segunda-feira, 11 de julho de 2022


 

 

CARDIOGRAMA I – 7 JUL 22

 (Ilustração; Aracy Balabanian)


O coração é uma plácida tormenta,

agitada por paixões em turbilhão,

em mim contida pelo freio de minha mão,

que sua destruição seja mais lenta,

mas com o que tem, ele nunca se contenta,

sempre quer mais, fremente de ambição,

na fantasia encontra plena escravidão,

nela se lança e em ingratidão esquenta.

 

E é mais por isso que somos infiéis,

tanto no corpo como na ilusão,

sempre queremos o relâmpago distante

e assim marchamos para fora dos quartéis,

em busca do domínio do trovão

em qualquer nuvem que mostre seu semblante!

 

CARDIOGRAMA  II

 

Quando eu era criança, umas senhoras

diziam que eu era tão bonito,

que em vez de homem, devia ser menina,

foi só por sorte não mudassem minha sina!

Devido a tal atenção fora de horas,

não me tornasse em homossexual aflito,

pelas contradições de meu ambiente;

poderia ter morrido ou estar doente!

 

Mas depois que cresci, foi diferente,

faz tempo que o elogio não mais é dito,

talvez meu rosto até cause receio...

A gente se transforma tão frequente!

E como quero que me achem bonito,

quando eu mesmo me olho e me acho feio?

 

CARDIOGRAMA III

 

Júpiter nunca quis ter alianças,

embora Urano as tenha mais discretas

que as de Saturno, pois foram secretas

por milênios de obscuras semelhanças.

Não por acaso no imaginar alcanças

Júpiter como o pai, nessas completas

cosmologias, dos antigos tão diletas,

quando era grego o retinir das esperanças.

 

Apenas Vênus a ser tida feminina,

mas que reinasse em total poligamia,

toda senhora do vasto âmbito solar,

ou fosse ela tão somente a concubina,

perante os múltiplos planetas da magia

e apenas Júpiter quisesse desposar!...

 

CARDIOGRAMA IV

 

No coração se misturam os sentimentos,

a digladiar-se em violência masculina

ou quem sabe, numa ânsia fescenina,

uns dos outros a destroçar tantos intentos.

Não se arraigaram em mim os movimentos

do orgulho do rosto ou vaidade feminina,

mas uma feroz sensibilidade peregrina,

nesses cantos que dominam meus acentos.

 

Não quis ser Vênus, mas Júpíter não sou,

e nem meus dedos anelados quis,

uma aliança que já tive, foi cortada,

porque uma abelha impertinente me picou,

meu anular já a tornar-se gris,

qual um prenúncio de promessa a ser quebrada.

 

INQUIETAÇÃO ESTRANHA I – 8 JUL 22

 

A estranheza abre em mim largos espaços:

com frequência me persegue uma suspeita

que o largo mundo que trilho desta feita

não é o mesmo que me prendia nos braços;

passada a noite, tudo é igual, mas traços

que percebia minha mente quando deita

não são idênticos aos que agora aceita,

vejo pontos luminosos bem mais baços...

 

Enquanto os foscos agora são brilhantes

ou mesmo as dimensões vagas se tornam,

as coisas próximas afiguradas mais distantes,

tal e como se houvesse atravessado

algum portal nas imagens que se formam

e ainda bailam irrequietas a meu lado.

 

INQUIETAÇÃO ESTRANHA II

 

Já muitas vezes deixei claro para mim

que o mundo é uma constante mutação,

a cada instante, novas escolhas são,

caleidoscópicas a girar num vasto Alfim,

em que preciso escolher meu próprio fim,

se não escolho, por mim escolherão

as incontáveis escolhas que já estão

entranhadas de minha mente no outrossim.

 

Fico a nadar entre as mil coisas do possível,

encruzilhadas abertas sempre à frente,

os mil quânticos que me giram ao derredor;

pois escolher constantemente é um bem terrível,

mas só assim não se aceita o que outra gente

me imporia, por afirmar ser o melhor.

 

INQUIETAÇÃO ESTRANHA III

 

Mas simplesmente isso às vezes acontece,

quando percebo já diverso o panorama,

quando uma peça se tornei do diorama

que qualquer mão alheia me entretece,

sem que resulte afinal de qualquer prece,

simplesmente me revolvo sobre a cama,

olhos fechados para o plano que me chama

ou para a nuvem que sobre mim instante desce.

 

Porém ao menos mantenho essa consciência,

sei que algo para mim mutou-se assim,

mas sem saber como volver ao antigo...

Mas te pergunto, em plena confidência:

será um segredo revelado só pra mim,

se a mesma coisa nunca ocorreu contigo?

 

MÃOS INQUIETAS I – 9 JUL 2022

 

Minha palma direita é muito estranha,

pois mostra a letra A e não um M;

quando faltam as linhas, alguém teme

que nos prepare o destino qualquer manha!

Mas no centro da palma, há uma estrela

de cinco pontas claras, perceptíveis,

e os livros de quiromancia inexauríveis

chamam “profética” essa marca tão singela.

 

Só que até hoje não consigo o meu futuro

desvendar com precisão e nem o teu

e  muito menos que destino a Terra vença,

mas do que não ocorreu estou seguro,

pois de todo o desmentido faço meu

e encaro os astros na maior descrença!

 

MÃOS INQUIETAS II

 

Nunca fiz manicure, minhas cutículas

não sofrem crescimento em demasia;

somente a pele, às vezes, se arrepia

junto à base, a formar quaisquer espículas,

erguidas junto aos cantos, em geral

pelos fins de semana, quando a louça

a mim cabe lavar.  Só então se esboça

da pele o maltratar, mas não fatal...

 

Ela dispõe de muita resiliência

e depressa recupera a solidez,

só tive fungos em duas unhas uma vez,

que recusavam se curar com renitência;

porém um gato mordeu-me e assim, talvez,

 cicatriz guarde para o resto da existência...

 

MÃOS INQUIETAS III

 

Contudo estas minhas mãos nada proféticas,

já me prestaram muito e bom serviço,

manipularam quanto fiz em puro viço,

habitualmente voltadas para estéticas;

na profecia e na poesia existem éticas

bem semelhantes e bem posso disso

me gabar em redigir vasto e prolixo,

mesmo que as visões da estrela sejam céticas.

 

Minhas mãos são fortes, não são grandes demais,

tempo houve que ostentavam grossos calos

e certa vez sofreram mesmo distensão,

mas logo se curaram de formas naturais,

a recobrarem suas agruras e regalos

para o trabalho em qualquer destinação.

 

MÃOS INQUIETAS IV

 

Durante décadas digitaram meu teclado,

a par e par a tocar meu violino,

saxofone, violoncelo em grave sino,

piano e órgão tendo igual executado,

alguma coisa eventualmente desenhado,

mas tomava muito tempo o traço fino,

mais fácil versos escrever em desatino,

mesmo que o nume tem-me sempre atuado.

 

E ao mesmo tempo, com pá e picareta,

com enxada, com foice e com machado,

 exercício corporal executaram nessa outrora,

estas duas mãos e como a arma mais secreta,

já me serviram por todo o meu passado

e ainda me prestam um bom serviço agora!

 

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