domingo, 3 de abril de 2022


 

 

EMBATE I – 28 MAR 2022

 

O Calor e o Frio se digladiaram

na atmosfera agreste de minha terra;

o sangue brota de sua árdua guerra,

gotas de linfa sobre mim pingaram;

o Calor e o Frio me contemplaram

com seu ícor divino que me altera,

diante do líquido postei-me em tola espera,

quiçá julgando que tais deuses me abençoaram.

 

Mas realmente, será tudo à revelia,

já que o Calor não me dá aquecimento,

eu só me aqueço porque desce pelo ar

e nem o Frio a mim sossegaria,

compromissado com o resfriamento,

que envia aos poucos em direção ao mar.

 

EMBATE II

 

São o Calor e o Frio dois concorrentes,

mas não tentam convencer cada eleitor,

são mais sinceros que o rústico orador,

que hoje te envia os apelos mais frementes,

na esperança de ganhar os descontentes

que não se querem curvar ao atual senhor;

o Calor se faz da vida o criador

e o Frio impede seus gestos mais ardentes.

 

Mas só se esbatem na atmosfera a conquistar,

vem o Frio seu próprio sangue nos mandar

e o Calor a seguir nos traz secura;

mas essa briga não cessam de travar

enquanto o Frio ao vento faz cantar

e à terra seca o capim nos assegura.

 

EMBATE III

 

O Calor e o Frio são componentes

do mesmo embate com que ferve o chão;

na verdade, um ao outro dá sua mão,

para que ambos se mantenham cá presentes;

que ambos se abraçam em seus atos imponentes

e que seria do Calor sem a viração

e que seria do Frio sem a sequidão:

são um casal, bem mais que são parentes.

 

Ao vento geram em seu relacionamento

e os meus cabelos agitam sem cuidado,

são dois amantes a mim indiferentes...

Porém tu vives através desse portento,

deuses de gás sem corpo limitado,

mas que em seus braços te envolvem permanentes.

 

RESTOLHO I – 29 MAR 2022

 

Eu me revolvo no fosso da memória

ao recordar, mais uma vez, recordação;

não importam as lembranças que ali estão,

sou forçado a conhecer que são só história;

tal memorização, por mais peremptória,

não mais pertence ao passado, pois lá vão

os dias primeiros da primeira brotação,

como estratos geológicos da escória.

 

Somente o que eu julgo ainda perdurar

não é o que passou, mas só o que fica,

calhaus e poeiras que se esmaga a esmo;

e nesse estrato vago eu vou morar,

mármore impuro que finalmente indica

não mais que os restos solitários de mim mesmo.

 

RESTOLHO II

 

O meu ontem já foi todo descartado,

meu amanhã me aguarda sorrateiro,

o meu presente a perpassar ligeiro

e a mim mesmo os três afastam para o lado;

guardo a impressão do antanho relembrado,

mas nada posso segurar certeiro,

nem sequer aquele beijo derradeiro

que ainda ontem me foi aquinhoado.

 

E como existo apenas no presente

e se o presente escorre como o vento,

o que sou eu, senão o meu fantasma?

Por isso tantos afirmam diariamente

que só a hora fugitiva tem assento

e que momento algum se acalma e pasma.

 

RESTOLHO III

 

Mas como viverei o meu presente,

se tão depressa escorre entre meus dedos?

Cada segundo ansiando por degredos,

cada instante para a morte suficiente;

e se este restolho de mim foi realmente

amassado com mil dias, maus ou ledos,

envolvido por eventos ou por medos

na vala comum do recordar subjacente,

 

para ti resta viver o teu futuro,

cosmicamente nessa espreita quântica,

pois serás dele se não o fizeres teu;

a escolha é tua, embora num monturo

tudo o que foste e o que és, de forma mântrica,

será a ilusão que teu porvir te concedeu.

 

PERSPIRAÇÃO I – 30 MAR 22

 

O suor das estrelas sobre minha cabeça

aos poucos se derrama, lentamente;

e o interpreto a meu vezo descontente,

qual uma luz que minhalma não aqueça;

eu só percebo a intermitência que me desça,

tremeluzindo do esforço permanente

de cada estrela em seu brilhar frequente,

perante a escuridão que ainda mais cresça.

 

Mas imagino que é preciso que adormeça

cada astro que ali vejo a cintilar,

embora eu saiba que tal jamais consegue;

durante o dia nenhum só deles pereça,

mas se esforce aumentando o transpirar

enquanto o fogo do sol sua visão negue.

 

PERSPIRAÇÃO II

 

É bem difícil conservar-se estrela,

enquanto a cada momento desfalece

essa porção de si que nos aquece

e pelo cosmos desfaz-se na procela.

Ainda que a luz que o astro nos revela

só viesse para nós em ardente prece!

Mas sua intumescência sei não cesse

de se espalhar nos milênios de sua vela...

 

Outras estrelas sobre a alma perspiram,

tão distante essa influência que nos suam!

Talvez nos cantem com suas gotas de suor,

talvez encantem no sonho que transpiram,

quiça talvez meu destino mesmo arruam,

mas com que esforço para nos dotar de amor!

 

PERSPIRAÇÃO III

 

Do mesmo modo, não me parece coisa boa

que como como estrela envie-te estes versos!

Se fossem somente para ti conversos,

mas pela nuvem os distribuo à toa!...

E nessas linhas não sou mais uma pessoa,

apenas suo em intermitentes adereços,

que chegam para ti sem quais preços,

salvo do esforço com que minhalma eu roa!

 

Mas como a estrela tem sua própria natureza

de enviar-te o seu consolo tão distante,

 da minha faz parte, nesta hora, te escrever;

não sei se o Sol possui qualquer tristeza,

quando sua carne dilui assim constante,

mas nestas rimas me desgasto até morrer!

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