CLEPTOESPELHO I (12/4/22)
A cada vez que te olhares ao espelho,
metade dessa luz é refletida
e assim vês a tua imagem conhecida,
ao contemplares a figura nesse velho
artifício que a vaidade, há tantos anos,
inspirou inventar... Porém, metade
da luz que vem de ti, na realidade,
é absorvida pelo vidro, sem que danos
aparentes te cause. Mas só vês parte de ti,
a outra parte nos meandros se dispersa
porque o espelho te corta pelo meio.
Então, evita de olhares no seu seio.
Eu já olhei demais e assim perdi
essa metade que em vidro foi conversa!
CLEPTOESPELHO II
E se te olhares em bacia, novamente,
fica essa imagem na água dispersada;
até é possível ver tua face confirmada,
se não moveres a vasilha de repente;
teu coração se confundiu no recipiente:
não só a água, mas a onda provocada
rouba teu rosto de forma inesperada:
foi-se o teu antes, em círculo imanente.
Podes dizer que a água, bem depressa
se tranquiliza e devolve a tua feição,
mas é deste novo momento esta visão.
Aquela imagem primeira inteira cessa,
toda roubada por tal agitação,
talvez no fundo da bacia algo se esqueça...
CLEPTOESPELHO III
E se mirares sobre as vistas de alguém,
especialmente de quem tenhas confiança,
parte de ti se rouba sem tardança:
algo de outrem receberás também,
que a vida é assim. Os olhos
de ninguém
que te atreveres a fitar trarão bonança,
mas se olhares quem te fita como lança,
nada devolvem como troca de teu bem.
Cada olhar que se capta é um ladrão,
por mais que seja inocente de atitude
e que, de fato, nada queira se tirar,
mas é mecanismo isento de afeição,
sempre tua imagem em tal vissicitude,
será extraída para nunca mais voltar.
CLEPTOESPELHO IV – 13/4/2022
Quando olhares para alguém, roubas também
essa imagem de luz como um reflexo;
para teu imaginar trazer seu nexo,
ali guardado, para mal que seja ou bem.
E se te agrada o que então viste em alguém,
para teu coração vem tal amplexo,
de certo modo, a influenciar teu sexo,
por essa parte feminina que te vem,
ou pela parte masculina, que contém
agora inteira teu olhar cleptocrata,
entrelaçadas nossas vidas sem querer,
ainda que seleciones o quanto se retém,
todo o restante se classifica em hora e data
dentro de ti se arquiva, até mesmo sem saber.
CLEPTOESPELHO V
Mas é importante saber que, no geral, se perde
tão só o reflexo da luz em nossa pele:
não é nada que um mau desino sele,
nem a genética carga que se herde.
E afinal, cada instante que se guarde
de tais reflexos, só se espera que congele
no interior da mente e ali se atrele
aos milhões de seus afins sem mais alarde.
Mas quando olharmos para o olhar de alguém
que é realmente importante para nós,
os pais, os filhos, os demais parentes,
ou algum par que em nosso íntimo se tem
como importante para se seguir empós,
já os reflexos se vão trocar incandescentes.
CLEPTOSPELHO VI
Porque agora não é mais a luz do Sol somente,
mas essa lâmpada que se acende no interior
e nos transmite ricamente o seu calor,
enquanto nós o transmitimos igualmente.
Filhos do Sol nós somos, realmente
e nosso olhar so capta o astro-senhor,
mas nossa mente já rouba outro fulgor:
amor se busca no ideal subjacente.
E que seria de nós se não houvesse
esse furto de amor pela visão,
nossa entrega de vigor nessa ilusão,
essa relíquia que não depende só de prece,
mas que se adora quase inocentemente,
enquanto o incenso se queima lentamente...
CLEPTOSPELHO VII – 14/4/2022
E assim arquivamos tais momentos,
marcados por anseio e por carinho:
são retirados para os lados do caminho,
em relicários de veludosos pensamentos;
guardam-se todos quais se foram condimentos,
para aplicar numa receita, qual cominho,
como orégano e açafrão, panos de linho
como um sudário do antanho em seus portentos.
Se então houver entre nós separação,
se a vida ou se a morte trouxe o guante,
fica ali dentro amortalhado esse tesouro,
cada lembrança um fragmento de emoção,
um memento qualquer que nos garante
que algo de outrem conservamos sem desdouro.
CLEPTOSPELHO VIII
Olhando para dentro, damos graças
por todo o saque que de outrem furtamos,
suas imagens inteiramente recordamos,
mas as vivências são o que mais abraças.
Nos relicários de diorita é então que caças
cada dia e cada hora que roubamos.
Talvez se foi, porém sempre a guardamos
E nesses véus de teu passado então te enlaças.
Mas será que essa metade assim perdida
levou de nós um tesouro semelhante
ou perdeu tudo de nós nessa sua ausência?
Tal questão não posso dar por respondida,
porque o tempo do amor seguiu adiante,
sem respostas para nos dar em complacência.
CLEPTOSPELHO IX – 15/4/2022
O cleptoespelho é até menos complacente:
não nos devolve o que de nós levou,
que em alguma face de vidro se tornou,
imiscuído entre as feições de tanta gente;
também a água da bacia é indiferente,
nesse momento em que se derramou:
foi para o esgoto o quanto nos roubou,
apenas nos mirou, foi-se igualmente.
Será que esse fio de água misturado
com outros tantos mil regatos ainda pode
conservar um fragmento de teu rosto?
E se o conserva, até que ponto é partilhado
com os demais turbilhões a quem acode,
durante as longas ausências do sol posto?
CLEPTOSPELHO X – 15/4/2022
Pois vou buscar algumas horas no passado,
que guardei em mil caixinhas de memória;
estão trancadas de forma peremptória,
bem firmemente tudo foi classificado!
Tantos dias que perdi, desanimado,
mas que não desperdicei de forma inglória:
fui recolhendo tais segundos como escória,
para os guardar em escaninhos, com cuidado...
Essas horas, se as trouxer para o presente,
podem tornar os meus dias mais compridos
para o registro de pensamentos desabridos.
Mas não posso ir ao passado, simplesmente,
ao recobrar de minhas horas seus abraços,
terei de trocar-lhes os tempos por espaços.
CLEPTOSPELHO XI
Alguma coisa alcançarei dessa maneira,
que meu passado no tempo não é achado,
mora em espaço e deverá ser recortado,
para seu tempo congelar sobremaneira,
mediante pua e uma sovela furadeira,
lá de dentro de minha mente congelado,
conseguirei destacar um sonho alado,
que então perdi, trazido assim à beira
pela sovela, que o passado como pua
perfurar vai, todo está dentro de mim,
não é preciso procurar mais nada assim.
Só empregar a memória como grua,
feita presente em alterna realidade,
sem que o tempo percorra mais a eternidade.
CLEPTOSPELHO XII
De fato, se roubei com minha visão
essas memórias de ti, eu as conservo;
são para mim somente que as reservo,
são combustível para meu velho coração.
O que eu queria era fazer a captação
dessas memórias de ti em alheio acervo,
que te furtaram. No meu
íntimo ainda fervo,
sei impossível ser tal recuperação.
Do mesmo modo que entrar não poderia
no teu espelho para cleptar de ti
as cem imagens que sua prata congelou
e muito menos recobrar de uma bacia
essas figuras que jamais eu vi
e que por certo a simples água nunca amou.
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