terça-feira, 5 de agosto de 2014





COMENTAIRÔNICOS I a XX
William Lagos – 18 mar 2011


COMENTAIRÔNICOS I

Já foi cartaz exposto num painel,
que no lixo encontrei, vencido o prazo
do vencimento, quase por acaso
e para mim salvei, para meu bel-

prazer, pois pretendia dar quartel
a esta folha, em mais um álbum raso:
proteção para selos.   Mas o caso,
no fim, mostrou-se outro.   Foi papel

para estes sonhos em que me estremunho.
Foi leito de meus versos, recortado
em quatro fragmentos, reto e verso;

pois cabem dois poemas em rascunho,
que eventualmente, depois de repassado,
será rasgado e ao vento assim disperso.

COMENTAIRÔNICOS II

Talvez devesse escrever um poema em branco:
bancar o concretista ou o charlatão,
muda a palavra de meu coração,
elíptica, na supressão de meu arranco

de sentimentos frios ou gesto franco,
esperando de você a interpretação,
já que todo poema é uma ilusão,
de significado vácuo e sempre manco,

deixando espaço ao interlocutor,
para dar aos vazios preenchimento,
pelo que sinta em seu peito repassar,

na emergência do verso, em seu frescor,
das mil conotações de seu momento,
porque só exprime seu próprio interpretar.

COMENTAIRÔNICOS III

Formatos, desformatos, em mil formas o soneto
desencadeia cadeias no sentido em que te leva,
desencandeia candeias em luminosa treva
e a cripta descripta em esplendor secreto...

Valor e desvalor se encontra em cada afeto:
no incolor da cor a imensidão do Deva, (*)
no insípido sabor a fome não se ceva,
no som menos sonoro o amor mais abjeto.

Contatos, descontatos, de peito contra peito,
trações, descontrações, no rosicler da mágoa,
leais e desleais em cem foros de bondade.

Desvelo revelado no defeito do perfeito,
quadrados enquadrados pela secura d'água,
na modéstia imodesta que mostra ser vaidade.

(*)  Os gênios favoráveis ao ser humano na mitologia hindu, em oposição a seus primos galhofeiros, os Asuras.

COMENTAIRÔNICOS IV

Deserto o corredor.  Nem luz, nem som,
nem viva alma.  O porteiro garantiu-me
não ser feriado.  Ninguém comunicou-me
que algo houvesse hoje nesse tom...

Aulas suspensas não são de bom-tom:
os alunos pagaram.   Contratou-me
a universidade.   Inda que mal pagou-me,
comprometi-me com esse parco dom...

Assim, me espanta mergulhar na escuridão
dessas salas vazias, ainda que
para ter luz, ligue apenas um botão...

E assim me sento à mesa, em solidão
e os fantasmas me interrogam, num porquê
eu não começo só com eles a lição...

COMENTAIRÔNICOS V

A história sempre foi mais desumana
do que humana foi.   A crueldade
marcou a vida humana à saciedade:
é nos massacres que a raça mais se irmana.

Porque é mais fácil unir-se nessa gana
de combater os outros, que em bondade:
é simples ver que o ideal da humanidade
é mais a fantasia do que a flama...

A soma dos ideais bem lentamente
formou seu círculo, mal e mal e a medo:
colocar sonhos em prática é difícil...

Por isso a gente é tão indiferente
e, em complacência, vivencia o seu segredo
de que prefere à paz a bomba e o míssil...               
COMENTAIRÔNICOS VI

Eu não desejo ficar jovem novamente,
mas retomar o aspecto que eu tinha
há vinte anos, nessa antiga linha,
que foi sendo perdida, lentamente...

Quero os cabelos que, traiçoeiramente,
fez cair o xampu, calda inimiga,
a dentadura completa, torta e amiga,
mas que sabia mastigar perfeitamente.

Quero a vesícula que um dia me roubaram,
para depois de tê-la bem picada,
misturarem com tomates na salada...

Eu quero a cor da barba que lavaram
e me deixaram branca e desbotada,
para marcar quantos anos já passaram...

COMENTAIRÔNICOS VII

Vou pôr botox nos meus ossos todos...
O rosto não precisa.  Ainda lisas
permanecem as faces... Porém dores
me percorrem as juntas da velhice...

Assim como as rugas preenchidas
são, desses modernos artifícios,
calafetar eu vou as rachaduras
que sinto percorrer-me os tornozelos...

Esfacelados já estão meus joelhos
e os quadris se tornaram margarina:
as vértebras recobriram-se de cálcio.

Bicos de papagaio mostra a chapa
de raios-X que tirei há vários anos,
mesmo que o rosto continue sem ter pregas... (*)

(*) Soneto em versos brancos.

COMENTAIRÔNICOS VIII

Esse meu pai era cheio de manias;
nada fazia que demonstrar riqueza
pudesse aos olhos de sua congregação:
mais que tudo, importante era humildade.

Um tratamento ortodentário, em realidade,
pareceria a seu olhar ostentação,
ofenderia aos pobres, com certeza!
Uma coisa imperdoável nesses dias...

Assim, meus dentes permanecem tortos
cinquenta anos depois e eu mal sorria
da adolescência sensível no momento...

Pior seria que, surgido dentre os mortos,
ele me abrisse a boca (e é o que faria!),
para mostrar-me precisar de um tratamento!

COMENTAIRÔNICOS IX

Sou o único nesta casa a não fumar.
Tão logo eu, no trabalho tão ativo,
sou obrigado a ser assim passivo...
Tapar narinas e cessar de respirar

eu até gostaria.  A coriza, a deslizar,
rapidamente surge a cada vivo
revolutear da fumaça.  Se me esquivo,
devo da própria família me apartar...

Ainda bem que tirei radiografias
recentemente: meu peito está saudável
e nem sequer me afeta a sinusite...

Mas essa roda que me cerca há tantos dias
mais tarde ou cedo me fará mal inegável,
enquanto elas... nem sofrem de bronquite!...

COMENTAIRÔNICOS X

Quando contemplo a sífilis do céu,
no espalhafato dos parlapatões,
na concludência de antigos bobalhões,
e vejo as chagas pútridas ao léu,

quando retiro aos dogmas o véu
e beijo a hóstia morta de ilusões,
na farinha de sangue dos papões,
torno-me a vítima e sou meu próprio réu.

É por beber hissopo consagrado,
que cravo fundo as farpas desse arpéu,
na carne insana das palpitações,

no guarda-chuva desse céu furado,
quando contemplo, sob meu chapéu,
a marcha opaca das velhas procissões.
  
COMENTAIRÔNICOS XI

Eu sempre soube que era diferente
em muitas de minhas coisas.  E que o anseio
com que meu peito se envolve, em seu receio,
não era igual aos desejos de outra gente.

Assim, é para um Deus onipotente
que me dirijo sempre e Nele creio,
mas a maneira com que me permeio
não é a mesma empregada mais frequente.

Vivo em meu corpo e só por ele sinto
e não consigo abraçar o imponderável,
por toda a abstração que isso requer.

E quando amor pela deidade eu pinto,
consigo só abranger o concretizável
e falo em Deus qual falaria de mulher...

COMENTAIRÔNICOS XII

Vocês que pensam conhecer inglês
e que traduzem, com vivacidade,
erro após erro, sem criticalidade,
que liberdade é essa de vocês!...

Vocês que pensam conhecer amor,
que dele falam com tranquilidade,
tolice após tolice, sem maldade,
como eu invejo a simpleza do sexor!...

Inglês sei bem melhor que até nativos,
que dirá de vocês, meus compatriotas!
Ao menos o bastante para as falhas

facilmente encontrar... Mas os altivos
meandros do amor com que me esgotas,
só conheci a golpes de navalhas!...

COMENTAIRÔNICOS XIII

Por vezes, afirmamos coisas tolas,
que não nos significam em absoluto:
são os momentos de pleno anacoluto,
em que a semântica nos capta em suas molas.

Por vezes, nos sentimos pombas-rolas,
a arrulhar tolices e até as escuto;
e ao sopesar da memória o peso bruto,
acho que escutas também e quero expô-las.

Porém passados anos, tais momentos
já se fizeram em gelo e fragmentaram,
sem que se derretesse a dor secreta...

Apenas guardo os velhos sentimentos,
cristais partidos de que me restaram
somente grãos de areia na ampulheta...

COMENTAIRÔNICOS XIV

Hoje eu me sinto um tanto amarfanhado:
passou o arado sobre meus cabelos,
desmazelando todos meus desvelos,
até sentir o próprio cérebro arroteado.

Talvez este processo desusado
dê semeadura para versos belos:
que novamente brotem mil castelos
de areia sob um sol desmesurado...

Algo passou por mim, sombria asa
de pássaro mortal e de rapina,
averiguando até que ponto estou maduro,

enquanto enfrento mais um mês de escuro,
para servir de refeição a quem me abrasa,
ao completar o ciclo de minha sina.

COMENTAIRÔNICOS XV

Dizem aí que o castigo anda a cavalo
para os malfeitos e que, bem depressa,
a cólera dos deuses, que não cessa,
cairá como um raio, em seu estalo...

Mas embora não cessem de contá-lo,
a coisa para mim é adversa,
a fúria do destino é mais dispersa
do que o sino da justiça, em seu badalo.

Na verdade, quem castiga somos nós
e os malfeitores vivem com alarde,
enquanto sofre a vítima a ferida...

Que o anfiteatro humano é mais atroz:
fere quem pode e assim, cedo ou mais tarde,
minha boa ação é que será punida!...

COMENTAIRÔNICOS XVI

A borrachinha velha que prendia
os meus originais, se rebentou...
Por longo tempo, sua função executou,
a preservar os rascunhos que escrevia...

Já duas vezes se rompeu; e eu via
esse momento em que o elástico esgotou...
Dois nós lhe fiz e assim se conservou:
que guardasse mais um pouco eu insistia...

O pobre elástico amarelo permanece,
prendendo agora os últimos cartões:
de duas séries, três poemas ainda restam...

E assim conservo, com avara prece,
essa presilha, até os últimos puxões
das ilusões que por nascer se aprestam...

COMENTAIRÔNICOS XVII

De dar conselhos não há fim, embora
quem saiba soluções de mais valia
abra uma empresa de consultoria
para vender a experiência de outra hora...

Isto até serve, quando se elabora
um plano para erguer alvenaria,
uma estratégia que mais lucro nos traria,
mais segurança que a possuída outrora.

Mas quando se refere a decisões,
de que dependeria toda a vida,
não há conselho que seja permanente.

Pois cada dia, novas ilusões
perpassam nosso olhar e têm guarida
tão só no coração do inconsequente...             

COMENTAIRÔNICOS XVIII

Como elas falam, todas a um só tempo!
Eu nem entendo como elas se entendem...
E nem sequer suspeito se compreendem
umas às outras, nesse contratempo...

Talvez nem seja, nessa gritaria,
escutar umas às outras importante.
Apenas falam por lhes ser interessante
a própria voz que o próprio ouvido ouvia...

E sempre tive dúvida, afinal,
se elas mesmas, nesse carnaval,
do que disseram têm qualquer noção...

É como se o importante gritar fosse
e cada qual maior esforço esboce
para vencer em tal competição!...

COMENTAIRÔNICOS XIX

Recordo bem as palavras de meu pai.
Teria sido uma vida bem bonita,
se suas ações tivessem igual dita
qual sua oratória, que na mente me recai

e escorre ao coração e depois vai
mais fundo ainda e meu agir incita...
Mas eu me sinto contrário a tanta grita,
e se não creio, minha oração não sai.

Mas sempre fiz o que fazer me comandava,
mesmo quando ele próprio não o fizesse.
"Faz o que eu digo e não faças o que faço",

quantas vezes claramente declarava...
E assim me porto qual se Deus não esquecesse,
mesmo sem ter esperança desse abraço.

COMENTAIRÔNICOS XX

Dizem que, no sepulcro, Jesus Cristo
desceu ao Hades, para o povo misto
que estava encarcerado, libertar:
foi pregar aos espíritos em prisão!...

Será preciso, pois, estar-se morto?
Eu já me sinto preso neste corpo.
Ninguém me busca desencarcerar:
crucificado estou em minha paixão!...

Esta é a parte mais estranha desses credos:
que o Deus Filho se arqueasse contra a lança,
que vertesse água e sangue de Seu lado,

para afastar os mais antigos medos
e fosse à multidão que a morte alcança,
sem que meu vivo coração tenha lembrado...


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