terça-feira, 7 de março de 2023


 

 

NO DELÍRIO DA LEMBRANÇA I – 28 FEV 2023

(Judith Anderson e Elizabeth Taylor)

 

Quando a lembrança se encolhe pelo chão,

Sem ter certeza de se tornar saudade,

Na poeira e pó de sua infelicidade,

Sem ter desejo de volver ao coração;

Quando a lembrança desbotada da paixão,

Tal como roupa é descartada sem piedade,

Não recolhida depois da saciedade,

Sem ter vontade de refazer-se em ilusão,

Quando a lembrança encolhe-se faminta,

Só a mastigar de si mesma fragmentos,

Sem ter inveja de qualquer raio de luar,

 

Quando a lembrança para si apenas minta,

Que ainda coma alguns retalhos de lamentos,

E tranquila se esvai no mais meigo desvairar.

 

NO DELÍRIO DA LEMBRANÇA II

 

Toda lembrança vive do seu desvanecer,

Tocaiada pelos impulsos do presente,

Sepultada por assaltos do inclemente,

A cada segundo algo de si perder,

Por mais que busque o seu permanecer,

Sob as agulhas do perfurar silente,

Da luz, do som, do toque impertinente,

Esfarrapada em seu atroz sobreviver,

Pois tanto busca enfim se recompor

Quantos furos terá de preencher,

Mas o que dela se olvidou, já foi embora.

 

E assim preenche com farpas sem valor

Desse presente o que pôde recolher

E o que persiste é só lembrança de outra hora.

 

NO DELÍRIO DA LEMBRANÇA III

 

Assim recordo de que te foste embora,

Mas tal memória é toda pintalgada,

Passam os anos, faz-se um quase nada,

Só o arcabouço quedou-se em tal demora

E se a lembrança percebe nessa hora

Que será em breve totalmente deformada,

Talvez até anseie por ser volatilizada,

Ao invés dessa figura que descora

Inteira quase do lembrar que foi um dia,

Melhor tornar-se em mofo ou ser roída,

Destarte inteiramente destruída

 

Que em hipocrisia de total falsificação

Daquele instante que ainda sabe que vivia,

Porém do qual mais nada em si persistiria.

 

NO DELIRIO DA INCONSTÂNCIA I – 1º MAR 2023

 

Não saberia até que ponto te recordas

Do amor que inteira te possuiu um dia,

Cuja lembrança a pouco e pouco desistia

De tanger suas puídas, gastas cordas.

Não sei até que ponto te remordas

Por não poder recordar-lhe a melodia,

Quando são outras as canções que te gemia

O teu presente a assoviar sobre tuas bordas;

Para ti existiram tipos vários desse amor,

Um foi recíproco e até recompensado,

Mas no abandono involuntário foi deixado,

 

A pouco e pouco descorando o seu valor,

Teu pobre amor, que não chegou a morrer,

Mas que tampouco consegue mais viver.

 

NO DELIRIO DA INCONSTÂNCIA II

 

Ou então, foi um amor insatisfeito,

Sem encontrar qualquer correspondência,

Que de algum modo conservou a potência,

Dentro de teu coração, sem ter defeito,

Esse amor que parecia sem direito,

Por outrem desprezado em impaciência,

Porém que assumiste em impenitência,

A preencher cada escaninho do teu peito.

Ou quem sabe, um amor bem mais gentil,

Retribuído, mas sem qualquer paixão,

Que de repente se demonstrou vazio,

 

Mas ao qual te apegaste em dom sutil,

Instalado em cada alvéolo do pulmão,

Porém desfeito a cada expiração.

 

NO DELIRIO DA INCONSTÂNCIA III

 

Qualquer que fosse, te recordas que existiu,

Sempre um amor, quer eivado de emoção,

Quer desbotado, menor do que ilusão,

Pequena luz solitária em morto cio,

Que não chegou a ser jamais um desvario,

Tão só carinho invocando a devoção,

Um par ao outro a dar satisfação,

Amor estéril ou que filhos produziu,

Porém ao recordar-lhe a existência,

Será que o podes realmente reviver

Ou é acendalha apenas na lembrança,

 

Só cor de brasa, um sopro de impotência,

Meio sorriso, certa tristeza, uma bonança,

Sinais perdidos do que pudeste um dia ter...

 

NO DELÍRIO DA DISTÂNCIA I – 2 MAR 23

 

É difícil realizar que o sol ardente

Que erguida a face consegues contemplar

Não é o Sol que agora está a brilhar,

É o Sol passado que ainda dança no presente,

Nessa distância por demais interveniente,

Oito minutos de um antanho a revelar,

Talvez sua luz nem se possa mais fitar,

Talvez extinta esteja agora totalmente

Ou quem sabe se o Sol não se expandiu

Em supernova e de nada te avisou?

Qualquer satélite já inteiramente consumiu

 

E sua mensagem até hoje não chegou,

Desse Sol que te criou e te nutriu

E em breve tempo teu rosto ja cremou?

 

NO DELÍRIO DA DISTÂNCIA II

 

Se for assim, pranteio certamente,

Não por esse artefato temporal,

Mas por Mercúrio, nosso gêmeo sideral

E ainda por Vênus em sua pira ardente,

Nenhum dos dois a te avisar, infelizmente,

De que o Sol explodiria em seu fanal,

Algum calor ou radiação fatal

Talvez chegando qual arauto ineficiente,

Cuja mensagem de nada adiantaria,

Que nenhum bunker proteção concederia,

Nem tempo haveria para alguém ali descer,

 

Que o orbe inteiro logo se derreteria,

Sem sequer te dar o tempo de morrer

Ou coisa alguma lamentar do teu viver.

 

NO DELÍRIO DA DISTÂNCIA III

 

Sempre é melhor se pensar no Sol gentil,

Cujo fragor só te alcança com retardo,

Cujo calor se expande além e ao largo,

Concêntrico o círculo de sua flama juvenil;

Que permaneça assim forte e senhoril,

Esse Sol de teu passado em puro dardo,

Cuja extinção não te trará um fim amargo

Ou qualquer tempo de protesto mais viril,

Esse clarão que de nós não se condói

E que indiferente pelo cosmos nos conduz,

Por longo braço da Via Láctea incontida?

 

Mas que importa, afinal, se sempre foi

Esse retardo que sobre nós reluz

E presidiu-nos ao eclodir da vida?

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