sexta-feira, 1 de abril de 2022


 

 

ABELHAS E ARANHAS I  (29/10/2009)

(Revisado a 25/3/2022)

(Na ilustração, Yvonne de Carlo)

 

Eu hoje almocei tarde e fiquei lavando versos,

com detergente e esponja, na pia da cozinha:

a cada dois minutos, me esforçar eu tinha

para secar das mãos os argumentos mais dispersos;

 

pus cartões no escorredor, rascunhos semi-imersos,

a pingar as ideias com que a mente se engalfinha:

ensaboados os dedos, nessa missão mesquinha,

fui empilhar mil linhas nos cantos submersos...

 

por isso, é justo agora que abra minha torneira,

para limpar palavras no fio de água da pia,

deixar que ideias tolas se escoam pelo ralo...

 

melhor borrar a tinta do que imagem rotineira

incluir nesses cantos que a mente me trazia,

enquanto passo a toalha e em meu cismar resvalo.

 

ABELHAS E ARANHAS II

 

Só Deus é compassivo.  Nossas almas

são sementes de um velho girassol

que já viveu seu ciclo e, no arrebol,

não mais ergue a coroa, cujas palmas

 

eram mil pétalas de ouro, nessas calmas

da segurança social, seguindo o sol,

que a velha vida esmagou em seu crisol

e agora espalha quais sementes dalmas;

 

 

curva-se a ele a grã congregação:

milhões de girassóis, todos unidos,

em fidelíssima e total veneração!...

 

mas desfazem as suas flores, ressequidos

e espalham-se as sementes, renascidas

em outros girassóis de curtas vidas...

  

ABELHAS E ARANHAS III

 

Meu verso é seco e cheira a pergaminho;

num burel de estamenha me recolho;

tomo um lírio nas mãos, pétalas colho,

que assopro qual fumaça, de mansinho...

 

meu verso se umedece de carinho,

ao pensar nela; e vejo que me antolho,

numa ilusão concreta; as mãos com óleo

revisto, numa bênção de azevinho...

 

versos estranhos refulgem para mim,

que tento de escrever e não compreendo,

nem sequer eu, o seu significado;

 

somente escorrem pelo braço... assim:

para o sonhar dos outros eu me vendo,

no verde aroma de um verso avermelhado.

 

ABELHAS E ARANHAS IV

 

Talvez desista de pôr título em poemas,

sempre se encaixa bem no som alado

de folhas de eucalipto...  ao pronunciado,

o nome se atravanca em mil dilemas;

 

melhor fora que tais títulos, apenas,

fossem primeiras linhas, retomado

o atribuído a Camões, num atrasado

esforço de pôr nome em açucenas;

 

se o vate antigo não quis, por que legendas,

que capturam o sentido assim tão mal?

tal cancioneiro soa bem mais natural,

 

envolto em brumas de rompidas lendas,

que a cada um que o lê, o verso enseja

um melhor título, que só sua boca beija.

 

ABELHAS E ARANHAS V

(Completado a 26/3/2022)

 

Quando tomo o empoeirado original

de cima de minha mesa e os flocos sopro

de farrapos de estrela; ou, com escopro,

a caliça removo de cada madrigal

 

desse antigo desengano ali contido,

uma sombra esvoaça e a mente envolve,

em farripas de sonho, qual ilusão que volve

de um texto milenar mal traduzido...

 

são limalhas de cérebro e sangue conservados,

são lixo de luar nessa pilha introduzido,

lascas de giz perdidas na ponta de minhas unhas,

 

consumida a cutícula, os vasos esvaziados

de um ideal ressecado e a cacos reduzido,

como as juras de amor que um dia me propunhas. 

 

ABELHAS E ARANHAS VI

 

É hora de parar: tu somente deves ser

a sombra morta do meu padecer,

causa incausada de todo o meu viver,

o padrão uniforme de meu sonho,

 

pois nestas linhas, este amor que exponho

não é o amor colérico e medonho,

nem um ciúme polêmico e bisonho,

somente a espuma de meu padecer

 

por querer tal amor, mas não poder;

poder amor que não se quer querer,

pouco mais que uma fímbria de meu sonho,

 

que nunca foi feliz, nem foi risonho,

mas ao qual último brinde ainda proponho,

antes que morra em novo alvorecer!...

 

ABELHAS E ARANHAS VII

 

Contudo, ainda não paro e continuo,

porque essa força que me move é estranha,

sua picada me tange e me emaranha

contra a teia de palpos em som duro;

 

os alicerces da memória aluo

por essas frases de que não me acanho,

sou lavado de versos como um banho

e os meus pés para o caminho amuo,

 

sem arruaça, na azáfama inclemente,

em cada picadeiro, novas feras,

mas não ponho em meus circos animais,

 

somente a tela de meu suor jacente

e encontro cem aranhas em esperas

e mil abelhas que me picam ainda mais.

 

ABELHAS E ARANHAS VIII

 

Esse amor de caliça que mostrei,

pulverizado nos ossos que perdi,

encaixotado na carne que sofri,

emparedado nos beijos que já dei,

 

iluminado pelo pranto que chorei,

ou nem pranteei, ao ouvir o bemtevi,

que mais que eu tem seu sofrer aqui,

quando seu ninho lhe roubou a lei,

 

esse amor de reboco argamassado,

breve leito de sepulcros florescidos,

sobre os tijolos a cantar seus desenganos,

 

um ramalhete sem cuidado ali deixado,

que então floresce, passados dias perdidos,

amortalhado nos mais delgados panos.

 

ABELHAS E ARANHAS IX

(Completado a 27/3/2022)

 

Esse amor engazopado de toleimas,

de flores secas sabor de chocolate,

consumido da memória que se abate,

alimentado por viçosas teimas,

 

esse amor com que a alma tu me queimas,

recolhido como cinza de açafate,

amor vertido no sangue do combate,

amor cantado em “típicas” portenhas,

 

esse amor, esvaziado sem perdão,

sem que o jarro fosse antes preenchido,

esse amor em ventoinha de sirocco,

 

em mil gestos desgastado sem paixão,

nas mil lástimas do dano já sofrido,

que se debate solitário em peito oco.

 

ABELHAS E ARANHAS X

 

Amor que na verdade não morreu,

pois não pode morrer sem ter nascido,

amor pequeno em mais pequeno olvido,

amor sem penas, porque nunca padeceu,

 

pois só o amor que se teve e se perdeu

e que demora no coração sofrido,

é mais que amor apenas desvalido,

na sanha unilateral em que cresceu;

 

contudo, amei o meu amor de aranha,

pois fui eu mesmo que me prendi na teia,

esperando e disposto a ser sugado,

 

eu mesmo fui buscar ferrão que lanha,

nessa colmeia que minha língua lanceteia,

na busca inútil de ser por ele envenenado.

 

ABELHAS E ARANHAS XI

 

De alguma forma, o legado justifico,

por mais vazio que fosse no começo,

esse amor que foi total em seu apreço,

justo porque jamais galgou seu pico;

 

foi amor de planície, pouco rico,

sem se atrever a grimpar até o cabeço,

preso nas faldas, porém que nao esqueço,

dos mil traumas em que tal amor explico;

 

foi mais que tudo amor de uma escritura,

letras lançadas ao sabor do vento,

na casual composição de algum momento,

 

na sugestão suplicante de leitura,

que outro amor gerasse num portento,

também capaz de retribuir igual loucura.

 

ABELHAS E ARANHAS XII

 

E ainda eu busco as asas das abelhas,

para levar-me aos píncaros da glória;

busco o ferrão da ardência transitória,

para exaltar-me na caça de centelhas

 

e busco aranhas de ásperas guedelhas,

para envolver-me em saliva peremptória,

para o trapézio de marcação oscilatória,

para as feridas a supurar vermelhas;

 

nesse equilíbrio, amor foi detergente,

foi espuma de esponja inconsequente,

palavras rubras como um rubro céu,

 

que escorreram de mim todo o veneno,

e me sorriram, num derradeiro aceno,

quais girassóis no fio dourado de seu véu.

 

 

 

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