terça-feira, 12 de agosto de 2014






PIRAS DE SONHOS
William Lagos

PIRAS DE SONHOS I – 02/07/2010

eu beijo o cheiro que brota da terra
        e me recobre a língua, em terciopelo;
        eu beijo o cheiro que brota do desvelo
que traz a natureza e em mim encerra.

eu bebo o cheiro que descarta a guerra,
        esse cheiro metálico de anelo,
        cheiro drástico da vida feita em gelo:
eu bebo o cheiro que minha mente enterra.

esse cheiro real de mortandade,
        sem que sejam necessários homicídios,
que a natureza é amante de hecatombes.

e nesse cheiro, em que dorme a humanidade
        eu percebo a multidão de sonhocídios
em que teu próprio suicídio escondes.

PIRAS DE SONHOS II

eu lambo o cheiro que sobe desde o cais
        e me penetra, em som de maresia,
        esse cheiro que mata e que me cria,
esse cheiro que se ergue do jamais.

eu sugo o cheiro que salta do demais,
        que se exalta e que sofre em nostalgia,
        esse cheiro que me acende e me espargia
do próprio sangue orvalhado em mil sinais.

que me converte em geada matutina
        toda a respiração que sai de mim,
que os cheiros percebidos se sublimam

e que essa bruma seja peregrina
        e se difunda pela terra assim,
por onde quer que quimeras se comprimam.

PIRAS DE SONHOS III

escuto o cheiro que provém dos ares,
esse perfume de assombro e latrocínio
que é furtado de cada lenocínio
e se derrama em vagalhões sem pares;

o cheiro agudo que vem pelos ouvidos
e pelas coanas droga minhas narinas,
cheiro de montes e de velhas minas,
cheio de tempos há muito já esquecidos;

o cheiro que eu escuto vem das matas,
do pipilar dos pássaros ferozes,
do cricrilar dos insetos devorados;

e escuto o cheiro das antigas datas,
nesse diálogo de vítimas e algozes,
em que todos nos achamos irmanados.

PIRAS DE SONHOS IV

eu cheiro o fogo no fundo de meus olhos,        
minhas pálpebras se encurvam de desejo,
por trás dos cílios a resguardar meu pejo,
sob a esclerótica o som de meus refolhos;

eu cheiro a chama em irrequietos molhos
que se entrelaçam e rugem num só beijo,
nos lábios dessa flama todo o ensejo
se despedaça na fúria dos escolhos;

mas a essa chama eu amo de paixão;
é a luz que me requeima e que me aquece
e o fogo cheiro por força de um olhar;

eu cheiro a pira com o som do coração,
faísca pura que no meu peito desce
e minhas artérias desfaz nesse enlaçar.

PIRAS DE SONHOS V

porém é o cheiro do sono que me anima
e me alimenta ao longo do caminho,
do perfume do sonho me avizinho
e despedaço em esmeril que mima;

é esse olor de sonho que me aclima
ao perspirar do dia comezinho,
em que o dreno do real é mais mesquinho,
enquanto o sonho me amplia para cima;

sem o cheiro do sonho, minhas narinas
se entupiriam com os odores desta terra,
constipada de ódio e malquerença;

mas o aroma dos sonhos novas sinas
me aponta e em círculo cálido me encerra,
doce esperança em que mantenho a crença.

PIRAS DE SONHOS VI

toco a fragrância que provém do vento,
é nos meus dedos carícia fugidia,
as minhas palmas a beijam numa orgia,
múltiplos lábios que reter eu tento;

o vento me refresca enquanto esquento,
seja de noite ou no calor do dia,
quando as bocas cristalinas perseguia
no pleno embate desse sabor lento;

tal qual se alma fosse esse perfume,
trescalado só os deuses sabem de onde,
sem ser aroma de rosa ou malmequer;

puro cheiro agridoce de azedume,
que sempre anseio que minhalma ronde,
essa alma-brisa com gosto de mulher.

PIRAS DE SONHOS VII

no fogo desse altar é que me banho,
fogo de Vênus, não fogo de Moloch:
a labareda deixo que me toque,
nessa nudez de que não mais me acanho,

que o sabor dessas flamas é tamanho
que sua visão me empresta novo enfoque,
nesse universo novo que me invoque,
tal qual invoco os deuses nesse lanho;

eu me queimo diariamente nessas piras
de frenética e ilusória cremação,
que o corpo benze e que minhalma escova;

essas fagulhas soando como liras,
que me penetram de novel inspiração,
enquanto a mente inteira se renova.

PIRAS DE SONHOS VIII

assim esfumam-se os espectros medonhos
de mil cuidados e preocupações,
recobro a seiva de minhas sensações
e em cada canto encontro novos sonhos;

talvez escreva versos mais bisonhos
quando essa chama enche meus pulmões,
queimadas as mais duras percepções
no combustível dos dias mais tristonhos;

e vivo assim nessa tranquilidade
de só fazer o que tenho de fazer:
como um judas, tudo faço bem depressa,

talvez traindo assim a minha verdade...
mas só me dou o direito de querer
o que a razão como possível meça...

PIRAS DE SONHOS IX

destarte, se recebo um dom gratuito,
como o perfume que me traz teu seio,
acolho a bênção sem qualquer receio,
por mais que o dote chegue em tom fortuito;

por não querer o que quero como intuito,
desse trono em maravilha não me apeio;
por uns momentos de mim afrouxo o freio
e sei como tal graça apreciar muito;

bem mais que se tivesse me esforçado
para tê-la nas mãos e me frustrasse,
porque a vida acicatou-me a esperar

por esses frutos raros que a meu lado
caíram, que nos lábios aparasse,
qual recompensa do aguardo e do penar!

PIRAS DE SONHOS X

mas não foi fácil tal longanimidade:
só se consegue cortejar bonança
quando se põe de lado a esperança
e se mantém relações com a falsidade;

então premiam-se os sonhos de criança,
que a adolescência negou, em sua maldade,
pois quem foi alvo da perversidade
não mais deseja com idêntica pujança;

assim, para tornar-me no que sou,
tive de erguer fogueiras para os sonhos
e os vi subir aos céus, a crepitar;

mas nem por isso o meu ideal findou:
pelo contrário, aspirei tisnes bisonhos,
dos quais fiz tinta para o meu cantar...

PIRAS DE SONHOS XI

de minhas piras novos sonhos brotam,
envolvidos na fuligem da fumaça
e ali beijo esse cheiro que perpassa,
igual que os deuses a quem ofertas dotam;

assim tomo os pesadelos que desbotam,
não os apago, por ser lágrima escassa;
toda a tristeza que minhalma embaça,
faz-se lenha de canções que não se esgotam;

cada nesga de sonho torno em acha
e me amarro na estaca da fogueira,
sem me importar com a força desse ardor;

o fogo se ergue e a resina engraxa
nessa pira à poesia hospitaleira,
quando ao invés de gritar, canto de amor.

PIRAS DE SONHOS XII

quando meus versos faço em holocausto
é minha própria alma que ofereço;
eu subo em fogo e na fumaça desço,
aspirando a mim mesmo em largo hausto;

todos os sonhos consumidos nesse fausto
têm dimensões que nem sequer eu meço
e às vezes sofrimentos mais eu peço,
se por momentos sinto o estro exausto;

talvez até eu faça mais um drama
desta minha vida do que de fato o é,
mas afinal, sou dos homens o reflexo;

não busco a glória e nem tampouco a fama,
porém celebro tal auto-de-fé
para emprestar-te à vida um certo nexo...





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