quarta-feira, 10 de novembro de 2021


( Cemítério Etrusco de Cerveteri - Toscana, Itália, apx. 2500 anos)

 

A SEDE DOS MORTOS I – 8 NOV 21

(Baseado em original de 8 mai 11)

 

Queria escrever um autêntico suspiro,

capturado em noite sem estrelas,

que enviarei a ti.  Mas não são belas

essas palavras com que as almas te confiro.

 

Há muito mais tristezas que hoje miro

ao meu redor, até sem querer vê-las,

do que alegrias.  Queimadas pelas velas,

são quais falenas, que em mau odor respiro...

 

Nessas calçadas antigas, quantas dores!...

Passam os carros, tantas ambulâncias

e esses imensos cortejos funerários...

 

Dentro da mente vejo os féretros e andores,

os passos arrastados, nas instâncias

desses suspiros de autênticos fadários...

 

A SEDE DOS MORTOS II

 

Há suspiros voadores, certamente.

Eles se criam dentro do pulmão,

são expelidos em cada exalação,

pairam nos ares blandiciosamente.

 

Há suspiros assim, que umidamente,

se misturam ao sereno e à cerração.

São suspiros de mágoas em botão

e tua visão contra eles é impotente.

 

Eles arquejam assim, avidamente,

suspiros de saudade e de malícia,

arrastando de lágrimas correntes...

 

E penetram em tua vista, de repente,

esses argueiros de perfeita impudicícia,

ansiosos pelas lástimas das gentes...

 

A SEDE DOS MORTOS III

 

Há suspiros, contudo, que rastejam,

carregados de culpa e de pecados,

por outros mais ferozes pisoteados,

esmagados nas calçadas em que estejam.

 

São bem concretos, por mais que não se vejam:

tropeças neles os passos descuidados...

São suspiros de rancores sopesados,

por cuja inveja o teu andar aleijam...

 

São suspiros de raiva, de vaidade,

suspiros feitos de orgulho e de vingança,

róseos suspiros de licenciosidade;

 

suspiros sem ternura ou esperança,

suspiros carregados de maldade,

mil testemunhos que só a mentira alcança...

 

A SEDE DOS MORTOS IV

 

Outros suspiros rastejam de cansaço,

porque tentaram agir corretamente,

contemporizaram demais, nessa paciente

expectativa de um derradeiro abraço...

 

São suspiros extenuados sob o laço

de um trabalho excessivo... Indiferente

o resultado da luta diligente,

sem ter sucesso e sem sofrer fracasso.

 

Esses pobres suspiros ainda buscam

andar contra as paredes, pois não querem

fazer mal a ninguém, mas são chutados,

 

escorraçados pelos outros, que os ofuscam,

tristes suspiros nas fendas em que inserem

sua timidez de anjos desgarrados...

 

A SEDE DOS MORTOS V – 9 nov 21

 

Alguns suspiros se penduram nas janelas

ou se encontram em gaiolas exibidos.

São suspiros de amor após cumpridos

longos atos sensuais sob as estrelas.

 

São os suspiros de mulheres belas,

na delícia dos orgasmos conferidos.

São suspiros dos prazeres obtidos,

exalados desde o fundo das costelas.

 

Não são de sexo somente, sem pudor,

mas a cena final de um grande amor,

não beijos bípedes de apenas dois pulmões,

 

beijos quadrúpedes em suspiros de carinho,

que se escapam lentamente, de mansinho,

sempre exalados por dois corações...

 

A SEDE DOS MORTOS VI

 

Ainda suspiros exalados na agonia

dos momentos finais da curta vida,

de toda inspiração desguarnecida,

suspiros plenos de toda a desvalia...

 

Há quem suspeite que a morte recolhia

estes últimos suspiros, desabrida,

faminta mesmo da carne desnutrida

e desse élan vital que concluía...

 

Porém não é assim.  Ela decepa,

com sua foice afiada no esmeril,

os terminais suspiros, talha a aliança

 

e leva a alma consigo, até incompleta,

deixando os sonhos, em derradeiro ardil,

nos braços murchos da gélida esperança.

 

A SEDE DOS MORTOS VII

 

E há ainda os suspiros dos que ficam,

enquanto partem seus entes mais queridos,

suspiros em carinhos dissolvidos

nos corações desfibrilados que se picam.

 

Suspiros esses dos que a mortalha esticam,

como fraldas sobre os corpos desvalidos

de qualquer vida de seus suspiros tidos,

que pelas frestas do chão então se imbricam.

 

Há os suspiros de alívio por dor finda

e os suspiros por ambição da herança:

há suspiros até mesmo prazerosos,

 

por haver sobrevivido e a vida linda

poder gozar com um pouco de esperança

de longos anos de suspiros preguiçosos...

 

A SEDE DOS MORTOS VIII

 

Mas sempre há medo de que morto perceba,

surgem suspiros de temor nos funerais,

nesses velórios só a mostrar para os demais

até que ponto de amargura a alma beba.

 

Algumas vezes são até os que mais choram,

seu vasto alívio procurando disfarçar,

para que o espectro não os venha acompanhar,

em pesadelos que as almas lhes devoram...

 

Antigamente quatro velas acendiam,

colocando o cadáver num caixão,

na própria mesa em que faziam refeição,

 

olhos abertos, mas que nada viam,

sempre inspirados a cumprir esse ritual,

até a tampa ser pregada no final...

 

A SEDE DOS MORTOS IX – 10 nov 21

 

Nos dias atuais se tornaram os funerais

bem mais higiênicos.  Acabaram-se os cortejos,

não se obrigam as crianças a dar beijos

nos rostos mortos dentro de hospitais.

 

E se acabaram igualmente os festivais,

em que da dor se fingiam os arpejos;

as casas se fecharam a indesejos,

levam os mortos a capelas sepulcrais.

 

Devidamente vão vestidos e embalados

em ambulâncias, desde uma UTI,

dos cemitérios às capelas apropriadas,

 

enquanto esperam por ser engavetados

e esses longos velórios que assisti,

das residências hoje foram afastados...

 

A SEDE DOS MORTOS X

 

Melhor ainda, claro, é a cremação

que se torna, dia a dia, mais comum,

desde modo proibindo sempre a algum

a liberdade de fornecer alimentação

 

às baratas e aos ratos, na velha comunhão

herética e profana, a que nenhum

lugar da Bíblia obriga, embora algum

refira os vermes de que seremos refeição.

 

Mas certamente não nessas gavetas,

ou mesmo os sob a terra sepultados,

dificilmente as moscas poderiam

 

depor seus ovos em tais mansões secretas,

por bactérias sendo agora desmanchados:

não mais as plantas de nós se nutririam...

 

A SEDE DOS MORTOS XI

 

Tal coisa faz aos insepultos referência,

aos milhares que perecem em batalhas,

abandonados na base das muralhas,

em que exalam tal nauseabunda essência.

 

Fica à visão de todos a putrescência,

porém é a vida que da carne espalhas,

os corpos mortos nas rigorosas malhas

da ecologia, em natural consciência.

 

Durante epidemias, às centenas

formaram-se cadáveres, de fato,

mas hoje em dia isso é mais uma exceção,

 

porque pasto dos vermes são apenas

os que tiveram o destino ingrato

de não possuir de uma cova a proteção.

 

A SEDE DOS MORTOS XII

 

E assim eu guardo os suspiros de vileza,

os suspiros de saudade e de perdão,

suspiros feitos de alívio e aceitação,

suspiros junto à fartura de uma mesa.

 

Os suspiros do terror e da incerteza,

os suspiros do carinho e da emoção,

escondidos pelos cantos, em desvão

ou de exaltados monumentos de beleza.

 

Colho os suspiros que voam pelos ares,

esses suspiros que se escondem pelos cantos,

a todos prendo com mil redes de filó

 

e com suspiros componho meus cantares:

se um dia a lástima quer inundar-me em prantos,

quando eu suspiro, já não suspiro só!...

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