DOCE
É A MÚSICA I – 13 jul 2022
Eu
passo os dias a escutar a voz dos mortos
ou
os instrumentos manejados por suas mãos,
existe
mágica no poder das gravações,
para
mim vivem a cultivar seus hortos,
sem
que tenham ancorado em longes portos
tais
musicistas das antigas gerações,
de
meu sonar de música ainda irmãos,
vivos
os ouço nos concêntricos desportos.
Sempre
indaguei-me quais destinos sofreriam
tantos
desses que suas vidas dedicaram,
até
alcançar a mais perfeita execução,
para
onde habilidades partiriam,
depois
que os executantes terminaram
sua
breve estada em nossa animação...
DOCE
É A MÚSICA II
Sobreviver
nem sei se poderia
sem
escutar melodias diariamente;
houve
ocasiões em que fui impotente
para
impedir ausência tal que me feria;
dias
e noites vi passar, com alma fria
nessas
viagens que empreendi frequente,
no
meu cérebro a bailar música ingente,
nos
meus ouvidos o som que não se ouvia.
Ou
quando a minha casa se incendiou
e
com ela perdi discos antigos,
em
especial as gravações que cultivara,
após
as noites em que meu coral cantou:
mal
e mal eu escapei de tal perigo,
que
o próprio fogo teve pena e me poupou!
DOCE
É A MÚSICA III
Mas
se por algo eu sinto gratidão
é
a atual existência da possibilidade,
não
precisando ir escutar em realidade
dos
concertistas habilidosa execução,
que
cada nota executada por sua mão
tenha
sido conservada em qualidade
e
as pudesse adquirir em quantidade:
maior
milagre não conhece o coração.
Antigamente,
precisaria ser um rei,
quem
sabe um bispo para música escutar,
em
seu castelo ou catedral à minha vontade,
mas
hoje posso pastorear tal grei
e
com os mortos me comunicar,
mesmo
os esquecidos já da humanidade!
DOCE
É A MÚSICA IV
Ao
mesmo tempo, às vezes eu suspeito
que
não possam seu descanso desfrutar,
sempre
que um disco eu faça executar
do
que deixaram para meu proveito
e
às vezes penso se terei direito
de
sua harmonia no além ir perturbar
ou
se ao contrário os irei ressuscitar,
dentro
das tumbas a auscultar seu peito.
Talvez
estejam compondo novamente,
mais
uma vez suas óperas cantando
ou
uma ardente sinfonia executando.
E
assim oscilo, sem tornar-me crente,
porém
sem música eu não sei viver
e
para seu bem ou mal os vou trazer...
CINÉREA
É A NOITE I – 14 JUL 22
Ao
lar voltei do lado errado da noite,
meio
perdido numa névoa sem calor,
cansado,
mal-amado e sem amor,
rasgado
o dorso das sombras pelo açoite;
na
própria ventania eu tive acoite,
sentindo
a mente moribunda e sem valor,
a
névoa plena de faina e desamor,
cordas
de bruma a chamar-me para o aboite.
No
estábulo dos sonhos meus segredos
guardei
depressa, no temor dos lobos,
das
cerrações a lã em trama entreteci,
mas
seus moirões cobriram-se de enredos,
muito
mais lama no alambrar dos nodos...
Desvesti-me
do sonhar e então adormeci...
CINÉREA
É A NOITE II
A
noite teve já seu lado certo,
antigamente
sendo as doze horas:
quem
andasse nas ruas em desoras,
talvez
da morte até chegasse perto;
mas
eu marchava de coração aberto,
de
mim a névoa brotava em tais agoras,
não
sei saudades tiveste por que choras,
enquanto
meu lugar seguia deserto...
Mas
com meus pés eu firmo as tijoletas,
se
não as pisasse, todas se desfariam
e
seriam só de terra esses caminhos
e
mesmo a noite, com ambições secretas
eu
construí com os sonhos que sofriam,
sem
travesseiro a dar-lhes seus carinhos...
CINÉREA
É A NOITE III
Fui
eu que a noite dividi assim em duas,
metade
para mim, metade que fugia,
sobre
as calçadas meus passos não ouvia,
mas
escutava da Lua o som das puas...
Via
as janelas fechadas, nunca nuas,
cheias
de pejo, vacantes de harmonia,
música
pobre minhalma combalia,
mas
dos ouvidos arrancava com duas gruas.
Porque
esta divisão fui eu que fiz,
por
que seria errada a madrugada,
a
escuridão já a ser incinerada
pelas
lâmpadas de rua que eu não quis,
mas
fui forçado a pagar por lei malvada,
sua
luminescência não mais que um choro gris!
VERDE É A PALAVRA (II) I – 15 JUL 2022
Plágio
não é quando verbo algum copio
e
o busco apenas como a luz mais fria:
vejo
num verso a palavra “nostalgia”,
que
escorre então por meus sonhos como rio;
maior
que ela seguirei meu próprio fio,
muito
mais amplo que a ideia que ali via;
serve-me
um título ou os dedos me vicia,
sou
despertado para meu próprio cio.
Tal
como em onanismo me alivio,
enquanto
uma expressão se reproduz,
qual
uma cópula realizada em plena luz;
e
assim minha própria vida então adio,
pela
palavra que minha mente engravidou,
muito
mais larga que a prenhez que a despertou
VERDE
É A PALAVRA II
Bem
ao contrário do que costumam afirmar,
uma
palavra vale mais que mil imagens,
mas
não uma descrição dessas paragens:
é
a Palavra que insiste em se arraigar!
Olha
aquelas de mais peso a carregar,
“Amor”
ou “Guerra”, fortes quais carruagens,
a
transportar realidades ou miragens,
que
uma imagem não consegue comportar.
Já
que palavras são vidas na memória,
elas
percorrem a integridade dos neurais
e
mil ideias arrancam de suas celas,
a
despertar os próprios mortos de tua história
e
a fazê-los reviver entre os demais,
prodigios
vivos das visões mais belas.
VERDE
É A PALAVRA III
E
tu que és crente, busca recordar
que
a Palavra se fez carne e não a Imagem
e
habitou entre nós mais que a miragem
de
uma simples imageria singular.
Foi
a Palavra que levou tudo a iniciar:
Haja
Luz! – a originar toda a paisagem,
a
estabelecer diferença entre a voragem,
em
que pluriversos só faziam dormitar.
Assim
a Palavra é a coisa mais sagrada,
a
resultar na inusitada Encarnação,
não
foi imagem antropomórfica a encarnar;
e
a Palavra ainda é hoje conservada
em
cada instante agrilhoado em oração,
que
em tua angústia venhas a clamar!
VERDE
É A PALAVRA IV
Que
no princípio era a Palavra e ela estava
com
Deus Superno e só a Palavra era Deus;
assim
a Palavra nestes sonetos meus,
à
sua maneira minúscula se estampava;
cada
imagem que no mundo se encontrava
foi
reduzida a palavras por Judeus,
nessa
Bíblia mosaica dos Hebreus,
que
a verdadeira Palavra registrava.
Portanto,
não há plágio se a encontro
entrincheirada
no interior de um texto
e
a extraio dali para a amplidão;
e
nesse ato de amor então demonstro
que
as mil imagens do mundo são pretexto
desse
sopro criador sem pretensão.
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