PERSEU E AS
GÓRGONAS
(Mitologia
helênica, versão poética William Lagos, 19/8/14)
(Dedicado ao
Dr. José Carlos Teixeira Giorgis)
PERSEU E AS GÓRGONAS I
Acrísio, o rei de Argos, muito
ansiava
por ter um filho que no trono o
sucedesse;
à sua esposa Eurídice muito amava,
embora só uma filha ela lhe desse;
e a resposta que tanto procurava
deu-lhe o Oráculo, depois que o
consultasse:
Em
tua alegria, a tristeza está presente,
pois
serás morto por teu filho, finalmente.
A Acrísio amedrontou a profecia
e desistiu de qualquer filho,
prontamente,
mas escutando o que a esposa lhe
dizia,
mandou afogar cada um filho inocente
que de suas servas a luz do mundo
via,
mas uma delas advertiu-o, friamente:
“Tua filha Dânae ainda é uma
criança,
Porém por ela sofrerás a minha
vingança!”
Destarte, o rei a mandou encerrar
em alta torre, próxima ao castelo,
pois sozinha não poderia engravidar.
Talvez
devesse à sua vida por um selo...
Mas
se eu morrer, quem minhas cinzas vai honrar?
E muito embora seu coração fosse de
gelo,
fez que lhe dessem todos os
cuidados,
sem permitir que tivesse
namorados...
A mãe de Dânae era sua própria
esposa,
a mesma Eurídice, que outros filhos
não tivera;
matar a própria filha, ação maldosa,
contrariaria a moral que mantivera
o povo helênico como sendo a mais
preciosa;
por má que fosse a profecia que
recebera
da Pítia, seu sangue não podia
derramar
e ao mesmo tempo, não a queria
preservar...
Foi-lhe explicado então que a
profecia
da Pitonisa de Delphos, onisciente,
às mãos de um neto a morte lhe
previa;
um neto é filho duas vezes,
certamente...
Mas cada aedo o seu poema redigia
como melhor lhe fosse conveniente,
ou talvez para obter a recompensa
de qualquer rei com diferente
crença...
PERSEU E AS GÓRGONAS II
A Rainha Eurídice teve fado bem diverso
da outra Eurídice, amada por Orfeu,
que foi lançada para o abismo
inverso
a que o cantor, em grande amor,
desceu,
quando amansou até o cão perverso,
Cérbero Tricéfalo; e seu canto
convenceu (*)
o próprio Hades a devolver-lhe a
esposa,
formosa a voz, mas ela mais
formosa...
(*) O Cão de Inferno, que tinha três
cabeças.
Já esta Eurídice era apenas a
princesa
filha de Laquedêmon, o espartano
rei;
por um tratado com Argos fora presa
do rei Acrísio, que a desposara pela
lei,
sem que amor compartilhassem, com
certeza;
de fato, Acrísio preferia mais sua
grei
de escravas belas para o seu
carinho,
sem que Eurídice visitasse no seu
ninho...
Não é de admirar que se enciumasse
dessas crianças que via no castelo
e ao saber da profecia, aproveitasse
em dar vazão a seu terrível zelo,
exigindo que o marido as afogasse,
para alegria do coração de gelo
dessa mulher que fora desprezada,
após ser prêmio por uma paz firmada.
De qualquer modo, concordam os
autores
que Acrísio expulsava os
pretendentes
da bela filha ruiva, em seus temores
de ser morto pelas mãos de
descendentes;
quanto mais velha, maiores seus
primores
e assim com grades fortes e
correntes
cercou as janelas de sua torre forte
para ali encarcerá-la, triste
sorte!...
Não era cela, mas um bom
apartamento,
bem mobiliado, até meio luxuoso,
com um banheiro para atendimento,
embora a água a carregasse,
desgostoso,
um forte escravo, sob acompanhamento
de aias e de guardas; e um poderoso
gradil fechasse a saída da latrina:
era impossível visitarem a sua
menina!
PERSEU E AS GÓRGONAS III
“Homens põem, porém deuses dispõem”,
qual se dizia no tempo dos helenos;
e assim por Zeus as previsões se
repõem
de forma pura, apesar dos mil
venenos
que por más línguas propalados soem;
e o destino as fez cumprir em fatos
plenos...
Ao ver a pobre Dânae encarcerada,
foi ajudá-la de forma inesperada...
Zeus transformou-se numa chuva de
ouro,
penetrando por uma das janelas
e a cobriu com tal chuva, sem
desdouro,
em milagroso casamento de procelas:
seios e ventre, do corpo seu
tesouro,
todos os traços de suas faces belas
foram por Zeus empapados totalmente
e a virgem engravidou de tal
presente!
Claro que houve quem mal dela
falasse,
mas era impossível em seu quarto
penetrar...
Lactâncio, como a lenda o
perturbasse,
vendo nela semelhança singular
com o nascimento de Jesus e assim
achasse
que poderia alguém levar a
blasfemar,
afirmou que Praectos na torre se
insinuara,
(o irmão de Acrísio) e à sobrinha
engravidara! (*)
(*) Lactâncio, filósofo cristão,
também viu alusão ao Massacre dos Inocentes.
O tio teria pensado que, ao morrer
o seu irmão pela própria mão do
neto,
não poderia este a seu trono
ascender
e assim cumpriria seu sonho mais
dileto
de no trono de Argos a Acrísio
suceder;
por um castigo alcançaria seu
objeto,
quer mandasse matar o seu sobrinho
ou exilá-lo para qualquer outro
caminho...
Praectos obteria então certa maneira
de conseguir aquela aia subornar,
que era de Dânae a ama e carcereira;
e sendo irmão do rei, podia afastar
aos soldados, por mais fosse
altaneira
a sua fidelidade em tal guardar...
Até mesmo os cães ferozes conhecia
que o rei em torno à torre
distribuía...
PERSEU E AS GÓRGONAS IV
Desse modo, seduzida a sua donzela,
cobriu-lhe o leito com moedas de
ouro,
como preço da vergonha imposta a
ela,
a verdadeira chuva tal tesouro...
Mas todos escolhem a versão mais
bela:
que fique Lactâncio no desdouro
de ofender da pobre Dânae sua
pureza,
por da lenda não aceitar tanta
beleza...
O fato é que Dânae engravidou,
sem ser por qualquer homem maculada;
mas quando Zeus da jovem se afastou
sua constante proteção foi
conservada;
e quando a gravidez se completou,
veio Perseu à luz, na madrugada,
protegido por divina multidão,
para cumprir do Oráculo a missão.
Sequer a mãe a vinha visitar
e assim ficou-lhe oculta a gravidez
até que Acrísio, certo dia a caçar,
passou junto da torre e um som se
fez
que o recordou de um infantil
chorar...
Acrísio enfureceu-se, por sua vez
e as escadas subiu, incontinenti,
para à porta bater violentamente!
A aia foi forçada a abrir a porta
e entrou o rei direto no aposento;
a razão da gravidez pouco lhe
importa:
que era menino, soube num momento!
Em
dia futuro, a sua vida corta
a
criaturinha em meigo movimento!
Não duvidou sequer por um instante,
puxando a espada para matar o
infante!...
Porém Dânae o desafiou,
ardentemente,
”Primeiro terá de me matar a mim!
Vai derramar o sangue de sua gente?”
Mandara Acrísio só afogar, enfim,
das escravas toda a prole,
anteriormente
e nenhum sangue derramara assim...
E dominando sua cólera inclemente
a explicação escutou bem
calmamente...
PERSEU E AS GÓRGONAS V
“Não, o seu sangue não derramarei,
mas sim o dessa aia má e infiel!”
E num só golpe, decapitou-a o rei,
mandando a guarda para seu quartel,
interrogados segundo a marcial
lei...
mas não havia ali qualquer rebel:
era trocada a patrulha diariamente,
não poderia executar toda essa
gente!...
Então pensou que o mal já estava
feito;
seria seu neto de nascimento
virginal;
seu adivinho afirmou ser o direito
do Rei dos Deuses consorciar-se com
mortal
e esse conúbio fora assim mais que
perfeito:
Dânae nem vira o seu consorte
divinal!
Porém
o deus protegeria seu filho
por
toda a Terra ou sobre o mar no trilho!
“Pois muito bem! Ele então a protegerá
se for entregue às ondas do mar
ou a seu irmão Posêidon a
entregará!...”
Mandou fazer grande tonel para
encerrar
a filha e o neto... “Quero ver se
flutuará
ou se nas ondas irá logo afundar...”
E ordenou a seguir que se o jogasse
de um penhasco, para ver aonde
flutuasse!...
Porém Éolo, o rei dos ventos, sustentou
o tonel, sem nos penhascos se
quebrar
e sobre as ondas devagar o
depositou;
para as Ondinas coube o transportar;
e Posêidon, o rei do mar, colaborou
com seu irmão, o rei da terra e do
ar,
de tal modo que o tonel foi
navegando,
aos passageiros mal algum
causando...
À ilha de Sírifos aportou,
eventualmente,
dando à praia sem dano ou qualquer
mal;
e Díctis, um pescador benevolente
o recolheu, com espanto natural;
e ao ver a ruiva Dânae ali
inconsciente
com Perseu no seu colo maternal,
os dois levou para Climene, sua
mulher,
que cuidou deles, sem protestar
sequer...
PERSEU E AS GÓRGONAS VI
De fato, filhos o casal nunca tivera
e assim a Dânae e a Perseu
apadrinharam;
a liberdade, que finalmente
recebera,
à beira-mar e o carinho que
mostraram
fizeram Dânae esquecer que um dia
fora
uma princesa e até que a
encarceraram;
acostumada a tecer no cativeiro
às suas tarefas se acostumou
ligeiro...
E o menino cresceu forte e saudável,
do novo pai aprendendo a profissão
e a demonstrar pendor considerável
para a caça e a esgrima com bordão;
nunca adoecia, apresentando
formidável
robustez, por sua linhagem e a
proteção
das ninfas e silfos escondidos
contra os perigos e acidentes
conhecidos.
Porém um dia, durante uma caçada,
Polidectes, que de Sírifos era o
rei,
contemplou Dânae, sua saia
arregaçada
enquanto as roupas lavava e mal eu
sei
descrever a paixão desenfreada
que o acometeu então. Porém a lei
de sua ilha lhe exigia a monogamia
e nem sequer concubinas permitia...
Aproximando-se, Polidectes indagou
onde morava e quais eram seus pais;
e a bela ruiva falsa história lhe
contou:
que ali nascera, sendo seus pais
naturais
os pescadores, que os antigos
recusou
mencionar, pelas maneiras anormais
com que a haviam criado prisioneira
e sobre as ondas a lançado em branca
esteira...
Polidectes foi a cabana visitar
e indagou se o menino era seu irmão;
mas quanto a isso, não quis
prevaricar:
“É meu filho, Majestade,” disse
então
“E seu marido?” o rei quis indagar.
“O mar bravio nos separou, num
furacão...”
disse ela, realmente sem mentir,
pois nunca mais Zeus pudera
pressentir.
PERSEU E AS GÓRGONAS VII
Então o rei para o palácio a
convidou
e que com ela trouxesse o seu
menino.
“Você é bela demais,” a elogiou,
“para esconder-se neste mau
destino...”
Era uma ordem, entendeu, e a
aceitou,
sem desconfiar de algum ardil mais
fino.
Pois era virgem, afinal, ainda
inocente
e contrariar não se atrevia a seu
regente.
Mas a presença de Perseu atrapalhava
de Polidectes qualquer má intenção;
no treinamento de combate o
conservava
ou lhe confiava qualquer uma missão
ou ainda em sentinela o destacava...
Porém sua esposa nem a mínima
ocasião
lhe permitia para sozinho se
encontrar
com a tal donzela que o rei sabia
desejar.
O rei de Sírifos então pretendeu
celebrar seus vinte anos de reinado;
cada conviva então lhe ofereceu
o melhor presente que havia achado;
mas quando o jovem Perseu apareceu,
nada lhe trouxe, por ser de tudo
despojado...
Polidectes então o interrogou:
“Qual o presente que hoje me
ofertou?”
“Majestade, bem sabeis que nada
tenho,
salvo a coragem e a força de meus
braços;
fui convidado, razão por que aqui
venho,
mas estou pronto a dirigir meus
passos
para onde me ordenar, com todo o
empenho,
enquanto energia tiver nos membros
lassos...”
“Pois então me traga a cabeça de Medusa!”
disse Polidectes, já esperando uma
recusa...
Qualquer recusa de Perseu o
envergonharia
e serviria de motivo para o exilar;
em sua ausência, a Dânae
seduziria...
Casado ou não, a poderia namorar...
Porém Perseu pediu-lhe um ano e um
dia,
antes de tal cabeça lhe entregar...
Mesmo Perseu não tendo ainda quinze
anos,
era mais forte e mais alto que os
humanos.
PERSEU E AS GÓRGONAS VIII
Ao saber a quem seu filho
enfrentaria,
Dânae ajoelhou-se e a Zeus suplicou,
que seu pedido em breve lhe atendia,
pois quatro grandes deuses convocou;
a deusa Athena seu escudo lhe
trazia,
polido igual a espelho e lho
entregou;
chegou Hefesto, senhor do mundo
arcano,
com capacete de efeito soberano...
“Ponha-o na cabeça e então será
invisível!
mas como o escudo, terá depois de o
devolver!...”
Veio Artemísia, trazendo a
irresistível
espada Chrysaor, um estranho ser
que fora filho de Medusa e o dom
terrível
de sua mãe, ao invés de em pedra o
converter,
o transformara nesse gládio de magia
a que nem ferro nem pedra resistia!...
E finalmente, chegou Hermes, o
mensageiro,
as suas sandálias aladas
emprestar-lhe...
“Mas veja bem: é só empréstimo
ligeiro;
metade de meu poder estou a
entregar-lhe;
ainda transponho os ares,
sobranceiro,
mas devagar... De Zeus respeito o talhe,
porém não posso mais transmitir os
seus recados,
sem ter de volta meus mágicos
calçados...”
“Sendo assim, um conselho lhe
transmito,
para que alcance sucesso em sua
missão:
que voe até a Líbia agora o incito;
no Lago Tritônides vá encontrar essa
mansão
habitada por Euríale, com o fito
dos caminhos descobrir a direção.
Ela é a terceira górgona, a bela,
que nas areias do deserto se
encastela...”
Segundo Ovídio, as Górgonas eram
três,
Medusa, Esteno e Euríale, ainda
irmãs
das três Graias, que nasceram por sua
vez
com os cabelos brancos como lãs,
mas deformadas e tão escuras em sua
tez
como a meia-noite difere das manhãs
e ainda tinham só um olho e só um
dente,
mais feias que qualquer humana
gente.
PERSEU E AS GÓRGONAS IX
“Aspiração zelosa de muitos pretendentes”
era Medusa, das três mesmo a mais
bela;
sacerdotisas de Athena, que
inclementes
repeliam com escárnio, a troça que
mais gela
os corações de quaisquer dos
insistentes
em que intenção erótica se atrela;
de sua própria beleza tão vaidosas
que mais que a deusa diziam-se
formosas!
Porém Posêidon, vendo-lhes a
vaidade,
decidiu dar a Medusa uma lição;
nunca descia à praia, em realidade,
mas numa tarde, um cansaço sem razão
acometeu-a, vindo da salinidade
e a maré subiu correndo pelo chão,
até causar-lhe a mesma gravidez
inesperada que Zeus após em Dânae
fez...
Porém Zeus o faria por piedade,
enquanto Posêidon realizou-a por
castigo,
denunciando a Athena que impiedade
Medusa cometera do templo no jazigo;
E a deusa, que já lhe tinha
má-vontade,
fê-la depois casar-se com terrível
inimigo,
o monstro Calirrói, que à força a
seduz,
quando a Équidna e a Gérion deu a
luz...
Mesmo feios igual ao avô, o monstro
Ceto,
tomou Athena os dois seres como
escravos
e transmutou de Medusa o seu dileto
rosto em um horror, dentes em
cravos,
e os cabelos a que mostrara tanto
afeto
em víboras horríveis, olhos bravos,
tão malignos de ódio e de rancor
que petrificavam aos heróis de mais
valor!...
Segundo Hesíodo, eram antes suas
feições
a causarem nos humanos tal horror
que transformavam em pedra
multidões,
incapazes de fugir de um tal terror,
completamente empedernidas as
paixões,
petrificados por seu medo e seu
rancor;
e o filho de Posêidon, Chrysaor,
tornara
naquela espada, ao permitir que a
contemplara!
PERSEU E AS GÓRGONAS X
Terrível coisa é contemplar ao
sobre-humano!
Assim com Sêmele, a mãe de Dionyso,
que morreu calcinada, quando ao
soberano
Pai dos Deuses teve diante de seu
viso;
também Jeová, àquele Moisés arcano
não permitiu, por resguardar-lhe o
siso,
o seu semblante em glória
contemplar:
só ao ver-Lhe as costas, sua face a
rebrilhar!
Pois de Medusa, só a fisionomia
bastava para a vida exterminar!...
Ao ver a irmã, no horror em que
jazia,
Esteno suplicou à Athena lhe
perdoar;
que “ficasse igual a ela” então
pedia
e assim Athena lhe atendeu ao
suplicar:
como Medusa ficou igualmente feia,
que até de olhar a si mesma se
arreceia!
Para Euríale a sábia deusa se
voltou:
“Também você algo deseja suplicar?”
“Amada deusa, nenhum pecado me
tentou:
quero somente como antes continuar!”
E a Tritônides Athena a transportou,
para um novo e belo templo lhe
fundar
e conferiu-lhe a imortalidade
em recompensa por sua fidelidade!...
Foi a esta que Hermes o enviara
e como usar as suas sandálias o
orientou,
até que as costas da Líbia divisara...
“Meus pés desnudos o sol já
requeimou,
que meu auxílio à lerdeza
condenara!”
Com o capacete para o Olimpo
retornou;
Perseu seguiu ao longo do deserto,
até que o templo foi ficando
perto...
Desceu perante o pórtico, equipado
com o escudo, o capacete e Chrysaor,
as duas sandálias em cada pé alado
e Euríale o recebeu em grão favor:
“Tenho um banquete no átrio
preparado;
Zeus me avisou de um visitante de
valor
e Athena espera que lhe dê
informações
para atingir de minhas irmãs as
habitações...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XI
“Não espere de mim qualquer traição,
nem se iluda que lhe demonstre amor;
de minhas irmãs sei bem a maldição,
que Athena desafiaram; mas só louvor
tenho por ela, nos séculos que estão
ainda à minha frente, só por seu
favor;
não tenho afeto por aquelas duas
feiosas,
que até merecem mais castigo essas
maldosas!”
“Contra mim gênios maus envia Medusa
e Esteno a mim atiça elementais...
O poder de Athena os ares cruza,
mas se distraem mesmo os seres
divinais.
Eu deveria só agir como uma musa,
mas as Eumênides, as Hárpias e
outras mais
sou forçada toda noite a enfrentar!
De minhas irmãs só desejo me
livrar!...”
Após brindá-lo com lauta refeição,
fê-lo dormir até o amanhecer.
Perseu ergueu-se com a primeira
devoção,
reverenciando a Athena em seu lazer;
depois Euríale lhe fez declaração:
“Perseu, confesso que senti grande
prazer
com sua visita e. por isso, o
enganei,
porque os caminhos certos eu não
sei!...”
“É na Hiperbória, lá no extremo
Norte
que a Górgona Medusa tem covil;
e sei que Esteno mantém sua simples
corte
em qualquer ilha do arquipélago
senhoril
das ilhas helênicas, aonde lê a
sorte
de quem se atreve, com valor viril
ou coragem feminil a procurar
em sua caverna, após monte
escalar...”
“Mas não se assuste, enganei-o
parcialmente,
só por querer desfrutar sua
companhia...
Vou ensinar-lhe o caminho,
inteiramente
para as Graias, que conseguem, por
magia
encontrar senda ou estrada
diferente...
Para enganá-las, seu capacete
serviria...
São minhas irmãs, porem devoram
gente
e o levariam a tal destino
ingente...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XII
“As minhas irmãs infelizes nem têm
nome!
Só têm um olho e só possuem um
dente;
a maior parte do tempo passam fome
e volta e meia sofrem acidente,
pois esse olho que sua cegueira dome
não lhes permite à audição tornar
potente
e compensar-lhes a falta de visão,
pois o olho passam assim de mão em
mão...”
“Quando chegar, por suas costas, de
mansinho,
seu olho agarre com a maior rapidez,
antes que estendam garras aduncas
como espinho
e pegue-lhes o dente, então, por sua
vez!
Suplicar-lhe-ão, com vozes de
carinho
ou gritarão em raiva espessa como
pez...
Mas sem lhe darem as respostas que
procura,
não lhes devolva esses órgãos que
segura!”
Perseu voou até o lugar, rapidamente
e viu as Graias, tentando cozinhar...
Com o capacete, bem disfarçadamente
chegou por trás e conseguiu pegar
aquele olho, seu único órgão
vidente,
quando as irmãs o foram repassar;
na confusão a seguir, pegou o dente,
deixando as três a chorar
pungentemente...
“À Hiperbória como chego?”
perguntou.
Sob protesto, o caminho lhe
indicaram;
“Qual é a ilha de Esteno?” ainda
indagou.
De mau grado as três o informaram:
“É a ilha de Lesbos, na qual
encontrou
adoradores, que até hoje a
alimentaram...
Agora, ande, devolva o nosso dente
e o nosso olho, ó homem
indecente!...”
“Primeiro, digam-me o que devo fazer
para vencer a Górgona terrível!...”
“Com seu escudo, será fácil obter
que ela contemple sua feição
horrível;
e enquanto imóvel ela permanecer,
degole-a então, com sua espada
invencível!
Zeus, seu pai, sua mão há de guiar
e facilmente a poderá matar...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XIII
“Mas que pretende fazer com sua
cabeça?”
as três Graias indagaram,
ardilosas...
“Pretendo carregá-la, sem ter pressa
e entregá-la nas mãos poderosas
de Polidectes, cumprindo minha
promessa.”
“E que proteção terá contra as
maliciosas
vistas terríveis de nossa irmã
Medusa,
quando sua vista com os olhos dela
cruza...?”
“Mas ela mata, mesmo depois de
morta?”
“Sem a mínima dúvida, meu rapaz;
só uma coisa sua malignidade corta:
um surrão feito com a casca veraz (*)
de nossa irmã Esteno, que comporta
a melhor proteção que o mundo traz;
terá de ir até Lesbos primeiro
e encontrá-la dormindo em
travesseiro...”
(*) Saco de couro próprio para
viagem.
“Como assim?” disse Perseu,
espantado.
“Ora, ela tem o mesmo olhar
petrificante
que de Medusa o rosto feio é dotado,
mas só pode ser morta num instante
em que Morfeu a tenha dominado...
Para ela o reflexo é insignificante,
porém nosso bom sobrinho Chrysaor
seu pescoço cortará, com grande
ardor...”
Perseu lembrou-se de que a espada
fora gente
e que sua própria mãe a
transformara...
“Corte a pele de suas costas com a
potente
lâmina da espada que consigo
carregara
e a costure com suas veias,
facilmente,
sem qualquer fresta que o mau olhar
ultrapassara.
Já o ajudamos, agora dê nosso olho
e nosso dente ou secaremos em
restolho!”
Mas Euríale o havia prevenido
de que elas poderiam enfeitiçá-lo
após terem olho e dente recebido
e assim os colocou dentro de um
valo,
a vinte metros do covil perdido
e alçou voo antes que os alcançassem
e algum feitiço, por vingança,
praticassem!
PERSEU E AS GÓRGONAS XIV
Chegou à ilha de Lesbos facilmente;
em Mitilene pousou, sem mais demora,
a caverna descobrindo incontinenti,
um ressonar escutando nessa hora
e devagar penetrou, invisivelmente,
nessa penumbra que precede a aurora:
viu Esteno a dormir no travesseiro
e degolou-lhe o pescoço, bem
ligeiro!...
Encontrou na parede lamparina;
só então viu que tinha forma de
dragão;
com sua espada, esfolou-a desde a
crina;
tirou-lhe as veias e costurou o seu
surrão,
sem que o monstro percebesse qual a
sina
que a surpreendera sem qualquer
previsão;
quando saiu, já encontrou um
consulente,
porém no ar se alçou,
rapidamente!...
Muito mais tarde, quando nessa ilha
foram cunhadas as primeiras moedas,
traziam de Esteno a face que
perfilha
a boa sorte para o lar e as medas, (*)
causas perdidas a indicar sua
trilha...
“Que
mil pequenas graças nos concedas!
O
que eu perdi, dou-te em nome de Perseu:
assim
devolve, bem rápido, o que é meu!...”
(*) Montes de cereais cortados na
ceifa.
Sem perder tempo, voou ao extremo
Norte,
com o surrão sanguinolento na
cintura!
E da Medusa encontrou a feia corte:
mil estátuas desgastadas pela
agrura!
Invisível, para evitar a mesma sorte,
seguiu a trilha, na precaução mais
dura,
o escudo sempre à frente de seu
rosto,
de esguelha olhando, a contemplar o
lado oposto!
Ao invés de chegar perto, se
afastava,
como se fossem luzes de miragem,
toda a paisagem, enquanto caminhava;
mas prosseguiu à frente, com coragem
até que ao longe, a Medusa ele
avistava,
mas ao contrário lhe surgia a
imagem!
Parou à espera, sem desviar o olhar
e sem seus impropérios escutar!...
PERSEU E AS GÓRGONAS XV
Então seu pai lhe orientou o braço
e sobre ela brandiu-se Chrysaor,
no pescoço da mãe final abraço,
nesse amor e ódio de filial rancor;
do frio olhar apagou-se todo o
traço,
porém Perseu guardou sadio temor
e sem olhar, pôs a cabeça no surrão,
de suas picadas alcançando proteção!
E alçou voo, sem esperar por mais,
sentindo morta a espada do seu lado,
enquanto estátuas de pedra minerais
se desmanchavam e tombavam sem
cuidado;
e desse modo, não veio a saber
jamais
do nascimento do cavalo alado,
Pégaso, que do pescoço após
desponte,
visto e domado por Belerofonte!...
Voltando a Sírifos, encontrou
embriagado
Polidectes, sua mãe a perseguir;
no seu caminho deteve o passo
alado...
Mandou o rei ao jovem destruir,
mas Perseu advertiu, no instante
azado,
seus amigos ambos olhos a cobrir;
então tirou a cabeça do surrão,
dos inimigos petrificada a multidão!
Polidectes percebeu o acontecido
e sua cabeça baixou bem depressa,
sendo a Perseu ainda vivo conduzido
e de pedir-lhe perdão então não
cessa...
Mas no momento em que lho foi
concedido,
apoderou-se do surrão, em grande
pressa,
pretendendo vingar-se de Perseu,
mas em pedra também se converteu...
Perseu então a estátua carregou
e aos pés de Dânae arrojou-a por
momentos;
e então da encosta ao mar ele a
lançou,
Polidectes esfacelando em
fragmentos;
sua coroa o povo lhe entregou,
porém a recusou e deu assentos
nos tronos ao casal de pescadores,
Climene e Díctis, seus antigos
protetores.
PERSEU E AS GÓRGONAS XVI
Mas Dânae quis voltar para sua terra
e embarcaram para Argos numa frota;
Acrísio teve medo de uma guerra
e os recebeu tal qual a honra
denota;
com um banquete a disputa então
encerra,
oferecendo dividir, quota com quota,
o reinado de sua terra com o neto,
já encarado com orgulho e com
afeto...
Mas como seria quebrantada a
profecia?
Durante a festa houve competição
e no lançamento do disco se
inscrevia
Perseu, após vencer com galardão
na corrida, no dardo e na porfia
da luta livre, demonstrando-se o
campeão...
Porém o vento seu disco desviou
e na cabeça de Acrísio se cravou!...
Então seria seu herdeiro natural,
mas Praectos apresentou oposição:
“Não é justo seja o trono triunfal
de Argos alcançado em maldição!
Foi certamente morte acidental,
mas meu sobrinho trucidou-me o
irmão;
não cabe aqui condenação à morte,
porém merece do exílio a triste
sorte!...”
“À sua mãe atribuiremos a realeza,
porém a mim reservarei a regência;
tratarei a Dânae com a maior
nobreza,
porém Perseu deverá a sua potência
empregar empós outra qualquer
realeza:
de Zeus seu pai obterá a
benemerência!”
E Perseu, humildemente, se curvou
e para partir, logo a seguir, se
preparou.
Com
tantos dons, qualquer trono obterei,
sem
precisar passar necessidade;
a
minha mãe depois eu buscarei,
para
viver comigo em majestade...
Meu
tio Praectos tem razão e obedecerei,
logo
cremados os restos da mortalidade
de
meu avô, que tão pouco conheci
e
a quem, em meu descuido, destruí...
PERSEU E AS GÓRGONAS XVII
Mas no momento em que era a noite
mais escura,
foi surpreendido por quatro
visitantes:
Athena e Hefesto, com Artemísia
pura,
além de Hermes, o protetor dos viajantes.
“Tua missão terminou!” Firme doçura
ouviu na voz de Athena. “Chegaram os instantes
de devolver aos proprietários
verdadeiros
os quatro dons que te foram
companheiros...”
Então a Athena seu escudo devolveu;
o capacete o deus Hefesto retomou;
Artemísia aquele gládio que era seu
e as sandálias nos pés Hermes
calçou...
Um pesadelo parecia sofrer Perseu,
porém Athena depressa o consolou:
“Tens a cabeça de Medusa como amiga
e Hermes gentil ainda será o teu
auriga!”
Assim, tão logo completada a cremação,
Hermes tomou nos braços a Perseu
e o carregou para sua nova missão
e a conquista do reino que era seu.
Kefros, pai de Andrômeda, tinha
dominação
sobre toda a Etiópia; sobrevoando o
Egeu,
todo o Egito bem depressa
ultrapassaram
e o Noroeste da África alcançaram...
Chamavam então de Etiópia ao
continente
que chega às praias do grande Rio
Oceano;
dominava Kefros então toda essa
gente,
desde a Líbia seu inconteste
soberano;
Atlas marcava seu limite mais
saliente,
até o feroz deserto do africano;
e assim Hermes o deixou junto ao
titã,
já nos primeiros albores da manhã...
E de imediato, desafiou-o o gigante:
“Quem és tu que aproveitas a minha
sombra?
De onde vieste, ousado viajante...?”
Sua imensidão a Perseu sequer
assombra...
“Da Hiperbória eu chego neste
instante:
Matei Medusa diante de sua
alfombra!...”
Atlas Titã soltou uma gargalhada:
“Há muito não escutava igual
piada!...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XVIII
“Pois se a mataste, mostra-me a
cabeça!
Caso contrário, não te acreditarei
e por castigo de me quereres pregar
peça,
com um só dedo já te
esmigalharei!...”
Perseu abriu o surrão, sem grande
pressa...
Desviou o olhar, mas o titã sem lei
diretamente aquele verde olhar fitou
e em alta montanha então se
transformou!
Era nas costas da Tunísia a capital
desse Kefros de magníficos poderes,
embora ainda submetido à divinal
potência, a quem cumpria seus
deveres.
Mas sua esposa Cassiopeia fez o mal
de comparar a sua beleza a santos
seres:
as Náiades, que vogavam sobre o mar,
filhas de Posêidon, em seu másculo
criar!
Como castigo, o rei do mar enviou a
Ceto,
que com Fórquis às Górgonas havia
gerado,
a devastar-lhe as costas do dileto
reino junto às praias espalhado;
então o Oráculo anunciou o fado
secreto:
que tal pecado tão somente seria
perdoado
quando Andrômeda, a sua filha amada
fosse à fera entregue,
acorrentada!...
Assim Perseu ao rei apresentou-se,
após ver a deslumbrante formosura
da pobre jovem, que ao penhasco
acorrentou-se,
para sofrer a morte ou pior tortura
às mãos do monstro; e assim
propôs-se
a aniquilá-lo, se de tal beleza pura
recebesse sua mão em casamento;
logo de Kefros recebeu
consentimento...
Apresentou-se a Andrômeda isolada
e os dois se apaixonaram num
momento;
porém lhe disse a princesa,
apavorada:
“Não venha a sofrer igual
padecimento!
É impossível ser tal fera
derrotada!...”
“Pois morrerei, com o maior
contentamento;
não deixarei a tal monstro
devorá-la!
Se for morrer, eu irei
acompanhá-la!...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XIX
Então surgiu um redemoinho e um
turbilhão
e das ondas se ergueu o monstro
imenso;
diante dele Perseu ergueu o surrão:
“Ceto, recua!” – ordenou, em grito
intenso
e a fera o contemplou, em
estupefação,
erguendo-se ainda mais sobre o mar
denso:
“Como te atreves, ó mísero mortal
a desafiar a mim, ser de origem
divinal...?”
“De divino nada tens, ó feroz Ceto;
se algum atributo possuis, é de
infernal!
Diante de Atlas eu era como um
inseto
e o transformei numa montanha
mineral!...”
“Eu te conheço!” trovejou. “Truque
secreto
contra minha filha empregaste, vil
mortal!
Por tua culpa, nunca mais eu a
verei!...”
“Não será assim! Sua cara agora mostrarei!”
Abriu o surrão e a cabeça
apresentou!
Ceto soltou um terrível rugido
e de suas mãos o surrão
arrebatou!...
Mas já de morte achava-se ferido
e num vasto penhasco transmutou!...
Mas o alforje havia desaparecido:
No mar perdeu-se a cabeça de Medusa!
Ai
daquele que algum dia com ela cruza!...
Mas Cassiopeia, para sua desgraça,
pensou na filha e em sua terrível
sorte
e nos rochedos lançou beleza e
graça,
alegremente acolhida pela morte...
Perseu e Andrômeda chegaram até a
praça
quando o rei Kefros pranteava sua
consorte;
porém seu luto de imediato se
abrandou
ao ver Perseu e a filha que
salvou!...
Em breve celebrou-se o casamento,
feliz união que muitos anos dura;
porém do rei chegou logo o
passamento,
pela tristeza que o coração perfura,
deixando a vida em pressago
sentimento,
na viuvez a prantear sua esposa
pura...
E assim Perseu da Etiópia fez-se o
rei,
junto de Andrômeda, conforme manda a
lei...
EPÍLOGO
Os dois tiveram muitos filhos
fortes;
deles descendem heróis gregos
numerosos
que partilharam de boas e más
sortes,
feitos descritos por poetas
fervorosos;
Perseu fundou Micenas e suas cortes
e os reis da Pérsia, depois tão
poderosos,
descendem deles... como os tronos
reais
da antiga Hélade das lendas
triunfais...
Artemísia deu a Athena Chrysaor,
a espada mágica que fora um dia
gigante;
Posêidon do mar sondou o negror
e achou a cabeça de Medusa
horripilante,
que a deusa pôs sobre seu elmo, sem
temor;
não mais petrifica, mas produz som
sibilante,
a despertar o terror da bruxaria,
embora Athena só nos dê a
sabedoria...
Já muito velho, faleceu Perseu,
quando buscava um javali caçar;
mas Zeus lembrou-se desse filho seu,
para em constelação o transformar;
também a Cassiopeia acometeu
o destino de em estrela se virar,
porém Andrômeda teve a sorte mais
formosa:
no espaço brilha como grande
nebulosa!...
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