MEIA-NOITE & MAIS
William
Lagos
MEIA-NOITE I (16 AGO 14)
Dez para a meia-noite
eles chegaram
e Meia-Noite os recebeu
em casa;
os dez chegaram juntos,
noite rasa,
sem um sinal de lua a
visitaram...
Meia-Noite era bela e
eles tiraram
a sorte entre os dez, que
lhes embasa
a ordem desse amor como
uma vaza,
em um carteado que todos
aceitaram...
E Meia-Noite recebeu os
dez,
com as devidas práticas
de higiene;
e retiraram-se todos,
encantados
com o amor de Meia-Noite,
estranhas fés
de uma memória a continuar
perene
por dez minutos logo
desgastados...
MEIA-NOITE II
Meia-Noite descansou de
madrugada.
Afinal, à meia-noite
havia morrido
e os dez minutos que
havia recebido
se desgastaram até não
ser mais nada...
Meia-Noite lançou os
olhos para a estrada
pela janela, contemplando
enlanguescida
o Meio-Dia, que esperava
em incontida
impaciência a missão já
lhe aprazada...
Pois não seria visitado
por minutos
porém, após a vinda da
alvorada,
por quatro horas ou seis
horas de fadas,
a demandar seus amores
mais argutos,
todas ansiosas pelo seu
favor,
até o meio-dia a
distribuir calor...
MEIA-NOITE III
Meia-Noite foi depressa
recolher-se,
pois em seguida passaria
a madrugada,
no máximo umas horas, na
encantada
modorra altiva do seu
enfeitar-se...
Pois Meio-Dia costumava
demorar-se
entre os quartos de hora
da alvorada
e Meia-Noite assim seria
visitada
bem antes de seu tempo
dissipar-se...
Sim, Meia-Noite amava
Meio-Dia
e Meio-Dia com ela se
encantava,
mas só em instantes
podiam se encontrar.
Enquanto a teia do escuro
ela tecia,
Meio-Dia calmamente
ressonava
para só depois das seis
ir trabalhar...
MEIO-MINUTO I – 17 AGO 14
Meio-minuto para o
meio-dia
já tem certeza de ser
devorado
e para a noite ver-se
rejeitado,
sem atenção para a ânsia
que sofria...
Porém nascem mais
minutos, à porfia,
sob a cálida atenção do
Sol alado;
cada minuto vê-se então
premiado
com cento e vinte
tique-taques de valia...
São sessenta segundos,
mas parecem
serem-lhe tantos para
usufruir!...
E assim minutos pelos
dias correm,
novos minutos nos
ponteiros crescem,
ansiosos para a vida
constituir,
enquanto, um a um, os
velhos morrem...
MEIO-MINUTO II
Por sorte, entre nós é
diferente:
não é preciso morrer para
que nasça
o próximo ser humano, que
então passa
a buscar igual destino permanente...
Se assim fosse, a geração
vivente
talvez buscasse evitar a
sua desgraça,
transformando seus filhos
em fumaça,
mesmo antes de viver
inteiramente!...
Muito mais somos medidos
por ações
do que por precessão de
tique-taques;
melhor ainda, sempre
algum ato permanece,
mas dos minutos as breves
durações
se precipitam, em ritmo
de atabaques,
por essa fila que corre e
não se aquece...
MEIO-MINUTO III
Mas os minutos,
apressuradamente,
correm no tempo, sem
saber jamais
que a maratona os
desgasta por demais,
enquanto o tempo os
engole, indiferente.
Talvez possua Cronos
língua e dente
e assim mastigaria muitos
mais,
para encaixá-los nas
trevas do além-mais,
sempre faminto por ter
mais comburente.
Cada segundo apenas um
elétron,
a máquina do tempo a alimentar,
correndo ardente, como
corre o nécton
para comer do plâncton o
manjar, (*)
enquanto, sem gastar-se,
passa o nêutron,
forjando o tempo em seu
imenso mar...
(*) Nécton são os seres marinhos que se movem por si
e plâncton os que se deixam levar pela correnteza.
quetzalcoatl
I (2008)
com
as asas da noite fiz pincel
para
pintar teu rosto nas estrelas:
ficaram
mais fulgentes, bem mais belas
do
que antes que lhe desse esse laurel
e
compusesse, em cor feita de mel
a
constelação nova, que as donzelas,
lá
no futuro apontarão, singelas,
como
sendo esperança, paz, quartel...
pintei
teu nome com o palor da Lua:
não
foi o teu semblante, foi a poeira
que
resultou de um Braille perfurante.
gastei
a noite. Cada asa fez-se nua,
até
gravasse a letra derradeira
da
negra luz escura e fulgurante.
quetzalcoatl
II – 18 AGO 14
que
se pode fazer depois que a noite
gastou-se
inteiramente antes da aurora?
enquanto
o Sol não brilha, a vácua hora
em
que não há mais sombra em que me acoite?
ainda
não chega a alba em seu afoite,
o
lusco-fusco nem vem, nem vai embora,
nem
o brancor, nem cinza ou negro explora,
nem
gira um vento brando em seu açoite...
sinto
que a culpa do limbo é toda minha:
essas
estrelas que tanto colori
em
tons roubados da noite evanescente;
nebulosas
de ébano e ladainha,
cada
qual reproduzindo o que sofri
sobre
seu pano de fundo inexistente...
quetzalcoatl
III
pintei
de preto as estrelas e em magia
cada
uma em cor moura espetalou-se,
e
os traços de teu rosto, negra foice,
transformaram
na luz que me fulgia...
em
cada estrela que meu pintar vestia
eu
recolhia uma lembrança doce
de
uma noite de amor que igual me fosse
às
memórias que o passado permitia...
e
assim à noite dourei o seu escuro
como
insolente rival ao dealbar;
à
terra em trevas roubei os seus esboços
e
recortei o luar em talhos grossos,
nesse
dilúculo de delírio puro, (*)
arco-íris
cinza de lama tumular...
(*) Primeira luz difusa da manhã.
quetzalcoatl
IV
e
ao ver que o dia tardava e a noite fora
enferrujada
inteira por meu atrevimento,
em
cinza a rodopiar sem movimento,
fui
aos coriscos comprar-lhes nova aurora;
mil
relâmpagos esfuziaram-se em tal hora,
mas
seu fulgor durou apenas um momento;
fui
aos vulcões pedir um adiantamento
de
suas erupções e a lava que aflora
empreguei
para pintar a madrugada
e
restaurar-lhe a pátina perdida
com
nova e piroplástica avenida (*)
e
assim tracei minha noite desvairada,
mil
espectros o arcabouço dessa vida,
que
logo se extinguiu, sem deixar nada...
(*) Nuvem de fumaça fervente que brota dos vulcões.
quetzalcoatl
V
e
com as asas do vento fiz arpéu
e
me lancei audaz sobre esse abismo;
mais
feroz do que o próprio cataclismo,
eu
me joguei a favor do macaréu.
fui
encontrar o dia abrindo o céu,
horas
à frente, farto de embolismo,
e
me pus a perfurar, em solipsismo,
essas
camadas de luz sob o escarcéu
de
Aurora, Febo, Apolo e seguidores,
que
atiçaram sobre mim a sua quadriga,
sem
conseguirem virar meus embornais;
e
assim voltei, espalhando luz e ardores,
à
contragosto do divinal auriga,
mas
preenchendo os rasgos abismais.
quetzalcoatl
VI
e
com as asas da aurora assim pintei,
em
branco e azul essas portas e janelas
que
deixaria nessa noite, quando estrelas,
por
pura obstinação, aquarelei...
e
assim fazendo, a velha obra eu apaguei
com
que deixara as estrelas bem mais belas,
seu
brilho se esgotou, bem mais singelas
foram
ficando, enquanto o céu molhei...
elas
piscaram, queixosas, bruxulearam,
desapossadas
do artificial fulgor
e
até o teu nome sob a luz já se escondeu.
e
a essa noite que os delírios incendiaram
tornei
mais clara, mas o vácuo se encolheu,
enquanto
o dia já avançava sem temor...
PALAVRAS
I – 19 AGO 14
Palavras
podem ter amplos ou restritos
significares
de uma só coisa, unicamente,
ou
conotar qualquer coisa diferente
para
quem quer que manipule os ditos.
Certas
palavras embaraçam teus agitos,
mas
outras tino têm tão permanente
que
manifestam para toda a gente
uma
simples certeza em curtos gritos.
É
por isso que se definem termos,
já
que palavras mais escondem do que mostram,
são
armadilhas em que teus passos caem,
são
calabouços em desertos ermos
que
o comunicar humano só mais prostram,
como
tão bem explicou Wittgenstein... (*)
(*) O criador da filosofia da palavra.
PALAVRAS
II
Assim
se um dia eu te falar de amor,
não
saberás se é um amor sobressaliente,
tal
qual se diz que o de Deus é onipresente,
enquanto
o humano oscila em seu favor.
Usa
palavras com prazer o trovador,
mas
é a seu bel-prazer, mui certamente;
sabe
deixar teu coração contente,
mas
a que ponto esse seu verbo tem valor?
Que
valha mil palavras uma imagem
é
lugar-comum dez mil vezes repetido,
mas
qual imagem representa “Amor”?
Em
cem mil características dividido,
a
cada um enfeitando a sua miragem,
que
então é aceita com maior ardor!...
PALAVRAS
III
Vejo
as palavras como seres vivos,
que
nascem, morrem e até se reproduzem,
quando
ao acaso com outros termos cruzem:
tremenda
coisa são os verbos incisivos!
Trazem
bandeiras como exércitos ativos,
nas
mil conotações que nos aduzem,
nas
mil paisagens a que nos conduzem,
em
seis mil dédalos e meandros tão esquivos!...
E
elas bailam sempre, a seduzir,
odaliscas
com pretensão de ser escravas,
quando,
de fato, são nossas senhoras!
E
assim as lustro, fazendo-as reluzir
e
em versos as disponho como lavas,
para
aquecer-te as derradeiras horas...
PALAVRAS
IV
Quem
mais que eu com tais seres brincou?
Cada
palavra é menina caprichosa
que
pode emurchecer ou ser viçosa,
que
já te pôde dar à luz ou te matou!
Qual
a palavra que assim significou
para
ti mesma a seiva saborosa
que
para mim escorreu tão dadivosa,
mas
para ti, ao contrário, desgostou?
Cada
palavra valendo mil imagens,
mil
cores, cheiros, cantos, melodias,
qual
a palavra que assim escolherias?
Qual
o fascínio dos milhares de plumagens
que
um simples nome te traria à mente,
sem
a mínima atração para outra gente?
INSERÇÃO I – 20 AGO 14
Santas coxilhas, sobrou-me hoje espaço
para enviar, por debaixo do pelego
o clarividente olhar que tem o cego
na avaliação solerte de teu passo;
de algum modo, encontro o teu regaço
e minha semente no teu ventre lego,
sem querer-te soltar, no meu apego,
lugar não tenho senão no teu abraço;
e as casuarinas murmuram, aprovando,
enquanto nosso cheiro se destila,
em rica mina de joias bicolores,
colar que outro cordão já vai buscando,
nesse ardor que se renova em doce fila,
a cada vez que se repetem os amores...
INSERÇÃO II
Eu canto o amor porque o amor eu amo
e eu canto a ilusão porque me iludo;
o engano de mim mesmo firme estudo,
embora às vezes só depois de esforço insano;
eu canto o amor porque me causa dano
pensar na vida sem o amor de escudo,
que a ausência de um amor é mal agudo
e é por isso que a mim mesmo tanto engano;
somente em crer que algum seja permanente,
mais forte que outro humano sentimento,
mais resistente que qualquer outra emoção,
embora saiba ser bem diferente
a tal quimera que só gerei no pensamento,
mas me devora lentamente o coração.
INSERÇÃO III
Não sendo atleta, soube escrever versos
e neles corro a minha maratona;
afundado na poesia, volto à tona,
em mil estilos de natação diversos...
Meus amores do amor assim conversos
no amor do canto que não me desabona,
no amor da canção que não detona
nenhum dos sonhos em lamentar dispersos;
e não me perco em gritos de entusiasmo,
nem luto lado a lado com a torcida,
dando vazão à feroz selvageria,
embora saiba aceitarem com marasmo
essas palavras, pois não há partida,
nem qualquer campeonato de poesia...
INSERÇÃO IV
Entre os gregos, tudo era diferente:
davam coroas de louros aos aedos,
acompanhados de lira seus folguedos,
por mais que fosse atlética tal gente;
não era o amor, contudo, o mais potente
dos temas que apreciavam os tempos ledos;
eram mais cantos de guerra contra os medos,
louvor dos deuses a traçar fado inclemente;
os seus cantos de amor tragicomédias,
que permitiam à hubris ressaltar:
por tais amantes sofriam as plateias
e até choravam perante tais tragédias,
sem dos vizinhos ninguém se envergonhar,
ausência e perda temas de epopeias...
INSERÇÃO V
Já os romanos amavam mais o Amor,
(por ser o oposto de Roma, sua cidade?)
Vergílio a descrever lubricidade,
porém Catulo mil sonhos de candor;
e assim me inscrevo no louvor do amor,
seja inserido em total sexualidade
ou ingenuamente no amor da castidade;
qualquer que seja, dou-lhe o meu favor;
mas amo o amor mais do que a saciedade,
“o que podia ter sido” dos românticos,
par a par com os breves anos de magia
e mesmo o amor da mística amizade
que os santos expressaram em seus cânticos,
nessa paixão em que a Grande Mãe luzia...
INSERÇÃO VI
Mas tenho horror ao ódio e neste espaço
não vou deixar um branco, que um soneto
ainda cabe sob as borlas, bem secreto
dessa colcha a proteger do amor o abraço;
para tudo nesta vida encontro um laço,
sempre há conexão entre um inseto
e esse jato de luz que molha o teto:
os acasalo aqui e outro poema faço;
a vida inteira vejo feita de poesia,
mesmo que a manifeste em triste canto,
nesses tercetos finos de ilusão,
que aqui espelho toda a fantasia
que me reveste a alma qual um manto
e a lanço inteira no teu coração...
SUPLEMENTOS I – 21 AGO 14
Quem não sabe chutar, assopra vuvuzela,
sem rouquidão de gritos de entusiasmo;
cada vizinho a seu lado fica pasmo,
com o som que entra no ouvido e chega à goela!
Quem sofre mais são os tímpanos e a sela
que chamam de bigorna, em tal marasmo;
o martelo e o estribo, nesse orgasmo,
estremecem com furor e sem balela!
O que me espanta é que o aceite a multidão,
em sua fúria assim sacrificada,
perfurando os labirintos e a cocleia!
E quem se atreve a dizer que ainda são
selvagens, em sua torcida organizada
os africanos que a sopram em epopeia?
SUPLEMENTOS II
Quando criança, eu tinha cornetinha,
mas mandavam assoprá-la no quintal,
que aos ouvidos da família fazia mal
o som soprado por minha gargantinha!
E se na rua eu saísse e na boquinha
colocasse o instrumento em tom fatal,
os transeuntes protestavam o som bestial
desse clarim que deles se avizinha...
Sem dúvida, eram tempos mais tranquilos,
mesmo nas épocas das revoluções:
o povo em casa se encolhia, silencioso!
Havia mugidos, relinchos, sons de grilos,
mas não motores a imitar trovões
e até mesmo o torcedor mais cuidadoso...
SUPLEMENTOS III
Porém hoje a audição se acostumou
com troares pelas ruas e
calçadas,
com o som fanhoso das tevês
ligadas,
com o cricrilar que tanto se
espalhou
enquanto a praga celulárica
aumentou
e até se escutam discussões
desenfreadas
de alguém consigo mesmo nas
paradas
de ônibus ou de um passante que
chegou...
E o conceito de festa ou de
balada
se transformou em duzentos decibéis,
quando antes era simples canção
bela...
Não admira que nos estádios
apreciada
seja essa banda de roucas
cascavéis,
por semissurdos que adotaram a
vuvuzela!
RECARGA I – 22 AGO 14
Não haveria motivo, nesta hora,
para enviar-te sequer um telegrama,
que poderia te levantar da cama,
para atender à porta, sem demora;
hoje em dia, um novo meio se incorpora
e no seu leito protege nossa dama;
o carteiro já não pisa pela lama
e o atendimento da web
nos agoura..
Sempre está feito, tecido esse cordão
que conduz o telefone e a fibra ótica
e a cada dia impõe novo compromisso,
mas me rebelo contra tal condão,
condizente com a antiga semiótica
e para redes sociais eu sou remisso!
RECARGA II
Bem poucos
são os amigos que conheço
a
recusar-se a adquirir um celular,
porém
enquanto alguém não me obrigar,
prosseguirei
sem lhes ter qualquer apreço.
Para minha
própria vida desconheço
a
utilidade de qualquer um me encontrar
quando nas
ruas rápido eu andar,
enquanto a
passos cada quadra eu meço!
Pois mesmo
o fixo raramente eu uso,
desde que
adquiri o computador,
que
infelizmente, até da filatelia
me
afastou, pelo constante fuso
com que me
enrola a vida em seu furor,
muito
mais, realmente, que eu queria!
RECARGA III
Serve-me bem, contudo, ao transmitir
de meus arroubos, a fim de incomodar
pobres amigos ou até mesmo perturbar
os conhecidos que nem querem me ouvir;
e de que modo eu poderia declamar
longos poemas para o lento digerir
de quem decerto preferiria dormir
do que por tantos minutos me escutar?
E quem me diz, em tais redes sociais,
que alguém deseje apenas ler meus versos,
quando de fato, de si é que quer falar?
E quem lhes diz que suas questões pessoais
eu queira ouvir, nos momentos mais diversos,
quando de fato preferiria trabalhar?
HUITZILOPOCHTLI I (8 mar 11)
Tive uma ideia, mas não sei onde a guardei...
Ou quem dirá, quem sabe, já a perdi...
Guardei-a no bolso e depois me distraí:
foi-se essa ideia e nunca mais lembrei.
Não faço ideia de que tipo ou de que lei
foi essa ideia que nunca mais eu vi.
se foi aviso ou ideal que concebi,
caiu do bolso e nunca mais a achei...
Quando se sabe sobre o que era uma ideia,
viva em si mesma, no fragor do pensamento,
sempre há um anzol para tal prosopopeia:
a gente encontra alguma senda, alguma aleia,
quando se sabe se é razão ou sentimento
que desenrole o pergaminho da epopeia...
HUITZILOPOCHTLI II – 23 AGO 14
Porém, se não se tem a menor pista
sobre qual seja sua importância ou natureza,
anda-se às cegas, não se sabe com certeza
qual borbulhar de ondas sobre a crista;
de fato, sem se saber em que consista,
se essa ideia retornar, em aspereza,
a acolhemos, talvez, com gentileza,
mas sem reconhecer o que se avista;
realmente, é uma estranha situação
procurar um pensamento que se teve
e se deixou partir sem mais cuidado;
de nada serve abrir a inquirição;
quando se o ache, até parece nunca esteve
dentro em nosso coração atribulado...
HUITZILOPOCHTLI III
Das ideias que já tive, a maioria
transmogrifei em poemas e sonetos;
escandalosos alguns, outros discretos,
só descrevendo o instante em que as sentia;
quando uma ideia a correr na mente via,
sei que as redes neurais têm seus secretos
meandros, mil destinos incompletos
e então a ponho sob a lupa onde jazia;
e só depois de examinar seus mil detalhes
passava a descrevê-la qual podia,
às vezes com profunda claridade;
mas em outras – e te peço, não me ralhes –
redigi-la à perfeição não conseguia
e me perdia em vã obscuridade...
HUITZILOPOCHTLI IV
E depois, via que algumas não eram minhas,
mas assaltaram pelos olhos ou ouvidos;
pelo nariz e a língua ideais trazidos
de mentes nobres ou de gentes mais mesquinhas;
ao ver os bagos das venenosas vinhas,
muita vez tive cuidados em repeli-los
e em geral o foram, porém mais desabridos
foram conceitos mais nobres em gavinhas,
crescidos dessas belas trepadeiras
que alguma vez descobria a meu redor
e que vibravam nessa mesma onda
com que soavam minhas ideias verdadeiras
e as grampeava e afunilava com ardor,
embora algumas se escapassem de minha sonda.
HUITZILOPOCHTLI V
E ao perceber achar-se ideia alheia
acolhida entre aquelas que gerei,
o crédito devido sempre dei,
reconhecendo ser de estranha veia;
afinal, desde a infância, foi minha ceia
a leitura dos mil livros que encontrei;
em tais grafias ao pouco me formei
e cada página ainda a mente me permeia,
consoante disse, há milênios, Salomão:
“Nada de novo existe sob o Sol”,
sendo impossível ser de todo original,
porque não é “o quê se diz”, então,
porém “como se o diz” o real farol
que acende ou desentulha esse canal.
HUITZILOPOCHTLI VI
Por isso, digo que os poemas não são meus,
mas apenas reproduzo essas alheias
ideias, mais as belas do que as feias
e as coloco, em buquês, nos braços teus;
sopra-te o vento com os enganos seus
e o tempo estende sobre ti suas teias
com casulos de ideias e incendeias
a treva interna sob o olhar de Deus...
Mas essa ideia que eu tive e que perdi
não sei se foi só minha ou a recebi
pelo poder de divindade azteca...
Somente sei que jamais será alcançada,
sequer resquício da memória alada
que toma poeira na minha biblioteca...
PROTESTOS I – 24 AGO 14
Cartas náuticas não existem para a
vida,
cada um tem de descobrir os seus
escolhos;
as próprias leis são pouco mais que
antolhos
que ao livre-arbítrio levam de vencida;
nossa própria consciência é a
escolhida
pelo espírito, a orientar os nossos
olhos;
porém o Estado se expandiu em tantos
fólios,
que nem há margem para sua acolhida;
mas estas cartas da Constituição
nos servem mais para desorientação
do que firme indicação para o viver,
pois seus recifes tendem a mover
e por mais que busquemos instruções,
seus corais nos estraçalham as
intenções...
PROTESTOS II
Tive uma amiga que trazia no chaveiro
uma pequena caveira arreganhada;
como “Chulipa” fora a tal denominada;
a morte então só passatempo
domingueiro;
hoje a visito, encerrada no terreiro
para o qual dá o chaveiro só a
entrada,
nenhuma porta de saída designada
nesse seu lar de repouso
derradeiro...
Tenho uma filha que comprou um
esqueleto
feito de plástico ou que, talvez,
seja resina
e que não chega a medir um palmo e
meio;
mas quando o vejo, sinto um temor
secreto
de que a gadanha ainda colha minha
menina,
sem de minha própria morte ter
receio...
PROTESTOS III
Não existe lei que proíba tais imagens;
sempre foi troça o motivo do temor;
mais se reprovam objetos de sexor:
serão amores tão somente essas
miragens
e apenas sexo a preencher paisagens,
que cedo ou tarde perdem seu verdor
e então nos levam a mostrar certo
terror
quando começa a nos mostrar menos
vantagens?
Por mais que hoje exista liberdade,
sempre se encontra a vastidão dos
excluídos,
para as equipes os derradeiros
escolhidos,
para os namoros encontrando
má-vontade,
que assim protestam só contra o amor
aberto,
enquanto a morte sabem ser destino
certo...
PROTESTOS IV
Não há pior dor de amor que na
adolescência,
quando mais forte se anseia a
afirmação
e se abre o mundo, querendo
aceitação,
condição mesma para a sobrevivência;
e no momento da recusa, essa
consciência
toca bem fundo e nos rasga o coração,
sovela e pua da maior perfuração,
por sua própria ilusão de
permanência...
E quando os outros mostram
magnanimidade,
porque passaram também por tais
agruras
e as reconhecem como sendo
transitórias,
mapas e cartas não têm qualquer utilidade
e não há código penal contra as
perjuras
que a flor cortaram tão
peremptórias!...
XIPE TOTEC I – 25 AGO 14
Ela chegou a reclamar da chuva,
Que já havia apertado a
campainha,
Mas foi só ao telefone que a
vozinha
Soou reclamatória em meus
ouvidos;
Fui bem depressa e retirei a
luva
Para as chaves escolher em meu
chaveiro
E então depressa apliquei golpe
certeiro
À corrente do cadeado em mil
tinidos...
Beijei-lhe o rosto, com
naturalidade,
Enquanto o líquido escorria por
nós dois
E a conduzi depressa pela
porta;
Fechei de novo o portão, com
alacridade,
Só imaginando que fazer
depois...
Medo ou alegria, o que o
destino importa?
XIPE TOTEC II
Entre os aztecas, a adoração do
milho,
Que deve ser despido de sua
espiga,
Exigia o sacrifício da inimiga
Gente estrangeira de diverso
trilho;
O prisioneiro era esfolado e o
brilho
De seu sangue, por onde quer
que siga
Deixava um rastro enquanto ele
prossiga
Caminho amargo do sofrimento
filho.
Porque eles o depilavam
totalmente
Dos cabelos e da pele e essa
dor
Por todo o corpo horrivelmente
espalha,
Do mesmo modo que à espiga
indiferente,
Para mostrar os grãos em seu
sabor,
Era de todo desvestida de sua
palha...
XIPE TOTEC III
Acariciei seu corpo como a
espiga
É acariciada por quem a aprecia
E lentamente, a sua palha
antiga
Vai descascando em cada manhã
fria,
Para depois debulhar-lhe toda a
liga
E prepará-la do jeito que
queria;
E foi assim que o fiz. Ainda que diga:
“Hoje não quero”, lentamente eu
a despia.
Não esfolei-lhe a pele,
certamente,
Apenas debulhei roupa por
roupa,
Em todo o meu carinho e com
amor,
Até deixá-la nua, totalmente,
Enquanto a boca nenhum esforço
poupa
Para provar inteiramente o seu
sabor...
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