A SEDE DOS MORTOS I – 8 NOV 21
(Baseado em original de 8 mai 11)
Queria escrever um autêntico suspiro,
capturado em noite sem estrelas,
que enviarei a ti. Mas não são belas
essas palavras com que as almas te confiro.
Há muito mais tristezas que hoje miro
ao meu redor, até sem querer vê-las,
do que alegrias. Queimadas pelas velas,
são quais falenas, que em mau odor respiro...
Nessas calçadas antigas, quantas dores!...
Passam os carros, tantas ambulâncias
e esses imensos cortejos funerários...
Dentro da mente vejo os féretros e andores,
os passos arrastados, nas instâncias
desses suspiros de autênticos fadários...
A SEDE DOS MORTOS II
Há suspiros voadores, certamente.
Eles se criam dentro do pulmão,
são expelidos em cada exalação,
pairam nos ares blandiciosamente.
Há suspiros assim, que umidamente,
se misturam ao sereno e à cerração.
São suspiros de mágoas em botão
e tua visão contra eles é impotente.
Eles arquejam assim, avidamente,
suspiros de saudade e de malícia,
arrastando de lágrimas correntes...
E penetram em tua vista, de repente,
esses argueiros de perfeita impudicícia,
ansiosos pelas lástimas das gentes...
A SEDE DOS MORTOS III
Há suspiros, contudo, que rastejam,
carregados de culpa e de pecados,
por outros mais ferozes pisoteados,
esmagados nas calçadas em que estejam.
São bem concretos, por mais que não se vejam:
tropeças neles os passos descuidados...
São suspiros de rancores sopesados,
por cuja inveja o teu andar aleijam...
São suspiros de raiva, de vaidade,
suspiros feitos de orgulho e de vingança,
róseos suspiros de licenciosidade;
suspiros sem ternura ou esperança,
suspiros carregados de maldade,
mil testemunhos que só a mentira alcança...
A SEDE DOS MORTOS IV
Outros suspiros rastejam de cansaço,
porque tentaram agir corretamente,
contemporizaram demais, nessa paciente
expectativa de um derradeiro abraço...
São suspiros extenuados sob o laço
de um trabalho excessivo... Indiferente
o resultado da luta diligente,
sem ter sucesso e sem sofrer fracasso.
Esses pobres suspiros ainda buscam
andar contra as paredes, pois não querem
fazer mal a ninguém, mas são chutados,
escorraçados pelos outros, que os ofuscam,
tristes suspiros nas fendas em que inserem
sua timidez de anjos desgarrados...
A SEDE DOS MORTOS V – 9 nov 21
Alguns suspiros se penduram nas janelas
ou se encontram em gaiolas exibidos.
São suspiros de amor após cumpridos
longos atos sensuais sob as estrelas.
São os suspiros de mulheres belas,
na delícia dos orgasmos conferidos.
São suspiros dos prazeres obtidos,
exalados desde o fundo das costelas.
Não são de sexo somente, sem pudor,
mas a cena final de um grande amor,
não beijos bípedes de apenas dois pulmões,
beijos quadrúpedes em suspiros de carinho,
que se escapam lentamente, de mansinho,
sempre exalados por dois corações...
A SEDE DOS MORTOS VI
Ainda suspiros exalados na agonia
dos momentos finais da curta vida,
de toda inspiração desguarnecida,
suspiros plenos de toda a desvalia...
Há quem suspeite que a morte recolhia
estes últimos suspiros, desabrida,
faminta mesmo da carne desnutrida
e desse élan
vital que concluía...
Porém não é assim.
Ela decepa,
com sua foice afiada no esmeril,
os terminais suspiros, talha a aliança
e leva a alma consigo, até incompleta,
deixando os sonhos, em derradeiro ardil,
nos braços murchos da gélida esperança.
A SEDE DOS MORTOS VII
E há ainda os suspiros dos que ficam,
enquanto partem seus entes mais queridos,
suspiros em carinhos dissolvidos
nos corações desfibrilados que se picam.
Suspiros esses dos que a mortalha esticam,
como fraldas sobre os corpos desvalidos
de qualquer vida de seus suspiros tidos,
que pelas frestas do chão então se imbricam.
Há os suspiros de alívio por dor finda
e os suspiros por ambição da herança:
há suspiros até mesmo prazerosos,
por haver sobrevivido e a vida linda
poder gozar com um pouco de esperança
de longos anos de suspiros preguiçosos...
A SEDE DOS MORTOS VIII
Mas sempre há medo de que morto perceba,
surgem suspiros de temor nos funerais,
nesses velórios só a mostrar para os demais
até que ponto de amargura a alma beba.
Algumas vezes são até os que mais choram,
seu vasto alívio procurando disfarçar,
para que o espectro não os venha acompanhar,
em pesadelos que as almas lhes devoram...
Antigamente quatro velas acendiam,
colocando o cadáver num caixão,
na própria mesa em que faziam refeição,
olhos abertos, mas que nada viam,
sempre inspirados a cumprir esse ritual,
até a tampa ser pregada no final...
A SEDE DOS MORTOS IX – 10 nov 21
Nos dias atuais se tornaram os funerais
bem mais higiênicos. Acabaram-se os cortejos,
não se obrigam as crianças a dar beijos
nos rostos mortos dentro de hospitais.
E se acabaram igualmente os festivais,
em que da dor se fingiam os arpejos;
as casas se fecharam a indesejos,
levam os mortos a capelas sepulcrais.
Devidamente vão vestidos e embalados
em ambulâncias, desde uma UTI,
dos cemitérios às capelas apropriadas,
enquanto esperam por ser engavetados
e esses longos velórios que assisti,
das residências hoje foram afastados...
A SEDE DOS MORTOS X
Melhor ainda, claro, é a cremação
que se torna, dia a dia, mais comum,
desde modo proibindo sempre a algum
a liberdade de fornecer alimentação
às baratas e aos ratos, na velha comunhão
herética e profana, a que nenhum
lugar da Bíblia obriga, embora algum
refira os vermes de que seremos refeição.
Mas certamente não nessas gavetas,
ou mesmo os sob a terra sepultados,
dificilmente as moscas poderiam
depor seus ovos em tais mansões secretas,
por bactérias sendo agora desmanchados:
não mais as plantas de nós se nutririam...
A SEDE DOS MORTOS XI
Tal coisa faz aos insepultos referência,
aos milhares que perecem em batalhas,
abandonados na base das muralhas,
em que exalam tal nauseabunda essência.
Fica à visão de todos a putrescência,
porém é a vida que da carne espalhas,
os corpos mortos nas rigorosas malhas
da ecologia, em natural consciência.
Durante epidemias, às centenas
formaram-se cadáveres, de fato,
mas hoje em dia isso é mais uma exceção,
porque pasto dos vermes são apenas
os que tiveram o destino ingrato
de não possuir de uma cova a proteção.
A SEDE DOS MORTOS XII
E assim eu guardo os suspiros de vileza,
os suspiros de saudade e de perdão,
suspiros feitos de alívio e aceitação,
suspiros junto à fartura de uma mesa.
Os suspiros do terror e da incerteza,
os suspiros do carinho e da emoção,
escondidos pelos cantos, em desvão
ou de exaltados monumentos de beleza.
Colho os suspiros que voam pelos ares,
esses suspiros que se escondem pelos cantos,
a todos prendo com mil redes de filó
e com suspiros componho meus cantares:
se um dia a lástima quer inundar-me em prantos,
quando eu suspiro, já não suspiro só!...
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