domingo, 10 de agosto de 2014








CRUZES DE URTIGA I – 27 fev 2010

és, afinal
fato irreal
nessa mortal
incompreendida
sentina amarga que chamei de vida
todo esse tempo que a tarefa apaga
satisfação que outra tarefa esmaga
relâmpagos minúsculos, a que ajunto
um rendilhado de sonhos, em defunto
coriscar de negror no céu azul
do norte ao sul
mágoa total
no pão banal
do amor sem sal

CRUZES DE URTIGA II

é cor de fel
esse hidromel
mofado mel
que na alma cai
não é a cor de teus dedos que me atrai
eu busco em vão o gosto da saudade
não me alforria de ti a liberdade
são teus grilhões que anseia minha loucura
é a podridão que busca a semeadura
é mais morrer que procurar o bem
nisto também
fardo infiel
ódio novel
no amor de gel

CRUZES DE URTIGA III

eu beijo agora
mofada aurora
um som de amora
cor do desejo
e mergulho sob a luz do plenilúnio
molhado firmemente no luar
sem sequer os cabelos ensopar
mas me projeto nesse igual instante
na sombra azul do apelo amargurante
navegando nos ponteiros do infinito
tudo está dito
só resta a lua
que ela flutua
no céu conscrito

CRUZES DE URTIGA IV

felicidade
é falsidade
que um dia há-de
sumir inteira
toda promessa apenas barulheira
e quem nela acredita apenas tonto
somente cai nesse vigário conto
quem não lamenta ser desiludido
só no concreto mesmo tenho crido
no resultado que me cruza a mão
que a oração
sem amizade
é a opacidade
da humanidade

CRUZES DE URTIGA V

na zombaria
da fancaria
de noite e dia
fui iludido
não é que tolo sempre tenha sido
é que guardei na alma de criança
a chama verde-pálido da esperança
de algum dia receber um dom gratuito
mas pela vida tudo foi fortuito
e a crença inteira deveria ser finda
mas eu ainda
nessa elegia
querer queria
que amor sorrisse

CRUZES DE URTIGA VI

são os moçárabes
muxarabis
sobre arcos árabes
arpéus de sangue
precipitados em doidas ogivas
que me cederam este desvario
que me revestem desse antanho brio
nessa remota ascendência minha
dessa donzela que podia ser rainha
mas foi roubada por um mal de amor
e em seu ardor
tudo largou
e se entregou
a quem amou

CRUZES DE URTIGA VII

na verde luz
que me seduz
eu vejo a cruz
da encruzilhada
nenhum caminho me conduz a nada
mas tomei o meu primeiro sem saber
até que ponto o posso percorrer
até que encontre outra cerrada porta
até sofrer o que o destino corta
a mão esquerda a roubar da mão direita
bela desfeita
com olhos nus
me trouxe a luz
a que me expus

CRUZES DE URTIGA VIII

meu nascimento
breve portento
um só momento
tão repetido
à luz do meio-dia fui nascido
com certeza não foi na estrebaria
mas no hospital um quarto não havia
levaram minha mãe para o salão
nessa mesa que usavam em reunião
sob as vistas dos velhos diretores
sem mais demoras
nasci depressa
viver não cessa
melhor cabeça

CRUZES DE URTIGA IX

não vou ficar
neste lugar
sem me abrigar
em algum lagar
dessa desfeita em que me encontro agora
busco em vão a proteção da lua cheia
que até o plenilúnio me incendeia
sem que consiga virar-me em lobisomem
nessa defesa vã, antes que tomem
o que pensava poder chamar de meu
o mundo deu
para tirar
não vou ficar
neste lugar

CRUZES DE URTIGA X

depois de anos
de desenganos
manos a manos
bebi quimera
na luz plangente de cem pintassilgos
pensei que fosse meu próprio travesseiro
é apenas de sua fímbria que me abeiro
a meu redor tranço cordas de sol
uma corrente de ferro no arrebol
mas me derreto a cada grão de chuva
pevide e uva
sonho de cacho
sonho de macho
erguido o facho

CRUZES DE URTIGA XI

herdei dos pais
meus afinais
meus terminais
e meu começo
apenas tempo de memória peço
antes de ser consumido por peçonha
antes de ver a cova em que me ponha
de mãos cruzadas e pernas estendidas
sujeito à fome de baratas comedidas
reunidas para a sombra do banquete
estranha enquete
o que acharam
do que comeram
versos finais

CRUZES DE URTIGA XII

trago um bordel
no meu farnel
sonho de fel
e de lascívia pura
ainda voo nas asas do desejo
mudei assaz os sonhos de criança
a imaginação mais longe alcança
embora seja bem mais contristada
por tanta vez em que se viu frustrada
foi sua candeia o fogo de santelmo
fendido o elmo
tristeza infinda
combato ainda
na dor mais linda

CRUZES DE URTIGA XIII

já não espero
que o quero-quero
num lero-lero
sem mais sentido
qualquer instante tenha-me querido
transmitir uma só sombra de mensagem
é o vingador apenas de passagem
pouco se importa com o humano sonho
por mais que seu piar seja tristonho
não anuncia a morte e nem mais nada
pura piada
grito sincero
marcando mero
seu território

CRUZES DE URTIGA XIV

nos alambiques
há estranhos tiques
que não me indiques
mas sempre encontro
a cada vez escorrendo de meus dedos
os sonhos mais etílicos da glória
em prata e ouro um gole de vitória
assim ganhei pedra filosofal
a decretar quais sejam o bem e o mal
e absolutamente não me importo
se o mundo entorto
meu sonho aborto
e o globo acerto
num golpe incerto

CRUZES DE URTIGA XV

não sei se amo
ou se reclamo
ou se proclamo
meus caramujos
possuo um rio que corre para cima
blocos de gelo fervendo na panela
cascos se erguem da terra despojada
são as velas que impulsionam o meu vento
ponho as cidades no meu catavento
e o mundo inteiro dentro do embornal
cantil fatal
timão de ardor
galera crua
sem mar flutua

CRUZES DE URTIGA XVI

carrego a cruz
sobre os pés nus
só me reluz
baça coroa
eu não possuo o controle dos destinos
as parcas me contemplam de olho só
em sua cegueira correm sobre o pó
só têm um dente e só possuem um dedo
é muito fácil desvendar o seu segredo
eu fui à sua choupana e encompridei
atei três vidas
não mais cortadas
só consagradas
e as tornei minhas

CRUZES DE URTIGA XVII

ainda penso
quando estou tenso
usar meu lenço
de maragato
o parlamentarismo é extinto fato
de modo igual a nossa monarquia
que a atual constituição impediria
cláusula pétrea é o presidencialismo
como a república aceita com mutismo
que à ditadura chamem democracia
eucaristia
sem hóstia ou senso
vermelho denso
resta meu lenço

CRUZES DE URTIGA XVIII

a lua é o queijo
do meu desejo
lanço-lhe um beijo
só não acerto
um grande sonho plantei no meu deserto
mas houve inundação e tromba d’água
e descobri para minha grande mágoa
que a umidade assim desamparada
levou minha alma a ser desarraigada
ao invés de permitir que mais brotasse
tudo desfaz-se
a cada ensejo
e sempre vejo
que mais me aleijo

CRUZES DE URTIGA XIX

a minha lança
ainda alcança
ainda avança
sem descansar
procura ainda o universo conquistar
moinhos de vento vem requisitar
qual quixotada sem se ter moinhos
arbustos são gigantes mais mesquinhos
e cada vez que esfolo o integumento
engulo em seco meu tolo julgamento
mas me contento
feito criança
musgo esperança
que não me cansa

CRUZES DE URTIGA XX

no meu castelo
existe um belo
gato amarelo
porém sem rabo
também minha própria cauda foi cortada
nesses minutos após o nascimento
para conter meu antropoide sentimento
que sobre a copa das árvores faria
com que eu catasse o quanto mais queria
e fui agora forçado a andar em pé
e sei até
que se saltasse
talvez voasse
por pura fé

EPÍLOGO

talvez ainda
se for infinda
a vida linda
que eu aguardava
aos poucos desça entre as gotas dessa chuva
e me esbordoe o rosto em desatino
afinal, corre o sangue do destino
e me força a escrever em tom plangente
essas palavras de sabor bem diferente
do que em geral acredito ser poesia
mas eu queria
lúdica via
que a chuva fria
não me iludisse
só cantaria
mágoa arderia
se à luz do dia
não me apagasse
se tomasse todo o vento pelas rédeas,
penas de chuva no meu travesseiro
lençóis tecidos de corisco alvissareiro
de pedras de saraiva meu colchão
uma coberta de espuma de trovão
e sobre a morte sempre assim flutuasse
e então cantasse
nesse momento
em que apresento
meu julgamento

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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