palavras
sem sentido 1 -- 6 abr 22
(Ilustrados pela soprano Elly Ameling)
as
palavras são areias do deserto,
por
mais que busquem, não sabem expressar
a
verdadeira causa do sonhar,
essa
distância que se encontra perto,
mas
para ti eu chegarei de peito aberto,
meu
coração sabe melhor falar
o
que as palavras não conseguem revelar,
em
cada artéria acha destino certo.
porque
palavras de sangue mais expressam
que
palavras de saliva balbuciadas
e
nos teus tímpanos penso enfim retinam,
bem
mais que o canto vago e sem sentido
dessas
frases com controle desenhadas
que
se destinam tão somente ao teu ouvido.
palavras
sem sentido 2
contudo,
além das dores da saudade,
as
palavras mergulham num penar;
são
silabadas, não sabem abraçar
nem
a tristeza e nem qualquer piedade.
todas
as dores objetos da vaidade,
somente
minhas, sem se compartilhar,
por
mais que digas partilhá-las e empatiar,
somente
as tuas conheces de verdade.
porque
dores são pequenas criaturas
que
se rebolcam nas articulações
ou
que se banham bem fundo aos corações;
bem
mais que teus gemidos sem sentido,
são
as palavras para as dores mais impuras,
egoistamente
encrustadas só no olvido.
palavras
sem sentido 3
mais
além dos segredos bem guardados
pelo
receio de se comunicar
estão
as plaquetas e hemácias a domar
as
pulsações dos corações atribulados;
sem
te ver, vivo meus dias apressados:
cada
hora toma outra e vai dançar
nesse
balé sem fim do perpassar,
não
há dores nesses verbos relembrados.
mas
teus segredos são raios de sol
por
uma rede de borboletas captados
e
que se guardam muito além da viração,
mil
mariposas a bailar nesse farol,
mil
fogos-fátuos nos peitos assombrados,
ovos
chocando de dragões nos corações.
refrões
sem sentido 1 — 7 abr 22
o
que tenho procurado o tempo inteiro
é
cruzar versos nunca dantes navegados,
ao
pilotar por poemas encantados
nos
intervalos entre o vento sobranceiro;
quero
rotear uma estrofe por primeiro,
um
quarteto incandescente de abordado,
um
terceto até hoje ainda ancorado,
alguma
rima que em bateias eu peneiro.
porque
embora aqui me prenda a algum modelo,
acerto
o passo por minha própria escolha,
já
que sonetos quase ninguém mais os emprega
e
se a esgrima do verso já tem selo,
o
meu vocabulário explode em bolha
que
o olhar alheio por momentos cega.
refrões
sem sentido 2
para
mim cada soneto é um bem-querer,
a
namorada permanente de meu beijo,
cada
verso a madrépora em que adejo,
raios
de lua que somente eu posso ver;
meus
versos são estrelas sem sofrer,
reluzem
e retinam quando as vejo;
por
minha desgraça em parte eu os aleijo,
não
sou capaz de o pleno brilho descrever.
porém
persisto enquanto flui o rio
dessa
cascata de luz que vem do espaço,
mas
em calhaus se esbate e perde o traço
e
tão somente o redemoinho ainda eu crio,
ou
as estrelas de fato é que me esquecem
no
cintilar com que em minhas vistas descem.
refrões
sem sentido 3
por
entre as sombras refulge a escuridão
e
não se diga que não brilha o escuro,
mais
versos brotam quando o fado é duro,
só
está na ausência da luz essa paixão,
mas
de onde brotará a luz, senão
de
alguma treva acumulada em puro,
buraco
negro ou de pulsar obscuro:
só
existe treva dentro do coração.
mas
dele sai a luz em tal composição,
quando
os versos se revestem de alvorada
e
nos crepúsculos, com libélulas se abraçam
e
o bem-querer desse meu canto é só ilusão,
fruto
da ausência irreal da bem-amada
e
tão somente com suas rimas se congraçam
intervenções
sem sentido 1 – 8 abr 2022
o
hospital se ergue sobre a terra,
vários
metros acima da calçada;
foi
construído sobre uma baixada,
vegetação
e árvores ainda encerra;
no
hospital muita moléstia se desterra
longe
do corpo, toda a carne ali operada
ou
ao contrário, uma vida é completada
se
o bisturi sobre algum osso emperra.
e
ainda ocorre que nasça uma criança,
extraída
do vermelho dos refolhos,
perdida
assim sua proteção querida,
a
sopesar toda a tristeza e a esperança,
mas
ali operei os meus dois olhos
da
miopia, companheira de uma vida...
intervenções
sem sentido 2
tenho
idade suficiente para recordar
quando
empreenderam os sulcos iniciais
em
que alicerces de firmes materiais
seriam
inseridos, o nosocômio a levantar;
muito
criança, é fato, mas posso relembrar
de
passar pela calçada em maternais
passeios,
minha mãe nas visitas paroquiais,
os
mortos operários então a trabalhar.
desapropriaram
diversas casinholas,
os
pobres sempre são desalojados,
só
se conservam nos pontos esquecidos,
em
que a ambição não tocou as castanholas;
mas
nem pensava ter minhas vistas operadas
naquele
tempo antigo e já perdido!...
intervenções
sem sentido 3
decerto
os dhyan chohans já saberiam,
os
que vigiam cada acontecimento,
do
início até o fim do passamento,
que
me orientaram tal qual melhor podiam
e
assim meus olhos com defeitos já escolhiam,
que
me afetasse esse minúsculo tormento;
com
as lentes de contato um novo alento,
trinta
e sete anos que se conservariam.
diversos
nomes também lhes atribuirão,
para
muitos nem sequer existirão,
mas
ainda me miram, com intenções secretas
e
esse hospital foi construído só pra mim,
para
que um dia me operasse nele assim,
nos
cristalinos embutidas duas lunetas!
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