia calmamente ressonava
para só depois das seis ir trabalhar...

MEIO-MINUTO I – 17 AGO 14

Meio-minuto para o meio-dia
já tem certeza de ser devorado
e para a noite ver-se rejeitado,
sem atenção para a ânsia que sofria...

Porém nascem mais minutos, à porfia,
sob a cálida atenção do Sol alado;
cada minuto vê-se então premiado
com cento e vinte tique-taques de valia...

São sessenta segundos, mas parecem
serem-lhe tantos para usufruir!...
E assim minutos pelos dias correm,

novos minutos nos ponteiros crescem,
ansiosos para a vida constituir,
enquanto, um a um, os velhos morrem...

MEIO-MINUTO II

Por sorte, entre nós é diferente:
não é preciso morrer para que nasça
o próximo ser humano, que então passa
a buscar igual destino permanente...

Se assim fosse, a geração vivente
talvez buscasse evitar a sua desgraça,
transformando seus filhos em fumaça,
mesmo antes de viver inteiramente!...

Muito mais somos medidos por ações
do que por precessão de tique-taques;
melhor ainda, sempre algum ato permanece,

mas dos minutos as breves durações
se precipitam, em ritmo de atabaques,
por essa fila que corre e não se aquece...

MEIO-MINUTO III

Mas os minutos, apressuradamente,
correm no tempo, sem saber jamais
que a maratona os desgasta por demais,
enquanto o tempo os engole, indiferente.

Talvez possua Cronos língua e dente
e assim mastigaria muitos mais,
para encaixá-los nas trevas do além-mais,
sempre faminto por ter mais comburente.

Cada segundo apenas um elétron,
a máquina do tempo a alimentar,
correndo ardente, como corre o nécton

para comer do plâncton o manjar, (*)
enquanto, sem gastar-se, passa o nêutron,
forjando o tempo em seu imenso mar...
(*) Nécton são os seres marinhos que se movem por si
e plâncton os que se deixam levar pela correnteza.

quetzalcoatl I  (2008)

com as asas da noite fiz pincel
para pintar teu rosto nas estrelas:
ficaram mais fulgentes, bem mais belas
do que antes que lhe desse esse laurel

e compusesse, em cor feita de mel
a constelação nova, que as donzelas,
lá no futuro apontarão, singelas,
como sendo esperança, paz, quartel...

pintei teu nome com o palor da Lua:
não foi o teu semblante, foi a poeira
que resultou de um Braille perfurante.

gastei a noite.  Cada asa fez-se nua,
até gravasse a letra derradeira
da negra luz escura e fulgurante.

quetzalcoatl II – 18 AGO 14

que se pode fazer depois que a noite
gastou-se inteiramente antes da aurora?
enquanto o Sol não brilha, a vácua hora
em que não há mais sombra em que me acoite?

ainda não chega a alba em seu afoite,
o lusco-fusco nem vem, nem vai embora,
nem o brancor, nem cinza ou negro explora,
nem gira um vento brando em seu açoite...

sinto que a culpa do limbo é toda minha:
essas estrelas que tanto colori
em tons roubados da noite evanescente;

nebulosas de ébano e ladainha,
cada qual reproduzindo o que sofri
sobre seu pano de fundo inexistente...

quetzalcoatl III

pintei de preto as estrelas e em magia
cada uma em cor moura espetalou-se,
e os traços de teu rosto, negra foice,
transformaram na luz que me fulgia...

em cada estrela que meu pintar vestia
eu recolhia uma lembrança doce
de uma noite de amor que igual me fosse
às memórias que o passado permitia...

e assim à noite dourei o seu escuro
como insolente rival ao dealbar;
à terra em trevas roubei os seus esboços

e recortei o luar em talhos grossos,
nesse dilúculo de delírio puro,  (*)
arco-íris cinza de lama tumular...
(*) Primeira luz difusa da manhã.

quetzalcoatl IV

e ao ver que o dia tardava e a noite fora
enferrujada inteira por meu atrevimento,
em cinza a rodopiar sem movimento,
fui aos coriscos comprar-lhes nova aurora;

mil relâmpagos esfuziaram-se em tal hora,
mas seu fulgor durou apenas um momento;
fui aos vulcões pedir um adiantamento
de suas erupções e a lava que aflora

empreguei para pintar a madrugada
e restaurar-lhe a pátina perdida
com nova e piroplástica avenida (*)

e assim tracei minha noite desvairada,
mil espectros o arcabouço dessa vida,
que logo se extinguiu, sem deixar nada...
(*) Nuvem de fumaça fervente que brota dos vulcões.

quetzalcoatl V

e com as asas do vento fiz arpéu
e me lancei audaz sobre esse abismo;
mais feroz do que o próprio cataclismo,
eu me joguei a favor do macaréu.

fui encontrar o dia abrindo o céu,
horas à frente, farto de embolismo,
e me pus a perfurar, em solipsismo,
essas camadas de luz sob o escarcéu

de Aurora, Febo, Apolo e seguidores,
que atiçaram sobre mim a sua quadriga,
sem conseguirem virar meus embornais;

e assim voltei, espalhando luz e ardores,
à contragosto do divinal auriga,
mas preenchendo os rasgos abismais.

quetzalcoatl VI

e com as asas da aurora assim pintei,
em branco e azul essas portas e janelas
que deixaria nessa noite, quando estrelas,
por pura obstinação, aquarelei...

e assim fazendo, a velha obra eu apaguei
com que deixara as estrelas bem mais belas,
seu brilho se esgotou, bem mais singelas
foram ficando, enquanto o céu molhei...

elas piscaram, queixosas, bruxulearam,
desapossadas do artificial fulgor
e até o teu nome sob a luz já se escondeu.

e a essa noite que os delírios incendiaram
tornei mais clara, mas o vácuo se encolheu,
enquanto o dia já avançava sem temor...

PALAVRAS I – 19 AGO 14

Palavras podem ter amplos ou restritos
significares de uma só coisa, unicamente,
ou conotar qualquer coisa diferente
para quem quer que manipule os ditos.

Certas palavras embaraçam teus agitos,
mas outras tino têm tão permanente
que manifestam para toda a gente
uma simples certeza em curtos gritos.

É por isso que se definem termos,
já que palavras mais escondem do que mostram,
são armadilhas em que teus passos caem,

são calabouços em desertos ermos
que o comunicar humano só mais prostram,
como tão bem explicou Wittgenstein... (*)
(*) O criador da filosofia da palavra.

PALAVRAS II

Assim se um dia eu te falar de amor,
não saberás se é um amor sobressaliente,
tal qual se diz que o de Deus é onipresente,
enquanto o humano oscila em seu favor.

Usa palavras com prazer o trovador,
mas é a seu bel-prazer, mui certamente;
sabe deixar teu coração contente,
mas a que ponto esse seu verbo tem valor?

Que valha mil palavras uma imagem
é lugar-comum dez mil vezes repetido,
mas qual imagem representa “Amor”?

Em cem mil características dividido,
a cada um enfeitando a sua miragem,
que então é aceita com maior ardor!...

PALAVRAS III

Vejo as palavras como seres vivos,
que nascem, morrem e até se reproduzem,
quando ao acaso com outros termos cruzem:
tremenda coisa são os verbos incisivos!

Trazem bandeiras como exércitos ativos,
nas mil conotações que nos aduzem,
nas mil paisagens a que nos conduzem,
em seis mil dédalos e meandros tão esquivos!...

E elas bailam sempre, a seduzir,
odaliscas com pretensão de ser escravas,
quando, de fato, são nossas senhoras!

E assim as lustro, fazendo-as reluzir
e em versos as disponho como lavas,
para aquecer-te as derradeiras horas...

PALAVRAS IV

Quem mais que eu com tais seres brincou?
Cada palavra é menina caprichosa
que pode emurchecer ou ser viçosa,
que já te pôde dar à luz ou te matou!

Qual a palavra que assim significou
para ti mesma a seiva saborosa
que para mim escorreu tão dadivosa,
mas para ti, ao contrário, desgostou?

Cada palavra valendo mil imagens,
mil cores, cheiros, cantos, melodias,
qual a palavra que assim escolherias?

Qual o fascínio dos milhares de plumagens
que um simples nome te traria à mente,
sem a mínima atração para outra gente?

INSERÇÃO I – 20 AGO 14

Santas coxilhas, sobrou-me hoje espaço
para enviar, por debaixo do pelego
o clarividente olhar que tem o cego
na avaliação solerte de teu passo;

de algum modo, encontro o teu regaço
e minha semente no teu ventre lego,
sem querer-te soltar, no meu apego,
lugar não tenho senão no teu abraço;

e as casuarinas murmuram, aprovando,
enquanto nosso cheiro se destila,
em rica mina de joias bicolores,

colar que outro cordão já vai buscando,
nesse ardor que se renova em doce fila,
a cada vez que se repetem os amores...

INSERÇÃO II

Eu canto o amor porque o amor eu amo
e eu canto a ilusão porque me iludo;
o engano de mim mesmo firme estudo,
embora às vezes só depois de esforço insano;

eu canto o amor porque me causa dano
pensar na vida sem o amor de escudo,
que a ausência de um amor é mal agudo
e é por isso que a mim mesmo tanto engano;

somente em crer que algum seja permanente,
mais forte que outro humano sentimento,
mais resistente que qualquer outra emoção,

embora saiba ser bem diferente
a tal quimera que só gerei no pensamento,
mas me devora lentamente o coração.

INSERÇÃO III

Não sendo atleta, soube escrever versos
e neles corro a minha maratona;
afundado na poesia, volto à tona,
em mil estilos de natação diversos...

Meus amores do amor assim conversos
no amor do canto que não me desabona,
no amor da canção que não detona
nenhum dos sonhos em lamentar dispersos;

e não me perco em gritos de entusiasmo,
nem luto lado a lado com a torcida,
dando vazão à feroz selvageria,

embora saiba aceitarem com marasmo
essas palavras, pois não há partida,
nem qualquer campeonato de poesia...

INSERÇÃO IV

Entre os gregos, tudo era diferente:
davam coroas de louros aos aedos,
acompanhados de lira seus folguedos,
por mais que fosse atlética tal gente;

não era o amor, contudo, o mais potente
dos temas que apreciavam os tempos ledos;
eram mais cantos de guerra contra os medos,
louvor dos deuses a traçar fado inclemente;

os seus cantos de amor tragicomédias,
que permitiam à hubris ressaltar:
por tais amantes sofriam as plateias

e até choravam perante tais tragédias,
sem dos vizinhos ninguém se envergonhar,
ausência e perda temas de epopeias...

INSERÇÃO V

Já os romanos amavam mais o Amor,
(por ser o oposto de Roma, sua cidade?)
Vergílio a descrever lubricidade,
porém Catulo mil sonhos de candor;

e assim me inscrevo no louvor do amor,
seja inserido em total sexualidade
ou ingenuamente no amor da castidade;
qualquer que seja, dou-lhe o meu favor;

mas amo o amor mais do que a saciedade,
“o que podia ter sido” dos românticos,
par a par com os breves anos de magia

e mesmo o amor da mística amizade
que os santos expressaram em seus cânticos,
nessa paixão em que a Grande Mãe luzia...

INSERÇÃO VI

Mas tenho horror ao ódio e neste espaço
não vou deixar um branco, que um soneto
ainda cabe sob as borlas, bem secreto
dessa colcha a proteger do amor o abraço;

para tudo nesta vida encontro um laço,
sempre há conexão entre um inseto
e esse jato de luz que molha o teto:
os acasalo aqui e outro poema faço;

a vida inteira vejo feita de poesia,
mesmo que a manifeste em triste canto,
nesses tercetos finos de ilusão,

que aqui espelho toda a fantasia
que me reveste a alma qual um manto
e a lanço inteira no teu coração...

SUPLEMENTOS I – 21 AGO 14

Quem não sabe chutar, assopra vuvuzela,
sem rouquidão de gritos de entusiasmo;
cada vizinho a seu lado fica pasmo,
com o som que entra no ouvido e chega à goela!

Quem sofre mais são os tímpanos e a sela
que chamam de bigorna, em tal marasmo;
o martelo e o estribo, nesse orgasmo,
estremecem com furor e sem balela!

O que me espanta é que o aceite a multidão,
em sua fúria assim sacrificada,
perfurando os labirintos e a cocleia!

E quem se atreve a dizer que ainda são
selvagens, em sua torcida organizada
os africanos que a sopram em epopeia?

SUPLEMENTOS II

Quando criança, eu tinha cornetinha,
mas mandavam assoprá-la no quintal,
que aos ouvidos da família fazia mal
o som soprado por minha gargantinha!

E se na rua eu saísse e na boquinha
colocasse o instrumento em tom fatal,
os transeuntes protestavam o som bestial
desse clarim que deles se avizinha...

Sem dúvida, eram tempos mais tranquilos,
mesmo nas épocas das revoluções:
o povo em casa se encolhia, silencioso!

Havia mugidos, relinchos, sons de grilos,
mas não motores a imitar trovões
e até mesmo o torcedor mais cuidadoso...

SUPLEMENTOS III

Porém hoje a audição se acostumou
com troares pelas ruas e calçadas,
com o som fanhoso das tevês ligadas,
com o cricrilar que tanto se espalhou

enquanto a praga celulárica aumentou
e até se escutam discussões desenfreadas
de alguém consigo mesmo nas paradas
de ônibus ou de um passante que chegou...

E o conceito de festa ou de balada
se transformou em duzentos decibéis,
quando antes era simples canção bela...

Não admira que nos estádios apreciada
seja essa banda de roucas cascavéis,
por semissurdos que adotaram a vuvuzela!

RECARGA I – 22 AGO 14

Não haveria motivo, nesta hora,
para enviar-te sequer um telegrama,
que poderia te levantar da cama,
para atender à porta, sem demora;

hoje em dia, um novo meio se incorpora
e no seu leito protege nossa dama;
o carteiro já não pisa pela lama
e o atendimento da web nos agoura..

Sempre está feito, tecido esse cordão
que conduz o telefone e a fibra ótica
e a cada dia impõe novo compromisso,

mas me rebelo contra tal condão,
condizente com a antiga semiótica
e para redes sociais eu sou remisso!

RECARGA II

Bem poucos são os amigos que conheço
a recusar-se a adquirir um celular,
porém enquanto alguém não me obrigar,
prosseguirei sem lhes ter qualquer apreço.

Para minha própria vida desconheço
a utilidade de qualquer um me encontrar
quando nas ruas rápido eu andar,
enquanto a passos cada quadra eu meço!

Pois mesmo o fixo raramente eu uso,
desde que adquiri o computador,
que infelizmente, até da filatelia

me afastou, pelo constante fuso
com que me enrola a vida em seu furor,
muito mais, realmente, que eu queria!

RECARGA III

Serve-me bem, contudo, ao transmitir
de meus arroubos, a fim de incomodar
pobres amigos ou até mesmo perturbar
os conhecidos que nem querem me ouvir;

e de que modo eu poderia declamar
longos poemas para o lento digerir
de quem decerto preferiria dormir
do que por tantos minutos me escutar?

E quem me diz, em tais redes sociais,
que alguém deseje apenas ler meus versos,
quando de fato, de si é que quer falar?

E quem lhes diz que suas questões pessoais
eu queira ouvir, nos momentos mais diversos,
quando de fato preferiria trabalhar?

HUITZILOPOCHTLI I   (8 mar 11)

Tive uma ideia, mas não sei onde a guardei...
Ou quem dirá, quem sabe, já a perdi...
Guardei-a no bolso e depois me distraí:
foi-se essa ideia e nunca mais lembrei.

Não faço ideia de que tipo ou de que lei
foi essa ideia que nunca mais eu vi.
se foi aviso ou ideal que concebi,
caiu do bolso e nunca mais a achei...

Quando se sabe sobre o que era uma ideia,
viva em si mesma, no fragor do pensamento,
sempre há um anzol para tal prosopopeia:

a gente encontra alguma senda, alguma aleia,
quando se sabe se é razão ou sentimento
que desenrole o pergaminho da epopeia...

HUITZILOPOCHTLI II – 23 AGO 14

Porém, se não se tem a menor pista
sobre qual seja sua importância ou natureza,
anda-se às cegas, não se sabe com certeza
qual borbulhar de ondas sobre a crista;

de fato, sem se saber em que consista,
se essa ideia retornar, em aspereza,
a acolhemos, talvez, com gentileza,
mas sem reconhecer o que se avista;

realmente, é uma estranha situação
procurar um pensamento que se teve
e se deixou partir sem mais cuidado;

de nada serve abrir a inquirição;
quando se o ache, até parece nunca esteve
dentro em nosso coração atribulado...

HUITZILOPOCHTLI III

Das ideias que já tive, a maioria
transmogrifei em poemas e sonetos;
escandalosos alguns, outros discretos,
só descrevendo o instante em que as sentia;

quando uma ideia a correr na mente via,
sei que as redes neurais têm seus secretos
meandros, mil destinos incompletos
e então a ponho sob a lupa onde jazia;

e só depois de examinar seus mil detalhes
passava a descrevê-la qual podia,
às vezes com profunda claridade;

mas em outras – e te peço, não me ralhes –
redigi-la à perfeição não conseguia
e me perdia em vã obscuridade...

HUITZILOPOCHTLI IV

E depois, via que algumas não eram minhas,
mas assaltaram pelos olhos ou ouvidos;
pelo nariz e a língua ideais trazidos
de mentes nobres ou de gentes mais mesquinhas;

ao ver os bagos das venenosas vinhas,
muita vez tive cuidados em repeli-los
e em geral o foram, porém mais desabridos
foram conceitos mais nobres em gavinhas,

crescidos dessas belas trepadeiras
que alguma vez descobria a meu redor
e que vibravam nessa mesma onda

com que soavam minhas ideias verdadeiras
e as grampeava e afunilava com ardor,
embora algumas se escapassem de minha sonda.

HUITZILOPOCHTLI V

E ao perceber achar-se ideia alheia
acolhida entre aquelas que gerei,
o crédito devido sempre dei,
reconhecendo ser de estranha veia;

afinal, desde a infância, foi minha ceia
a leitura dos mil livros que encontrei;
em tais grafias ao pouco me formei
e cada página ainda a mente me permeia,

consoante disse, há milênios, Salomão:
“Nada de novo existe sob o Sol”,
sendo impossível ser de todo original,

porque não é “o quê se diz”, então,
porém “como se o diz” o real farol
que acende ou desentulha esse canal.

HUITZILOPOCHTLI VI

Por isso, digo que os poemas não são meus,
mas apenas reproduzo essas alheias
ideias, mais as belas do que as feias
e as coloco, em buquês, nos braços teus;

sopra-te o vento com os enganos seus
e o tempo estende sobre ti suas teias
com casulos de ideias e incendeias
a treva interna sob o olhar de Deus...

Mas essa ideia que eu tive e que perdi
não sei se foi só minha ou a recebi
pelo poder de divindade azteca...

Somente sei que jamais será alcançada,
sequer resquício da memória alada
que toma poeira na minha biblioteca...

PROTESTOS I – 24 AGO 14

Cartas náuticas não existem para a vida,
cada um tem de descobrir os seus escolhos;
as próprias leis são pouco mais que antolhos
que ao livre-arbítrio levam de vencida;

nossa própria consciência é a escolhida
pelo espírito, a orientar os nossos olhos;
porém o Estado se expandiu em tantos fólios,
que nem há margem para sua acolhida;

mas estas cartas da Constituição
nos servem mais para desorientação
do que firme indicação para o viver,

pois seus recifes tendem a mover
e por mais que busquemos instruções,
seus corais nos estraçalham as intenções...

PROTESTOS II

Tive uma amiga que trazia no chaveiro
uma pequena caveira arreganhada;
como “Chulipa” fora a tal denominada;
a morte então só passatempo domingueiro;

hoje a visito, encerrada no terreiro
para o qual dá o chaveiro só a entrada,
nenhuma porta de saída designada
nesse seu lar de repouso derradeiro...

Tenho uma filha que comprou um esqueleto
feito de plástico ou que, talvez, seja resina
e que não chega a medir um palmo e meio;

mas quando o vejo, sinto um temor secreto
de que a gadanha ainda colha minha menina,
sem de minha própria morte ter receio...

PROTESTOS III

Não existe lei que proíba tais imagens;
sempre foi troça o motivo do temor;
mais se reprovam objetos de sexor:
serão amores tão somente essas miragens

e apenas sexo a preencher paisagens,
que cedo ou tarde perdem seu verdor
e então nos levam a mostrar certo terror
quando começa a nos mostrar menos vantagens?

Por mais que hoje exista liberdade,
sempre se encontra a vastidão dos excluídos,
para as equipes os derradeiros escolhidos,

para os namoros encontrando má-vontade,
que assim protestam só contra o amor aberto,
enquanto a morte sabem ser destino certo...

PROTESTOS IV

Não há pior dor de amor que na adolescência,
quando mais forte se anseia a afirmação
e se abre o mundo, querendo aceitação,
condição mesma para a sobrevivência;

e no momento da recusa, essa consciência
toca bem fundo e nos rasga o coração,
sovela e pua da maior perfuração,
por sua própria ilusão de permanência...

E quando os outros mostram magnanimidade,
porque passaram também por tais agruras
e as reconhecem como sendo transitórias,

mapas e cartas não têm qualquer utilidade
e não há código penal contra as perjuras
que a flor cortaram tão peremptórias!...

XIPE TOTEC I – 25 AGO 14

Ela chegou a reclamar da chuva,
Que já havia apertado a campainha,
Mas foi só ao telefone que a vozinha
Soou reclamatória em meus ouvidos;
Fui bem depressa e retirei a luva
Para as chaves escolher em meu chaveiro
E então depressa apliquei golpe certeiro
À corrente do cadeado em mil tinidos...

Beijei-lhe o rosto, com naturalidade,
Enquanto o líquido escorria por nós dois
E a conduzi depressa pela porta;
Fechei de novo o portão, com alacridade,
Só imaginando que fazer depois...
Medo ou alegria, o que o destino importa?

XIPE TOTEC II

Entre os aztecas, a adoração do milho,
Que deve ser despido de sua espiga,
Exigia o sacrifício da inimiga
Gente estrangeira de diverso trilho;
O prisioneiro era esfolado e o brilho
De seu sangue, por onde quer que siga
Deixava um rastro enquanto ele prossiga
Caminho amargo do sofrimento filho.

Porque eles o depilavam totalmente
Dos cabelos e da pele e essa dor
Por todo o corpo horrivelmente espalha,
Do mesmo modo que à espiga indiferente,
Para mostrar os grãos em seu sabor,
Era de todo desvestida de sua palha...

XIPE TOTEC III

Acariciei seu corpo como a espiga
É acariciada por quem a aprecia
E lentamente, a sua palha antiga
Vai descascando em cada manhã fria,
Para depois debulhar-lhe toda a liga
E prepará-la do jeito que queria;
E foi assim que o fiz.  Ainda que diga:
“Hoje não quero”, lentamente eu a despia.

Não esfolei-lhe a pele, certamente,
Apenas debulhei roupa por roupa,
Em todo o meu carinho e com amor,
Até deixá-la nua, totalmente,
Enquanto a boca nenhum esforço poupa
Para provar inteiramente o seu sabor...



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