A
QUE FICOU I – 31 MAR 22
MYRNA LOY
Tua
imagem deixaste no espelhinho
quando
foste refazer a maquiagem,
antes
de ires para qualquer outra paragem:
perante
o espelho deixaste-me sozinho.
O
que é estranho é esse véu de linho
que
parece recobrir meiga miragem,
meu
próprio rosto refratado em aniagem,
que
permaneces no prato do cadinho.
Por
que te foste, não sei bem a razão,
fosse
por mim te impediria de partir,
mas
era a hora de um beijo sossegar;
ficou
no espelho só o verme da paixão
e
o teu perfume posso inda sentir
nesse
reflexo a tremer sem se apagar.
A
QUE FICOU II
Foi
tão casual o refazer da maquiagem,
não
para mim, para qualquer estranho,
que
te encontrasse sem sofrer acanho,
quando
partias em tal veloz voragem.
Certamente
só teu abraço de passagem,
não
te arriscarias a outro amanho;
para
beijar de novo ainda me assanho,
mas
só tua face roço nessa aragem.
E
para maior mal, fica o perfume,
junto
ao rosto, no espelho refletido,
só
não conserva a carne de teus traços.
Então
te foste, transportando o lume,
ficou
o vazio em meu olhar sofrido,
ainda
no peito o calor de teus abraços.
A
QUE FICOU III
Já
não sei aonde estás, longa partida,
que
nem ao menos saberei em que cidade,
já
te afastaste por pequena eternidade
e
só de ti uma ilusão trago na vida.
Mas
o espelho aqui está e traz contida
a
tua imagem, fosca de luminosidade;
aos
outros mais só a mostrar opacidade:
algum
diria que o espelho está vencido.
Pois
não reflete mais os olhos de ninguém,
somente
os meus conseguem atravessar
esse
teu rosto gravado tão de perto;
face
e perfume, que riquza que contém!
Mas
não me animo mais a contemplar
e
já há anos o conservo recoberto.
A
QUE CHEGOU I – 1º abr 22
Por
que, diz-me, vieste ver-me agora,
depois
de ausência assim tão prolongada,
até
mesmo das lembranças afastada,
por
que chegaste a morder-me nesta hora?
Por
que surgiste das brumas de um outrora,
após
mil anos sob a Lua airada,
sem
sequer nela te fazeres espelhada,
como
um lêiser a queimar-me sem demora?
Por
que teu rosto agora se reflete,
e
em minhas pupilas como arcano espelha,
por
que a meiguice em teu próprio olhar?
Por
que esse dardo que meu corpo assete,
quando
a memória, já caduca e velha,
no
eremitério da mente eu fui deixar?
A
QUE CHEGOU II
Não
é dizer que te achasse pelas ruas,
num
encontro para o acaso tão casual,
que
só te conhecesse bem ou mal,
na
multidão indiferente como gruas.
Não
é dizer que te achasse nessas luas
de
inverno claro como esquivo memorial,
uma
súbita visão, meio um conto de Natal,
os
teus cabelos desafiantes como puas.
Caso
assim fosse, poderia até fingir
que
não te houvesse sequer reconhecido:
tantos
anos, afinal, haviam passado...
Ou
então teria a opção de me iludir,
que
tua visão não houvesse me assaltado,
dar-te
um abraço e afastar-me, malferido.
A
QUE CHEGOU III
Porém
não foi assim. Bateste à porta,
teu
rosto claramente avelhantado
e
contudo, todo inteiro relembrado,
tal
e qual a sepultura solta a morta.
E
a tua visão minhalma inteira corta,
como
um alfanje surgido do passado,
mal
pude te falar, ensimesmado,
nessa
minha solidão que então se aborta.
Porque
vieste ver-me, já nem sei,
mas
que fazer, senão abrir cadeado
e
humildemente receber-te de meu lado...
O
que será doravante não direi,
não
sei se emendarás meu coração
ou
tão somente um remendo de ilusão.
A
QUE CONSERVO I – 2 ABR 22
São
tão falazes as imagens que concebo!
Já
era tempo de as deixar de lado;
só
o romantismo é que me tem cercado,
são
apenas seus conceitos que hoje bebo.
Afinal,
de tantas páginas me apercebo,
esses
eventos sem ter testemunhado,
fico
somente em estupor embaraçado,
queimando
a mente qual vela de sebo.
Mas
eu olho ao redor e vejo tanto
que
me desperte amor e desencanto,
essas
migalhas a desafiar o meu ardor
e
em cada lasca de vida encontro pranto,
que
me inspira ainda hoje o verso santo,
como
a pureza enganadora de uma flor.
A
QUE CONSERVO II
São
para mim essas coisas pequeninas
que
crescem de repente no meu peito,
qualquer
farpa a me cobrar o seu direito
de
lixar os instrumentos de minha sinas;
outros
verão essas gotas quais meninas,
a
brincar nas pupilas sem mais preito
ou
olharão os canteiros no seu leito,
sem
atentar no alaranjado das boninas.
Mas
eu não sou assim, o mundo em volta
continuamente
afeta minha quimera
e
de minhalma requer satisfação,
inspiração
que nem sequer me solta,
até
o momento de sua hora mais severa,
quando
os suores por meu sangue trocarão.
A
QUE CONSERVO III
Ainda
hoje me regozija essa tortura,
que
me impele a levantar de madrugada,
que
me interrompe qualquer tarefa alçada
e
a luz consome nesta afeição escura.
E
se o ímpeto constantemente me perdura,
até
que a estrofe se exiba recortada
de
um trecho de minha carne e assim colada
em
folhas de cartão, de forma impura.
Porque
apesar de quanto tenha feito,
quase
nunca me envolve a perfeição
que
alimenta o meu desassossego,
sempre
a linfa perlada de meu peito,
escravo
pleno desta dominação
que
para a vida verdadeira me fez cego.
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