segunda-feira, 11 de abril de 2022


 

 

palavras sem sentido 1 --  6 abr 22

(Ilustrados pela soprano Elly Ameling)

 

as palavras são areias do deserto,

por mais que busquem, não sabem expressar

a verdadeira causa do sonhar,

essa distância que se encontra perto,

mas para ti eu chegarei de peito aberto,

meu coração sabe melhor falar

o que as palavras não conseguem revelar,

em cada artéria acha destino certo.

 

porque palavras de sangue mais expressam

que palavras de saliva balbuciadas

e nos teus tímpanos penso enfim retinam,

bem mais que o canto vago e sem sentido

dessas frases com controle desenhadas

que se destinam tão somente ao teu ouvido.

 

palavras sem sentido 2

 

contudo, além das dores da saudade,

as palavras mergulham num penar;

são silabadas, não sabem abraçar

nem a tristeza e nem qualquer piedade.

todas as dores objetos da vaidade,

somente minhas, sem se compartilhar,

por mais que digas partilhá-las e empatiar,

somente as tuas conheces de verdade.

 

porque dores são pequenas criaturas

que se rebolcam nas articulações

ou que se banham bem fundo aos corações;

bem mais que teus gemidos sem sentido,

são as palavras para as dores mais impuras,

egoistamente encrustadas só no olvido.

 

palavras sem sentido 3

 

mais além dos segredos bem guardados

pelo receio de se comunicar

estão as plaquetas e hemácias a domar

as pulsações dos corações atribulados;

sem te ver, vivo meus dias apressados:

cada hora toma outra e vai dançar

nesse balé sem fim do perpassar,

não há dores nesses verbos relembrados.

 

mas teus segredos são raios de sol

por uma rede de borboletas captados

e que se guardam muito além da viração,

mil mariposas a bailar nesse farol,

mil fogos-fátuos nos peitos assombrados,

ovos chocando de dragões nos corações.

 

refrões sem sentido 1 — 7 abr 22

 

o que tenho procurado o tempo inteiro

é cruzar versos nunca dantes navegados,

ao pilotar por poemas encantados

nos intervalos entre o vento sobranceiro;

quero rotear uma estrofe por primeiro,

um quarteto incandescente de abordado,

um terceto até hoje ainda ancorado,

alguma rima que em bateias eu peneiro.

 

porque embora aqui me prenda a algum modelo,

acerto o passo por minha própria escolha,

já que sonetos quase ninguém mais os emprega

e se a esgrima do verso já tem selo,

o meu vocabulário explode em bolha

que o olhar alheio por momentos cega.

 

refrões sem sentido 2

 

para mim cada soneto é um bem-querer,

a namorada permanente de meu beijo,

cada verso a madrépora em que adejo,

raios de lua que somente eu posso ver;

meus versos são estrelas sem sofrer,

reluzem e retinam quando as vejo;

por minha desgraça em parte eu os aleijo,

não sou capaz de o pleno brilho descrever.

 

porém persisto enquanto flui o rio

dessa cascata de luz que vem do espaço,

mas em calhaus se esbate e perde o traço

e tão somente o redemoinho ainda eu crio,

ou as estrelas de fato é que me esquecem

no cintilar com que em minhas vistas descem.

 

refrões sem sentido 3

 

por entre as sombras refulge a escuridão

e não se diga que não brilha o escuro,

mais versos brotam quando o fado é duro,

só está na ausência da luz essa paixão,

mas de onde brotará a luz, senão

de alguma treva acumulada em puro,

buraco negro ou de pulsar obscuro:

só existe treva dentro do coração.

 

mas dele sai a luz em tal composição,

quando os versos se revestem de alvorada

e nos crepúsculos, com libélulas se abraçam

e o bem-querer desse meu canto é só ilusão,

fruto da ausência irreal da bem-amada

e tão somente com suas rimas se congraçam

 

intervenções sem sentido 1 – 8 abr 2022

 

o hospital se ergue sobre a terra,

vários metros acima da calçada;

foi construído sobre uma baixada,

vegetação e árvores ainda encerra;

no hospital muita moléstia se desterra

longe do corpo, toda a carne ali operada

ou ao contrário, uma vida é completada

se o bisturi sobre algum osso emperra.

 

e ainda ocorre que nasça uma criança,

extraída do vermelho dos refolhos,

perdida assim sua proteção querida,

a sopesar toda a tristeza e a esperança,

mas ali operei os meus dois olhos

da miopia, companheira de uma vida...

 

intervenções sem sentido 2

 

tenho idade suficiente para recordar

quando empreenderam os sulcos iniciais

em que alicerces de firmes materiais

seriam inseridos, o nosocômio a levantar;

muito criança, é fato, mas posso relembrar

de passar pela calçada em maternais

passeios, minha mãe nas visitas paroquiais,

os mortos operários então a trabalhar.

 

desapropriaram diversas casinholas,

os pobres sempre são desalojados,

só se conservam nos pontos esquecidos,

em que a ambição não tocou as castanholas;

mas nem pensava ter minhas vistas operadas

naquele tempo antigo e já perdido!...

 

intervenções sem sentido 3

 

decerto os dhyan chohans já saberiam,

os que vigiam cada acontecimento,

do início até o fim do passamento,

que me orientaram tal qual melhor podiam

e assim meus olhos com defeitos já escolhiam,

que me afetasse esse minúsculo tormento;

com as lentes de contato um novo alento,

trinta e sete anos que se conservariam.

 

diversos nomes também lhes atribuirão,

para muitos nem sequer existirão,

mas ainda me miram, com intenções secretas

e esse hospital foi construído só pra mim,

para que um dia me operasse nele assim,

nos cristalinos embutidas duas lunetas!


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