segunda-feira, 11 de agosto de 2014






DIA DA CEIFA I – 5 AGO 14

Na palma de minha mão eu trago a morte
Que nunca amei, porém sempre foi amiga;
Seu coração recebeu longa guarida
Na Linha de minha Vida, em longo corte.

A quiromante me predisse longa sorte
Que até o presente vem sendo cumprida;
Seis filhos que já tive e o amor que liga,
Na quina de minha mão, igual consorte.

Porém agora eu percebo como a foice
Corta ao acaso para seu banquete:
A ceifadora sempre foi faminta;

Mas na palma de minha mão sua alma trouxe
E a guardarei comigo, sem que afete
Tantos amores quantos em mim pressinta.

DIA DA CEIFA II

Na palma de minha mãe eu trouxe o amor;
É de estranhar que minha mão direita
Possua apenas, breve e imperfeita,
Do Coração a Linha em seu valor.

Desde as costas da mão tem seu contor-
no e então se dobra até o mínimo, direta,
Porém se perde, à sinafia sujeita,
Qual a palavra que rimou com meu ardor...

Ou então, com a da Cabeça se confunde,
Em um meandro reto e todo ilhado;
Só a da Vida avança com cuidado,

Até que no meu pulso se aprofunda,
Deixando ao centro a minha estrela-guia,
Que deveria inspirar-me a profecia...

DIA DE CEIFA III

Na mão esquerda, o esquema é diferente;
Dizem, de fato, que apenas essa vale
E que a direita a confirme ou então se cale;
Mas o traçado da direita é impertinente!

Na mão esquerda, a do Coração se sente
Igualmente como um rio que a terra rale
E forma ilhas... Quiçá ali Amor me fale
E até insista para amor ter mais frequente...

De fato, ela é cortada muitas vezes,
O que dizem indicar as ligações,
E se projeta até o indicador;

E essa linha da Cabeça então desprezas,
Por ser mais curta; mas da Vida as flutuações
Entram no pulso e o dobram com vigor!

DIA DA CEIFA IV

Já disse antes, de todas as mancias
Essa é a única em que poderia  acreditar;
Afinal, no materno útero a nadar,
Adquiri tais dobraduras que hoje vias.

Porém na palma da direita, não lerias
Esse “M” que em ti podes contemplar;
De fato, é um “A”, para quem o procurar;
Até na esquerda só imperfeito o espias.

Destarte, as longas linhas demarcadas
Como indicando longa e extensa vida,
Talvez não sejam nada mais do que ilusão.

Não vou aos mortos comparar as mãos fanadas,
Mas sei que um dia chegar-me-á ceifa incontida,
A confirmar-me ou a negar-me a previsão!

JANTAR DE HAMSTER I – 06 AGO 14

ELE CONTEMPLA OS DONOS SEM RECEIO,
JÁ QUE ESSA GENTE SEMPRE O ALIMENTOU,
PEQUENO HAMSTER COM ALEGRIA SUSTENTOU,
PELO PRAZER DE VÊ-LO DE PERMEIO
À SUA PRÓPRIA VIDA, BREVE ESTEIO
DA SUPERIORIDADE COM QUE O CONTEMPLOU
E EM SOFÁS E POLTRONAS SE ASSENTOU
PARA OBSERVAR O BICHINHO NO SEU MEIO...

É CERTO QUE O GUARDAM EM GAIOLA
QUANDO POR PERTO NÃO VAI FICAR NINGUÉM:
TEM ALI SUA ESTEIRA E SUA RAÇÃO
E ENTÃO TIRAM A CRIATURA PARA EXPÔ-LA
A SUAS VISITAS, QUANDO CHEGA ALGUÉM,
EQUILIBRANDO-A NA PALMA DE SUA MÃO...

JANTAR DE HAMSTER II

SEM DÚVIDA, É BICHINHO BEM BONITO;
PROVAVELMENTE HÁ MUITOS MAIS AGORA
DO QUE NA NATUREZA NESSE OUTRORA,
QUANDO SEU NÚMERO ERA BEM MAIS RESTRITO
E CADA UM SOFRIA MEDO AFLITO
NESSE TERROR QUE LHE CHAGASSE A HORA,
DEVORADOS POR CORUJAS, SEM DEMORA,
POR SERPENTES OU CARNÍVORO PERITO.

NÃO FALTAM ESSES TOLOS, AFIRMANDO
QUE DEVERIAM DEVOLVER À NATUREZA
OS SERZINHOS QUE TÃO MEIGOS LHES PARECEM,
SEM PERCEBER QUE ASSIM OS DEPORTANDO
CONDENÁ-LOS-IAM À MORTE, COM CERTEZA,
ENQUANTO OS RAPINANTES AGRADECEM...

JANTAR DE HAMSTER III

TEM SIDO ASSIM ATÉ FREQUENTEMENTE
O RESULTADO DE TANTO DESAVISO;
ATÉ PARECE QUE LHES FALTA O SISO
E NÃO PERCEBEM COMO O MUNDO É INDIFERENTE
E QUE A LEI DO MAIS FORTE E PREPOTENTE
OS CONDUZ À CAPTURA, SEM AVISO
E QUE O PROBLEMA É MUITO MAIS CONCISO
DO QUE IMAGINA ECOLOGISTA DESCONTENTE...

DE FATO, FORAM CIRCOS E ZOOLÓGICOS
QUE PRESERVARAM MUITAS RAÇAS DA EXTINÇÃO
QUE SOFRERIAM NOS PRADOS AFRICANOS,
MAS EM ALTAS VOZES AFIRMAM OS ILÓGICOS,
NESSE SEU FALSO IDEAL DE PROTEÇÃO,
QUE SÃO VÍTIMAS E ESCRAVOS DOS HUMANOS...

JANTAR DE HAMSTER Iv

CONTUDO, COMO É ESCRAVO O ANIMALZINHO
DE PELO CLARO E PATINHAS COR-DE-ROSA,
QUE REFEIÇÃO RECEBE GENEROSA,
EM TROCA APENAS DE MOSTRAR-SE ENGRAÇADINHO?
E OS CÃES E GATOS VADIOS, SEM TER CARINHO
OU OS CASTRADOS DE APARÊNCIA VIGOROSA,
NÃO SÃO ROUBADOS À NATUREZA DADIVOSA
POR CORO HUMANO DE PROCLAMAR MESQUINHO?

POIS NÃO SE IMPORTAM, AFINAL, DE VER NO PRATO
O QUE RESTOU DAS AVES OU DO GADO
E ASSIM DEVORAM, PRAZEIROSOS, SEU CHURRASCO!
MAS ELEFANTES QUEREM JOGAR NO MATO
E TIGRES E LEÕES A UM TRISTE FADO,
NESSA INCONSCIÊNCIA QUE ATÉ ME CAUSA ASCO!

LEPIDÓPTEROS AZUIS I -- 19 mar 11
(para Márcia Tigani)

O para sempre às vezes é mais curto
do que pode durar um por enquanto:
é lavado facilmente pelo pranto
ou se revela nada mais que um surto...

O para sempre às vezes é um furto
das condições transitórias do conquanto:
logo se embuça sob o grosso manto
ou silva a se esguichar em farto espurto.

O para sempre às vezes é apressado,
bem mais estreito que a trilha do jamais
e se reduz a insinceras juras...

Mas esse para sempre é um bem dourado,
enovelado nas chamas dos torchais,
em que os nuncas se retorcem em loucuras...

LEPIDÓPTEROS AZUIS II – 07 AGO 14

Eu te percebo como dionisíaca,
teus versos escorrendo sem recato,
na doce mágoa do mais amargo fato,
em tal condensação plena e zodíaca.

Eu vejo o teu jorrar que vem da ilíaca
manifestação do sexo; do prato
em que pões o alimento do amor nato,
na embriaguez do verso quase etílica.

Quando o poema assume o teu controle
e tu nem sabes para aonde vai,
mas se retorce nos dedos qual serpente...

Ofídico esplendor, que a mente enrole
nessa poesia, que ardilosa sai
e tudo mais carrega pela frente.

LEPIDÓPTEROS AZUIS III

Eu te percebo como tsunâmica,
vital em majestosa inundação:
não são Apolo e as musas que aqui estão,
mas Anfitrite que demonstra sua dinâmica.

Eu te percebo em tal criação mânica,
os versos escorrendo de emoção,
sem a branda interferência da razão,
porém sob a influência dessa pânica

avalanche sutil, versos de lava,
de nuvem piroplástica irresistível,
versos de sol a descair no mar...

E te percebo como a musa brava,
que tange na minhalma, inexaurível,
essa suspeita de nunca te encontrar.

LEPIDÓPTEROS AZUIS IV

O para sempre tem sabor de por enquanto
nessas questões de amor, porque não dura:
só sobrevive qual lembrança pura,
quando for desarraigado pelo pranto...

Felizes para sempre, doce espanto,
conduz rapidamente até a fartura,
enquanto a convivência canelura
vai rasgando das colunas no recanto.

O que persiste certamente é a amizade,
forjada por carinho e compreensão,
ao longo desses anos em que estão

a esforçar-se por mentir amor,
mas que o demonstram, com tenacidade,
até quebrar o próprio coração.

LEPIDÓPTEROS AZUIS V

O para-sempre tem sabor de vinho,
que se bebe, lentamente, até esgotar.
O para-sempre sempre foi mesquinho,
seu fundo mostra e vê-se terminar.

O para-sempre só pode definhar,
como resseca, afinal, até o azevinho.
O para-sempre se torna um disputar,
manso e suave, pelo amor vizinho.

O para-sempre constrói o seu jazigo
com o mármore do sêmen coagulado.
O para-sempre jaz em seu abrigo,

no teu ventre, depois de fecundado.
Ah, para-sempre, do amor tão inimigo,
servindo à raça no teu ideal sagrado...

LEPIDÓPTEROS AZUIS VI

Eu te percebo para sempre vasta,
em teu vasto perfume arrasador.
Eu te percebo a destilar amor,
destilada a esperança e inteira gasta.

Eu te percebo em visão de desamor,
uma mistura de mágoa que a si empasta,
intensidade que depressa se desgasta,
pela falta de controle do calor.

Mas eu percebo em ti, nessa entropia,
puro rescaldo que leva à distropia,
em cada verso concentrado de saudade.

E vejo em ti a própria humanidade,
que em si concentra laivos de magia,
em seu furtar do Sol a claridade...

MARANDUVÁS I  (2008)

Eu acho tão estranha a estranha ânsia
que têm toda essa gente em publicar,
sem autocrítica, palavras a espalhar,
tanta coisa sem valor, só manigância...

Sua vida dá a impressão que dependia
de ser lembrada por sentenças cegas,
que acabarão espalhadas nas macegas,
servindo a um fim que não se pretendia...

Assim a vida humana... Quanto é vã
essa passagem transitória, essa folia:
dormir, beber, comer, depois lavar-se...

Apenas repetindo a folgazã
rotina inútil, que nos devora em ironia,
nessa lavagem dos dias a apagar-se...

MARANDUVÁS II –8 AGO 14

Também os dias que passam lavo eu;
não sou melhor...  Em idêntica folia
me encontro assim: é mansa minha histeria.
Diariamente caminho, qual judeu

errante, pela senda da poesia,
tantas vezes obscura como breu,
ao invés de buscar o lado teu,
em que feliz decerto mais seria...

Não é orgulho que me leva a isto:
são os deuses que ao sendeiro me conduzem
e um desses deuses se chama Desengano.

E é por isso que caminho e não desisto,
por essa praia coberta de salsugem,
a que converge todo o destino humano.

MARANDUVÁS III

Mas ainda não me importa publicar.
Se for preciso, isso acontecerá,
maugrado meu.  O verso ao deus-dará
tenho lançado, sem mais me preocupar.

Por aí se enraízam, devagar;
o pão lançado às águas volverá;
a semente em terra fértil crescerá
e só me afano a muito mais criar.

Sou árvore, afinal, pois lanço pólen
aos ares, às abelhas, pelo chão
(espero, ao menos, que sirva de alimento),

porque essas catadupas muito dolem
e, às vezes, sinto branco o coração,
todo esvaído em descontentamento.

MARANDUVÁS IV

Essas não são as larvas do comum,
que servem de festim a passarinhos.
Não eclodem mariposas desses ninhos,
formados por casulos, um a um...

Quem gostaria de um lugar nenhum,
como são intangíveis os arminhos
que me acolchoam a alma em seus carinhos,
senão seres formados de simum...?

São criaturas de areia as borboletas
que me devoram as faixas restringentes,
numa fúria que parece de neurose...

E quando saem dos novelos, lentas setas,
voltadas para os ares candescentes,
será em versos a sua metamorfose...

MARANDUVÁS V

Não os poemas que guardo em mil rascunhos:
serão mais leves, de outra natureza,
com as asas multicores, com certeza,
e não os versos calcados por meus punhos...

Quando se abrem os casulos, testemunhos
darão dos sentimentos de pureza,
darão dos julgamentos de nobreza,
que revelam de minha alma os brandos cunhos.

Terão asas de ouro os lepidópteros,
meus poemas proclamando pelo espaço,
de forma tal que eu nunca fui capaz...

Pois meus escritos são mais os coleópteros:
têm élitros sedosos os que faço,
mas não te seguem aonde quer que vás...

MARANDUVÁS VI

São poemas mais pesados, certamente,
que esses que na mente concebera
e que, ocasionalmente, já escrevera:
vagalumes silvando em luz candente.

Eles se prendem à terra redolente,
resultados imperfeitos de uma mera
busca de luz de qualquer vela de cera,
que queimará suas asas, inclemente.

Meus poemas são os ovos dessas traças
que só vêm para furar originais:
amam palavras, em refeições secretas...

Enquanto os verdadeiros têm as graças
que nunca eu alcancei, porque jamais
consegui dar à luz as borboletas!...       

BÁSCULA I – 21 MAR 11
ME PONHO EM TEU LUGAR
  DEIXAR-SE PENETRAR
POR UM OUTRO QUALQUER É TRÁGICO DESTINO
                 AMAR É POR AMOR                 
                  AMAR SÓ POR CALOR                  
NADA MAIS É QUE PURO DESATINO
AMOR AMA OUTRO AMOR
AMAR SEM TER AMOR
SÓ SATISFAZ DESEJO PEQUENINO
AMOR CURA OUTRO AMOR
MAS SEXO SEM AMOR
NÃO TE FAZ ESQUECER O SONHO PEREGRINO
DE VIVER A EMOÇÃO
DE TER NO CORAÇÃO
UMA PAIXÃO QUE FOI AVASSALADORA
MAIOR QUE TENHA SIDO
O PESAR DE TER SOFRIDO
ULTRAJE, HUMILHAÇÃO E DOR DEVASTADORA
UM CORPO NÃO SERÁ
UM CORPO NÃO DARÁ
CONSOLAÇÃO POR GOLPE TÃO TERRÍVEL
NÃO ADIANTA BUSCAR
NÃO ADIANTA ENTREGAR
TEU CORPO APENAS A UM MERO SUCEDÂNEO
TERÁ TERRÍVEL CUSTO
ALÉM DE SER INJUSTO
ENTREGAR-SE A UM ARDOR CONTEMPORÂNEO
AGORA TE ENCHERÁ
TUA DOR APAGARÁ
APENAS NOVO AMOR INEXAURÍVEL

BÁSCULA II – 9 AGO 14
MAS POSTO EM TEU LUGAR
ME DEIXO PENETRAR
NÃO POR UM CORPO, MAS POR INSPIRAÇÃO
POIS ISSO QUE ME DIZES
OU POR SABER QUE VIVES
TAMBÉM É DESATINO E INSTIGAÇÃO
EXISTE NA POESIA
ATÉ EM QUEM NÃO CRIA
O SONHO QUE SÓ VIVE NA ELEGIA
BEM MAIS QUE PURO AMOR
HÁ O AMOR DO DESAMOR
QUE NA HARPA DO SENTIR TE PREENCHIA
AMOR É MAIS QUE SEXO
ENCONTRO NESSE NEXO
DO CAMINHO DAS NUVENS UM AMPLEXO
AMOR É O ALGODÃO
PISADO PELO CHÃO
E A VIDA INTEIRA SE FAZ DELE REFLEXO
ENTÃO QUANDO UM TORPEDO
NOS CHEGA TARDE OU CEDO
TODA CALÇADA TRANSFORMA-SE EM CIMENTO
E LÁ NO CORAÇÃO
O VÁCUO DA EMOÇÃO
VIRA SOMENTE O GARGALHAR DO VENTO
PORÉM A INSPIRAÇÃO
COLHEMOS DESSE CHÃO
EM CADA PÉTALA DE SANGUE DERRAMADO
E FICA ENTÃO O VERSO
RESTO DE AMOR CONVERSO
EM CADA TEIA DE ARANHA ENCASULADO

BÁSCULA III
 PORÉM QUEM NÃO AMOU
NEM SE DESAPONTOU
TEM POUCO OLHAR PARA O QUE SEJA HUMANO
AMOR É PURA MOLA
A VERDADEIRA COLA
QUE TRANSFORMA A ILUSÃO EM DESENGANO
E QUE TIPO DE VIDA
SERIA CONCEBIDA
SEM A LIÇÃO QUE NOS DÁ QUALQUER ENGANO PALAVRAS QUE CONSOLAM
PORÉM QUE A FACA AMOLAM
PARA O CORTE A ACARICIAR NOSSA GARGANTA
ENTÃO A GENTE ESCREVE
O FALAR QUE NÃO SE ATREVE
PELO SUFOCO QUE O DESAMOR IMANTA
A LÁGRIMA VERTIDA
É INÚTIL CONCEBIDA
SÓ O PRANTO DO PRAZER QUE NOS ENCANTA
AMOR E NECESSÁRIO
AMOR É PERDULÁRIO
COMO O PÓLEN QUE ESPARZE CADA FLOR
NÃO PARA O BEM DA HASTE
NEM PARA SEU DESGASTE
NEM TAMPOUCO TRANSMISSÃO DE SEU ODOR
DESTINO BEM COMUM
A NÃO POUPAR NENHUM
QUE ALCANÇA A TODOS, SEMPRE ENGANADOR
E DESSE AMOR FALIDO
TRANSFORMA ALGUM GEMIDO
NESSA BÁSCULA CONSTANTE DE ESTRIDOR

ILHA DE ARENITO I – 9 AGO 14

Ilha vermelha contra o verde mar,
coroa de rochedos contra a brisa,
corais amarfanhados nessa incisa
aguardente salgada de luar;

areia lenta, o vento a desgastar,
dia após dia, enquanto a maré visa
as praias duras que o calcário giza
e o arenito lhe garante o perdurar;

arbusto apenas nos fundos dessa rocha;
só nidifica a eventual gaivota,
que tudo aduba com o peixe que a alimenta;

vermelha a ilha qual vermelha tocha;
ao sol poente a ilusão se esgota;
com ilha cinza o verso se contenta...

ILHA DE ARENITO II

Há muitas ilhas sobre o verde mar,
nessa imagem corriqueira das palmeiras,
com três ou quatro cocos a flutuar;
mercadores buscam copra em suas esteiras;

são esses cocos outras ilhas verdadeiras,
com algas sobre as cascas a gestar,
mil colônias de bactérias seresteiras,
mil Lemúrias sobre as ondas a flutuar,

as primas pobres da Atlântida famosa,
já em submersas muralhas encontradas,
enquanto aquela já o foi no Mar do Norte,

cada nação há milênios poderosa
e sob as águas do mar hoje abraçadas,
de uma nova glaciação pedindo a sorte.

ILHA DE ARENITO III

Ilha vermelha contra a verde terra,
porém contida em sua tensão superficial,
com pele clara ou escura em seu torçal,
a preencher cada vale e cada serra;

espirituosa bebida que se encerra
nas avenidas da cidade corporal,
seus habitantes de caráter bacterial,
longas batalhas em que a vida ali se enterra

até a conquista, imposta a lei marcial,
as artérias se entupindo, lentamente,
por milhares de acreções vivas ou mortas,

enquanto ainda flutua o ser carnal,
a crescer e a desgastar-se, certamente,
na proteção ideal de suas comportas...

ILHA DE ARENITO IV

Pequenas ilhas contra o azul do ar,
que escorrem ou que voam das feridas,
trazendo em si ainda bilhões de vidas
destiladas e sem um sopro conservar;

como é minúsculo o diâmetro do mar
assim formado pelas gotas desferidas,
abandonadas ao léu, em invertidas,
líquidas ilhas sob as botas a pisar,

em que destilam sonhos coagulados,
em licores de vírus coroados,
nos quais leucócitos lutam bravamente;

talvez em breve sejam todos devorados
ou pelo solo sedento então sugados:
ilhas vermelhas, como é ilha cada gente!...

CHAVE DE RELÓGIO I – 10 AGO 14

Tenho na sala um relógio muito antigo;
se bem recordo, já de outra vez o descrevi,
seu painel desbotado persegui
com meus dedos em qualquer acerto amigo;

depois as horas, quando a escutar contigo
passam depressa, nos tiques que entreouvi,
seguem os taques, caçadores em alali, (*)
acompanhá-los devagar eu não consigo;

mas uma vez por semana, dou-lhe corda,
girando a chave para minha direita
e para a esquerda, a fim de que horas fira;

e nesse instante, dos olhos pela borda,
vejo um contorno, em sensação perfeita
de que outra mão junto com a minha gira...

(*) Grito de incitação dos caçadores.

CHAVE DE RELÓGIO II

Por sobre esses romanos algarismos
deixaram rastros os dedos do passado,
o dedo alegre, o dedo atribulado,
dedo presente ou dedo em saudosismos,

o dedo do orador e o dos mutismos,
o dedo são e o dedo do entrevado,
por todos tal ponteiro manobrado,
para guardar o tempo em arcaísmos;

mas as cordas do relógio são gaiola
e ao invés de prender tempo firmemente,
a nós nos prendem do seu lado de fora

e a cada volta que foi dada à mola,
nossos instantes gastamos, realmente,
enferrujados nessa tensão de outrora!

CHAVE DE RELÓGIO III

Será que esse relógio é capelinha,
com dezenas de almas empilhadas,
não só aquelas mais apressuradas
que deram corda do tempo na bainha,

mas outras dúzias de reflexos continha
dessas gentes que passaram descuidadas
diante do vidro de rendas trabalhadas
enquanto uma partia e a outra vinha?

Será que ainda é possível convocar
qualquer fímbria de alma aprisionada
que se encontre por aí, meio a penar?

E nesse instante em que a chave vou girar
para gerar qualquer nova badalada,
chamam-me irmão e buscam-me abraçar?

KAIRUAN I – 11 AGO 14

ENQUANTO ESPERO EU OLHO MEU JARDIM;
SUA FOTOGRAFIA, MAIS EXATAMENTE,
TIRADA HÁ ALGUNS ANOS, QUANDO A GENTE
VIVIA HÁ POUCO POR ESTES CONFINS.

SAPHIRA ME CONTEMPLA, LÁ DOS FINS (*)
MEIO ESCONDIDA NA SOMBRA, CALMAMENTE,
O SOL AINDA ESTÁ FRACO E INDIFERENTE,
TALVEZ PENSANDO EM VAGOS OUTROSSINS.

É MEIO ESTRANHO O ÂNGULO DA FOTO,
QUE ME PARECE INVERTIDA SOBRE A TELA:
DECERTO FOI TIRADA DO TERRAÇO...

E ENQUANTO MINHA PACIÊNCIA ASSIM ESGOTO,
SEM QUERER ASSOMAR À MINHA JANELA,
FICO ESPERANDO PELO TEU ABRAÇO...

(*) Saphira Yoda gremlina de aye-aye,
Nossa gatinha persa (ou nós que somos dela).

KAIRUAN II

ELA CHEGOU, DISPOSTA PARA O AMOR,
COMO EU ESTAVA PARA O AMOR DISPOSTO,
UMA CARÍCIA, DOIS BEIJOS NO MEU ROSTO,
NESSE RITUAL SOCIAL SEM GRANDE ARDOR.

CONVERSAMOS UM POUCO E SEM TEMOR
PROVADO UM GOLE OU DOIS DE VINHO E MOSTO,
SÓ ENTÃO ELA SENTIU-SE MAIS A GOSTO
PARA BEIJAR-ME A BOCA COM CALOR...

ENTÃO A ACARICIEI QUAL NUNCA ANTES,
TODO O DESEJO REPRIMIDO FERVILHANDO,
MESMO TOMADO POR CERTO NERVOSISMO

E DE REPENTE, FOI TUDO COMO DANTES,
SEU CORPO INTEIRO EM BEIJOS ENTREGANDO
PARA O COMPLETO PRAZER DO MEU EGOÍSMO.

KAIRUAN Iii

E QUE DIZER, QUANDO SE BUSCA AMOR
E AMOR TAMBÉM SE BUSCA DEMONSTRAR,
TODA A TENSÃO DO CORPO A SE ESPALHAR
NOS BRAÇOS DA MULHER, EM SEU CALOR?

E QUE DIZER, NO INSTANTE SEM PUDOR
EM QUE A CARNE SOBRE A CARNE PENETRAR,
NA BUSCA DO PRAZER A SE INFLAMAR,
TRANSMOGRIFADOS NO INSTANTE DO SEXOR?

AH, BEM QUERIA QUE SÓ AMOR MOSTRASSE
E QUE AMOR INTEIRO EXPERIMENTASSE
E QUE ESSE AMOR TOTAL ENTÃO SENTISSE!

MAS AO INVÉS, SOBRE A CARNE ME LANCEI,
AMOR SEXUAL APENAS DEMONSTREI,
POR MAIS QUE AMOR REAL EU ENTREVISSE!

SERTÕES DA ETERNIDADE I – 12 AGO 14

Quando me encontro na terra de Morfeia,
sobre a qual o dominante é o Deus do Sono
percorro as terras enquanto aqui ressono,
belas planícies recobertas de epopeia.

Palmilho mais as plagas de Criseia,
tudo o ouro a recobrir sem desabono,
esses tesouros contemplo como dono,
em aplauso e palmas de vasta plateia.

Há muito tempo deixei Pesadeleia,
tão logo compreendi que o sonho é meu
e o posso conduzir para onde quero

e na Frígia desposei Pentesileia, (*)
que o peitoral para mim só desprendeu
e enquanto permaneço, o sonho é vero.

(*) Rainha das Amazonas, que combateu e foi morta durante
a Guerra de Tróia.

SERTÕES DA ETERNIDADE II

Não existe essa pessoa que não sonha,
embora muitas não o consigam recordar,
nem todo sonho se possa relembrar
nem se tenha um lugar em que se o ponha.

Mui simplesmente de lembrar se acanha:
coisas melífluas de seu perpassar,
por maldades ou combates a travar,
por largo tanque em que amor as banhe.

Mas dos meus quase sempre me recordo
e nessas plagas serei eu fantasma
ou fantasmas esses tais que me rodeiam?

Para minha mágoa, porém, quando me acordo,
o dia egoísta minha memória pasma
e as mil quimeras para longe se aligeiram...

SERTÕES DA ETERNIDADE III

Mas se eu pudera meu sonho engarrafar,
com a nitidez de vívida lembrança
e como um devedê filmado em dança
para os curiosos de dia ir apregoar!

Ai, quanta prata eu poderia ganhar!
Não seria paga em reais essa poupança,
nem tampouco nos cruzeiros de criança,
mas em moeda de imperial cunhar!...

Tenho consciência de sua grande variedade;
trago na mente boa filmadora,
mas realmente, não sei se sonhos gravam!

A vida inteira em regressão se invade
e o hipnotismo revela cada embora,
porém os sonhos aonde se buscavam?

SERTÕES DA ETERNIDADE IV

Serão eternos os sonhos ou desvanecem?
Fala-se hoje em digitar toda a memória
e em hologramas de perfeita glória
criar humanos que iguais a nós parecem,

até o momento em que as mentes coalescem,
para guardar em mínimo detalhe a história...
Mas quando chega a foice peremptória,
para onde vão os sonhos que falecem...?

Acho que os sonhos que criamos acordados
e até a modorra de cada devaneio
também se encontram nas redes neurais,

mas por que ser dever-se-iam recuperados?
Nasceram mortos no inicial meneio
e não chegaram a respirar jamais!

 SERTÕES DA ETERNIDADE V

Ora, esses sonhos que realizamos
há muito tempo abandonaram o Sonhar:
viraram planos que se fez autenticar
e então projetos que materiais tornamos,

enquanto sonhos foram só os enganos
que não tivemos força de encarar:
só os contemplamos pelo canto do ocular,
por seus momentos breves – e acordamos!

O que ocorreu com esses sonhos, afinal?...
Eram apenas fantasias corredias,
eram somente fragmentos de momentos,

afunilados fachos de fanal,
que se envidaram por variadas vias,
como a luz se desfaz em fótons lentos...

SERTÕES DA ETERNIDADE VI

Às vezes penso que trago no bornal
esses sonhos que encontrei em placidade,
a nascer nos sertões da eternidade;
iriam secar e assim roubar não causa mal.

Então os trouxe da Retórica, afinal,
da Metonímia ou Sinédoque, mantridade,
zeugmas e oximoros com ambiguidade,
formando contas em colares de coral.

E despojando os pés de sonhadeiras,
vou enchendo com eles minha mochila,
pisando firme em meu cruzeiro de alto bordo,

para depois alimentar minhas poemadeiras,
que me aguardam famintas, numa fila,
por sua ração de versos quando acordo...

AR ESPESSO DO VERÃO I – 13 AGO 14

Já pressinto em meus ossos a ameaça
da primavera neste inverno atípico.
calor e frio a dançar em parque tópico,
no intercalar que meu ideal desfaça.

Não é uma novidade a que me abraça;
o inverno é frio, mas o persegue o tríptico
de três outras estações, em ectópico
fervilhar, quando existia melhor graça.

Antigamente, era o domínio do calor
somente no verão e a prima vera
e o primo outono eram bem mais moderados,

enquanto o inverno me brindava com o frior,
que mais prazer para meu corpo gera
que esses fervores tão descompassados.

AR ESPESSO DO VERÃO II

Hoje em dia as estações se interpenetram,
talvez usando um protetor sexual;
não se contentam com o febrônio Carnaval,
porém outono a dentro se completam

esses dias de calor que me dejetam,
mais umidade por aqui inatural...
Não era assim o meu pago natal,
hoje os climas são promíscuos e intersectam.

Só imagino quais anos gerarão
nas décadas que agora se aproximam,
nesses anos que suponho me destinam

as Parcas três da antiga gestação,
talvez mesmo apressurando meu destino
por um vasto acalorar de desatino!

AR ESPESSO DO VERÃO III

Mas no interior, minhas redes neurais
são arejadas e sem abafamento;
até o presente sem espessamento
as paredes das vias arteriais.

Dentro de mim trago climas hibernais,
Conforme aprazem a meu próprio julgamento;
também transporto, com contentamento
minha prima vera e o primo outono naturais.

Graças aos deuses, em mim não há verões
em qualquer parte do continente interno:
para mim mesmo sou ameno e agradável

e a cada respirar de meus pulmões,
lanço falanges ao combate externo,
sem do inimigo tornar-me avassalável!

ADENOFOSFATO  I – 14 AGO 14

No mundo gris da vastidão grisácea
ondulo lentamente e sem sabor,
nessa corrente pedrenta e incolor,
que tento colorir, sem ter hemácia.

Meu sangue quente é da época cretácia
dos dinossauros ainda fui antecessor
e difundi-me pela Terra em furtacor,
no puro brilho da galáxia violácea.

Eu sou mamífero igual que os ancestrais;
deixei meus ossos em calcinada trilha;
fiquei mais leve e cheguei ao quotidiano,

a transmitir meus dotes seminais,
nessa estrondosa visão de maravilha
em que se gera cada ser humano...

ADENOFOSFATO II

Porém no abismo da galáxia sideral
outros seres ainda habitam à porfia;
uma outra raça decerto nos espia;
quiçá sejam amigos, afinal...

Talvez sopesem o nosso potencial;
talvez nossa conquista se avalia;
talvez nos encarem com selvageria;
talvez suponham sermos um rival;

ou quem sabe, só observam se progride
a sua colônia, quiçá seu experimento:
como saber de suas intenções...?

Ou se qualquer olhar em nós incide
e só evoluímos à espera do momento
de empreender nossas colonizações...

ADENOFOSFATO III

Não sou Narciso, que na água se espelhava
até virar em flor.   O rosto, eu juro
que da água me fitava em olhar puro
era semblante de mulher, tenho certeza!

As mãos movia em gestos de nobreza
e eu imóvel, transido no obscuro
adivinhar se, por acaso, havia um furo
na superfície que a água me mostrava...

Lançava os olhos sobre mim e não me via,
só as volutas da sereia que acenava
e sobre as águas meu reflexo lancei,

na busca louca pelas mãos que me estendia:
quando caí, senti que me abraçava
e nesses olhos verdes me afoguei...

ADENOFOSFATO IV

O que se faz em braços de sereia?
em baixo dágua, no lar dos afogados?
Minhas guelras eu abri, descompassados
os pulmões e o coração que ainda batia...

Ela levou-me à gruta em que vivia,
a mão nas minhas, os lábios separados,
os seus olhos de estrela iluminados,
enquanto, inerme, eu só a perseguia...

E a pouco e pouco, cresceram as membranas
entre meus dedos e a pele distendeu-se
nesses espaços ao longo de minha mão

e logo me vi, recoberto por escamas
reluzentes de luz e percebeu-se
que a sereia me tornara num tritão!...

ADENOFOSFATO V

Não que eu perdesse totalmente a compreensão;
meu cérebro era o mesmo, verde planta;
a formosura dessa uiara é que me encanta
e me abraça em sua aquática inclusão...

E então eu penso, nessa alucinação,
ao partilhar do fascínio que me imanta,
ao escutar as mil baladas que me canta,
que a possuirei, em plena exaltação...

Mas como amor se faz entre a sereia
e o tritão que escolheu para seu cio? 
Possui ela uma vagina ou uma cloaca?

E se me lança o encanto que incendeia,
o que fará depois que a ela me alio?
Será que, satisfeita, então me ataca?

ADENOFOSFATO  VI

Ou quem sabe, uma vez que é mulher-peixe,
só irá manifestar procedimento
igual ao de outros peixes, num alento
muito diverso do que a mulher nos deixe...

Beijou-me então, para que não me queixe,
e conduziu-me, em ágil movimento,
às cabeceiras do rio, veloz portento,
que em fonte límpida o nosso amor se enfeixe!

Quando pensei, enfim, que iria possuí-la
seu ducto se abriu, lançando ovas,
peroladas e brilhantes contra o fundo,

enquanto, na minha ânsia, a persegui-la,
ejaculei minha semente nessas covas,
qual faz um peixe, em jato bem profundo!...



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